SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número25Educação e Desenvolvimento de Carreira das MulheresGender-based violence in the world of work: Overview and selected annotated bibliography índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.25 Vila Franca de Xira  2012

 

Monteiro, Rosa (2010), A emergência do feminismo de Estado em Portugal: uma história da criação da Comissão da Condição Feminina, CIG, Lisboa, 101 pp.

 

Margarida Chagas Lopes

ISEG – Universidade Técnica de Lisboa

 

Neste seu livro, Rosa Monteiro casa com mestria o rigor da investigação histórica com uma deliciosa descrição, «em fresco», das vicissitudes que marcaram o surgimento do feminismo de Estado em Portugal. A contemporaneidade das instituições que no livro se descrevem, ou das que diretamente lhes sucederam, a atualidade de algumas das dificuldades e limitações que aí se espelham e, muito especialmente, a presença entre nós de vultos incontornáveis da construção do feminismo de Estado – como Regina Tavares da Silva ou, até há pouco, Maria de Lurdes Pintasilgo – conjugam-se entre si para reforçar a oportunidade deste livro. Assim o terá também considerado a CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – ao promover a sua edição.

Porque uma leitura, ou recensão, é também uma interpretação, ousamos subentender três eixos estruturantes na história que Rosa Monteiro nos apresenta: a ousadia e convicção feministas das e dos fautores desta história, a par da sábia e empenhada utilização do poder de decisão de que episodicamente iam dispondo; a intervenção, por vezes mínima, do Estado pela promoção da igualdade de género; o exemplo e o respaldo das organizações internacionais promotoras do direito à igualdade, como as Nações Unidas ou a Organização Internacional do Trabalho.

Um primeiro momento de articulação daqueles eixos de referência, os anos 60 e a transição para a década de 70, absorve parte significativa da atenção da autora. Aquele tempo de crítica social, que viu conjugar-se a reflexão do catolicismo progressista, de estudantes e operário/as num esforço coletivo de denúncia da pobreza, da guerra, do atraso social, numa palavra, trouxe também os ventos do progresso da ONU em prol da igualdade de género, consubstanciados no Programa Women in Development. Em alguns dos Ministérios portugueses começavam a surgir os gabinetes de estudos e planeamento, semente de uma camada técnica e de enquadramento que, na Administração Pública, viria a desenvolver a análise e o estudo sistemáticos de temas fundamentais para o progresso social.

Neste contexto de denúncia, ousadia e trabalho intelectual, Maria de Lurdes Pintasilgo cimenta a conceção sistémica e a abordagem dialética do trabalho feminino, salientando o carácter eminentemente político do seu processo de regulamentação que já então a preocupava. Preocupação essa que haveria de tornar-se recorrente face às vicissitudes do processo de institucionalização dos organismos da igualdade de género.

A ousadia feminista, aliada à forte competência técnica e respaldada pelo trabalho de quadros progressistas do Ministério das Corporações, consegue fazer associar aos Planos de Fomento e à definição das regiões-plano as primeiras tentativas de institucionalização do feminismo de Estado em Portugal, como refere Rosa Monteiro. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia audaciosa e de duplo objetivo: se, por um lado, se visa assim a consagração oficial dos organismos embrionários que propugnam a igualdade de género, por outro procura assegurar-se a estabilidade do cabimento orçamental para os mesmos, associando-os ao quadro de referência das contas públicas de então. A Comissão para a Política Social relativa à Mulher, de 1973, constitui a resultante mais significativa desta tentativa de institucionalização e deve muito, por sua vez, à crescente participação de mulheres portuguesas nas redes do feminismo internacional.

