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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.26 Vila Franca de Xira  2012

 

Casaca, Sara Falcão (2012), Trabalho Emocional e Trabalho Estético na Economia dos Serviços, Coimbra, Edições Almedina, II Série, n.º 20, 138 páginas.

 

Manuel Abrantes

SOCIUS – ISEG, Universidade Técnica de Lisboa

 

Muito tem sido escrito, no domínio da sociologia, sobre a expansão da economia dos serviços. Sara Falcão Casaca começa por destacar a ampla gama de serviços em que a interação direta entre pessoa trabalhadora e cliente final constitui uma parte nuclear do processo de trabalho. Na prestação destes serviços, a competência técnica caminha frequentemente de braço dado com uma dimensão performativa: atributos físicos, traços de personalidade e qualidades relacionais são objetos de mercadorização e, por conseguinte, de disputas materiais e simbólicas. Identificar e caracterizar as transações realizadas através do desempenho de competências emocionais e estéticas, prestando especial atenção ao seu entrelaçamento com dinâmicas de transformação e persistência das relações de género, são as finalidades que norteiam o livro.

Tal tarefa não pode ser empreendida sem que se procure, antes de mais, uma definição precisa dos principais conceitos teóricos a mobilizar no decurso da pesquisa. A isto se dedica o primeiro dos três capítulos que compõem o livro. A autora convoca uma diversidade assinalável de contributos teóricos, fazendo-as gravitar em torno da questão do trabalho emocional – conceito celebrizado pela socióloga Arlie R. Hochschild para designar o esforço despendido por trabalhadoras/ es na manipulação das suas emoções genuínas com o intuito de exibir aquelas que se enquadram nas normas e nas expetativas das entidades empregadoras. Conceito vizinho, de emergência mais recente, é o de trabalho estético, proposto na pesquisa de uma equipa constituída por Chris Warhurst, Dennis Nickson, Anne Witz e Anne Marie Cullen para designar a mobilização, o desenvolvimento e a mercadorização de disposições corpóreas das/os trabalhadoras/ /es associadas à satisfação dos objetivos de organizações ou clientes. O capítulo inicial do livro tem o mérito particular de enquadrar estes conceitos na transformação das estruturas socioprofissionais e das relações laborais que caracterizou a segunda metade do século XX. São discutidas elaborações teóricas de referência em redor da nova economia, da sociedade pós-industrial e da divisão sexual do trabalho.

Com o segundo capítulo, mergulha-se na análise empírica. Os dados estatísticos do Inquérito ao Emprego relativos ao período de 1998 a 2007 permitem uma caracterização geral do segmento dos serviços interpessoais em Portugal. De seguida, desenvolve-se uma análise qualitativa de entrevistas individuais em profundidade abrangendo um total de 45 trabalhadoras/es, 7 pessoas com cargos de gestão ou recrutamento e 3 delegados sindicais. Estes dados são complementados pela análise documental de materiais relevantes tais como manuais de orientação para o serviço de atendimento a clientes e websites de empresas. A análise circuncreve-se a um conjunto específico de serviços interpessoais: cuidados de estética e beleza, promoção do bem-estar físico, apoio ou consultoria de imagem individual, tripulantes de cabine e assistentes de eventos, entre outros (p. 52). Por sua vez, o terceiro capítulo do livro dedica-se ao caso dos call centres. Os dados recolhidos no seio de quatro empresas abarcam um inquérito a 63 trabalhadoras/ es e entrevistas individuais com 10 operadoras/es, 4 responsáveis de empresas e 2 delegados sindicais, bem como um leque de documentos institucionais. Em contraste com o carácter frequentemente difuso e imprevisível de alguns serviços interpessoais, os elementos de rotina e disciplina – aos quais subjaz uma elevada regulação emocional – que permeiam o trabalho em contexto de call centre são examinados à luz de testemunhos em primeira mão.

Ao longo da obra, Sara Falcão Casaca mostra como os requisitos associados ao trabalho emocional e ao trabalho estético se configuram como elementos – a um só tempo persistentes e renovados – da divisão sexual do trabalho, conduzindo à reprodução de estereotipias de género e fatores de desigualdade. As assimetrias entre homens e mulheres são evidentes. Nos call centres, é especialmente reveladora a constatação de um predomínio de mulheres nos cargos de atendimento direto ao cliente e um predomínio de homens nos cargos de atendimento técnico. Também evidentes são as assimetrias entre quem se enquadra melhor e pior nos quadros de valor que presidem à mercadorização dos atributos físicos e relacionais, quadros estes que se situam numa interseção de papéis de género e expetativas de subordinação. Ilustrativa é a afirmação de uma entrevistada a propósito da relação que, enquanto cabeleireira, estabelece com as clientes (p. 60): «Eu tenho que mostrar que ela ali é uma senhora, ela ali é a minha rainha, não é? E eu estou ali ao seu dispor». Como frisa esta entrevistada, é fundamental mostrar às clientes que tem «classe». São justamente os elementos de classe – entendendo- se agora este termo no sentido, também ele variado e controverso, que a pesquisa sociológica lhe tem dado – que ajudam a completar o nosso entendimento do quotidiano de trabalho nos serviços interpessoais.

O contributo específico desta obra para o conhecimento científico pode aferir- se a dois níveis. Um deles diz respeito à posição do tema no panorama sociológico. As emoções não podem ser negligenciadas nos estudos das relações sociais sob o risco de se tornarem, justamente, o seu calcanhar de Aquiles. Com efeito, a produção neste campo tem vindo a ganhar fôlego. A título demonstrativo, o VII Congresso Português de Sociologia, em junho de 2012 (o mesmo mês em que se publicou o livro aqui comentado), acolheu um número total de 22 comunicações na seção temática de Sociologia das Emoções, reunindo pesquisas que, desenvolvidas em vários pontos de Portugal e do estrangeiro, propõem interligações revelantes com fenómenos tão variados como o crime e a violência, o consumo, a educação, os novos movimentos sociais, as culturas juvenis, o amor, o sistema financeiro.

Mais do que uma descoberta recente, o trabalho emocional e estético constitui aquilo a que poderá chamar-se uma «novidade antiga». Embora o livro se concentre nas feições mais recentes do fenómeno, a componente emocional e estética do trabalho na economia dos serviços foi sinalizada, noutros termos, por autores de períodos anteriores. Um caso paradigmático é o de Siegfried Kracauer (1998, The Salaried Masses: Duty and Distraction in Weimar Germany, London, Verso) que, num livro publicado originalmente em 1930 a partir das suas observações em Berlim, destaca o modo impreciso mas implacável como as qualidades estéticas e relacionais podem ser avaliadas pelas empresas no processo de recrutamento, fazendo da pessoa que trabalha em funções comerciais algo «infinitely more complicated than a worker». Veja-se também o célebre testemunho de George Orwell (2003, Down and Out in Paris and London, London, Penguin), lançado em 1933, sobre a sua experiência de trabalho em diversos serviços interpessoais em Paris e Londres nos tempos de uma (outra) recessão económica à escala internacional. A novidade do trabalho académico mais recente é que tem vindo a refinar de forma decisiva conceitos e ferramentas metodológicas que permitem análises complexas e sistemáticas.

O segundo aspeto a destacar consiste na ambivalência que subsiste em torno do trabalho emocional e estético: ora ferramenta de seleção e opressão manejada com maior ou menor habilidade por entidades empregadoras, ora espaço de emancipação e gratificação para elementos da classe trabalhadora, sobretudo em comparação com contextos laborais mais isolados ou despersonalizados no setor dos serviços. Face a este dilema, o presente livro propõe que a resposta seja orientada pela análise empírica, em igual medida detalhada e crítica, colocando no coração do debate a experiência e a perceção das pessoas cujo desempenho emocional e estético é transacionado. Para lá daquilo que a autora designa como interpretações deterministas, sejam elas negativas ou otimistas, importa aferir a relevância de variáveis moderadoras tais como modelo organizacional, estatuto socioprofissional, posição hierárquica ou grau de autonomia (pp. 36-44). Documentar a ambivalência é, portanto, reconhecer a multiplicidade de possibilidades e intervenientes, abrindo portas ao diálogo com trabalhadoras/es, empregadoras/ /es e clientes.

Por outro lado, as práticas e os contextos de trabalho nos serviços interpessoais constituem material estratégico para examinar a persistência e a renovação de assimetrias de género na sociedade contemporânea. Estas assimetrias refletem uma forte compartimentalização vertical e a escassez de oportunidades e perspetivas de progressão na carreira para quem ocupa posições no atendimento de primeira linha. Assim, as dinâmicas quotidianas de modelação, regulação e monitorização das emoções e da estética são cruciais para se entender o enquadramento deste segmento laboral não só nas estruturas organizacionais, mas também, de um ponto de vista mais amplo, nas dinâmicas socioeconómicas e de classe. A ambivalência é negociada a cada momento e não é dissociável das questões de identidade, como se demonstra no caso da assistente de eventos que, a respeito das frequentes ocasiões de assédio sexual por parte de clientes, declara: «Não me afeta minimamente! Nem sequer fica cá» (p. 65). O livro de Sara Falcão Casaca coloca-nos neste , onde as emoções são sentidas, onde o trabalho é desempenhado, onde a dignidade e a valorização profissional são disputadas. Pense-se em remuneração, autonomia e perspetivas – mas também em estratégias corporativas de subcontratação, controlo e poder. Pense-se nas fronteiras ténues que separam o trabalho estético e o trabalho erotizado. O debate é especialmente difícil pois os próprios conceitos que a ele presidem mudam conforme a valoração que lhes é dada. A esta intersubjetividade não se pode furtar o desenvolvimento continuado da pesquisa.

Por último, este livro deixa um ponto de interrogação acerca da organização coletiva aparentemente diminuta – através da sindicalização, dos novos movimentos sociais ou de outros canais de agência e representação – entre a população que trabalha nos serviços interpessoais. Uma abordagem sistemática a esta questão, incluindo os seus aspetos diacrónicos e a comparação possível entre diferentes regiões e ramos de atividade, permitirá expandir o debate.

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