Com a democracia surgem as condições de sustentabilidade das iniciativas em prol da igualdade de género. Mau grado a diminuta expressão que as questões relativas aos direitos das mulheres assumiam nos conteúdos programáticos que sustentavam a revolução, a abertura aos ideais progressistas e às conquistas entretanto realizadas pelos regimes democráticos mais amadurecidos abria o campo para a progressiva endogeneização social do ideário feminista. Trabalhava-se, então, na Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres, o direito da família conhecia um progresso assinalável e criavam-se as condições para o surgimento de legislação fundadora dos direitos das mulheres e da criança, como a Licença de Maternidade de 90 dias. De novo, a função de enquadramento e de regulação internacional de organizações como a OIT e a OCDE, cumpria aqui o seu papel estruturante.

O ano de 1975, outro marco de referência, foi sublinhado pelo desenvolvimento dos trabalhos de preparação do Ano Internacional da Mulher. Mais uma vez, as feministas portuguesas – de entre as quais, Regina Tavares da Silva – se desdobravam em reuniões preparatórias e debate de ideias, em alinhamento e interação estreitas com o que de mais atual se desenvolvia nas redes feministas internacionais, como sublinha Rosa Monteiro. A preparação do Plano Mundial de Ação para o Ano Internacional da Mulher conta então com a contribuição da coragem, vontade e saber das feministas portuguesas. E espelha o resultado de uma ação laboriosa e partilhada, que não se circunscrevia às embrionárias instâncias oficiais mas, antes, auscultava e dava voz à expressão dos diferentes setores interessados na construção da igualdade de género, de entre os quais se distinguiam as organizações não governamentais (ONG). A participação portuguesa na Conferência Mundial do México, cujas vicissitudes e imprevistos nos são deliciosamente descritos por Rosa Monteiro, constitui uma verdadeira epopeia, a culminar todo este domínio de intervenção.

Ao mesmo tempo, assistia-se ao surgimento da Comissão para a Condição Feminina, que veria a sua consagração institucional em 1977. À distância de quase quatro décadas, surpreende a capacidade para desenvolver trabalho inovador, tecnicamente muito competente e diversificado, num contexto em que a indefinição orgânica e a recorrente reorientação tutelar constituíam a norma de funcionamento, como bem nos situa a autora. Tal só foi possível, sem dúvida, devido ao empenho sabedor e multifacetado das técnicas e técnicos da Comissão, que ora se desdobravam em atividades precursoras de documentação e classificação, ora acorriam a participar e dinamizar importantes fora de debate feminista, no País e no estrangeiro. A par das funções de representação, desenvolvia-se um importante trabalho de intermediação e consulta, muito marcado pela informação sobre os direitos das mulheres e da família, a consulentes – quase sempre mulheres – que então ainda grandemente os ignoravam. Mas foi essencialmente através do desenvolvimento de estudos tecnicamente bem fundamentados, conduzidos com regularidade e visando sistematicamente o aprofundamento de temáticas centrais na promoção da igualdade – como o trabalho das mulheres, sua regulamentação e fundamentação jurídica – que o contributo da Comissão se soube fazer impor e respeitar. A emergência na sociedade recentemente democratizada de temas a que hoje chamaríamos fraturantes – como o Planeamento Familiar e o Aborto – haveria igualmente de contar com o enquadramento técnico e institucional proporcionado pela Comissão: não só assumiu a dinamização da fundamentação jurídica dos novos direitos como assegurou o necessário debate de ideias entre instâncias técnicas, a representação social, como as ONG, a opinião pública.

A preocupação constante com o prestar de contas, com a demonstração dos resultados do percurso, constitui outra tónica do trabalho da Comissão e das técnicas e técnicos que então a integravam. São disso prova evidente os Cadernos da Condição Feminina, importante repositório de estudos, debate e reflexão a que os investigadores e as investigadoras em estudos de género haveriam de vir a recorrer repetidamente para o desenvolvimento dos seus trabalhos, então, como ainda hoje.

Disto tudo dá conta, notavelmente, esta «história» que Rosa Monteiro nos oferece. Com a convicção, justíssima, de que «(…) destas memórias institucionais [ ] se deverá também alimentar o presente (…)».

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons