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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.30 Lisboa dez. 2014

 

DOSSIER: HISTÓRIA, HISTÓRIA DAS MULHERES, HISTÓRIA DO GÉNERO. PRODUÇÃO E TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO

 

Uma Mulher Singular. Mary Shelley (1797-1851)

A Unique Woman. Mary Shelley (1797-1851).

Une femme sans pareil. Mary Shelley (1797-1851).

 

Clara Queiroz1

1 Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: clara.queiroz1@gmail.com.

 

RESUMO

Frankenstein transformou-se num mito que perdura há duzentos anos e é mundialmente conhecido. Mary Shelley, a autora de Frankenstein ou o Prometeu Moderno, permaneceu durante largos anos desconhecida, quer entre o público, quer nos meios académicos. O brilhantismo dos pais, Mary Wollstonecraft e William Godwin, do marido, Percy Shelley, e do seu círculo de amigos, entre os quais Lord Byron, contam-se entre os muitos fatores que contribuíram para que ficasse ‘invisível na História’. Numa breve síntese, pretende-se apresentar a vida e a vasta obra desta mulher independente, determinada, inovadora, de cultura invulgar, que não se conformou com o papel imposto às mulheres da sua época.

Palavras-chave: discriminação, género, Romantismo, invisível na História.

 

ABSTRACT

Frankenstein has become a myth which has endured for two hundred years and is well known worldwide. Mary Shelley, the author of Frankenstein, or the Modern Prometheus, has long remained unknown both among the public and the academic circles. The brilliance of her parents, Mary Wollstonecraft and William Godwin, of her husband, Percy Shelley, and of her circle, not the least of whom Lord Byron, may be accounted for as one of many other factors leading to her ‘hidden from History’ status. In a brief synthesis, the life and vast work of this independent, determined, innovative woman of unusual cultural knowledge, who said no to the role imposed upon women of her time, is presented.

Keywords: discrimination, gender, Romanticism, hidden from History.

 

RESUMÉ

Frankenstein est devenu un mythe qui dure depuis 200 ans et est mondialement connu. Mary Shelley, auteur de Frankenstein ou le Prométhée Moderne, est restée inconnue soit auprès du public, soit dans les milieux académiques pendant de nombreuses années. L'éclat de ses parents, Mary Wollstonecraft et William Godwin, de son mari, Percy Shelley et de son cercle d'amis, y compris Lord Byron, sont parmi les nombreux éléments qui ont contribué à ce qu'elle fut cachée de l'histoire. Dans cet article, nous prétendons présenter un bref résumé de la vie et de l'immense ouvre de cette femme indépendante, déterminée, innovante, d'une culture exceptionnel, qui ne s'est pas pliée au rôle imposé aux femmes de son époque.

Mots-clés: discrimination, genre, Romantisme, cachée de l’Histoire.

 

As personagens Dr. Frankenstein e a sua Criatura são mundialmente conhecidas; a autora, Mary Shelley, nem tanto. É certo que, por vezes, criador e criatura se confundem e, no imaginário que as representações teatrais e cinematográficas nos deixaram, a designação Frankenstein seja atribuída à Criatura. Essa confusão (ou fusão, decorrente do horror que ambos causam) não altera a popularidade com que o mito Frankenstein se mantém há duzentos anos. Desde 1 de janeiro de 1818, quando pela primeira vez Frankenstein: Or, The Modern Prometheus foi publicado, sucessivas edições mantiveram-no, até hoje, presente nas livrarias. Ao invés, a extraordinária vida e a vasta obra de Mary Shelley permaneceram mais de um século na obscuridade, envoltas no espesso véu que a História, com muito engenho e arte, tem imposto a tantas mulheres notáveis.

A visão androcêntrica do mundo – interiorizada por muitas mulheres a quem foram negados o direito ao ensino, a participação na vida pública e política, a possibilidade de exercerem atividades fora do lar; as leis que lhes negaram quaisquer direitos tornando-as pertença do pai ou do marido, a moral social instituída, a intransigência do puritanismo vitoriano e a sua influência além-fronteiras – oferece uma explicação óbvia para a invisibilidade das mulheres em geral e da obra e da vida daquelas que não respeitaram e contrariaram a ordem social estabelecida, como é o caso de Mary Shelley. A autora foi apresentada em textos mencionando aspetos parcelares da sua vida e obra, por vezes deturpados, ou mesmo injuriosos, como, por exemplo, o de Edward John Trelawny publicado em 1878 e mais tarde reeditado (Trelawny, 2000: 297-99). Lembremos ainda que a nora de Mary Shelley, a transbordar de amor e admiração pelos sogros, organizou a publicação de um livro em que as suas vidas e obras são limadas, em parte ocultadas e igualmente deturpadas, neste caso, para as retratar em consonância com as virtudes exigidas pelos cânones vitorianos (Shelley, 1859).

Porventura, outros fatores de ordem específica contribuíram para tão flagrante esquecimento: a notoriedade de que os pais de Mary Shelley foram alvo; a celebridade que a poesia do marido alcançou – ironicamente em grande parte devida ao excelente trabalho de Mary na divulgação da sua obra –; a sua personalidade sóbria, pouco expansiva; o próprio vulto que o seu livro mais famoso adquiriu. Frankenstein ganhou vida própria, independentizou-se da sua autora. Mary Shelley foi, não raras vezes, mencionada como a filha da grande defensora dos direitos das mulheres, Mary Wollstonecraft, e do romancista e grande teórico da justiça política, William Godwin; foi avaliada como a mulher do grande poeta do Romantismo britânico, Percy Bysshe Shelley, beneficiando do convívio com Lord Byron e outras figuras eminentes. No auge do movimento feminista, Margaret Leighton publicava uma biografia de Mary Shelley, a que dava o título Shelley’s Mary. Era, pois, ainda possível, em 1973, designá-la por ‘Mary do seu marido Shelley’.

A confluência de vários factores veio alterar drasticamente esta situação. Acervos, durante décadas guardados, passaram a estar disponíveis ao público e foram organizados; um renovado interesse em Frankenstein foi suscitado pelo olhar crítico que o livro lança a uma ciência sem escrúpulos, ávida de poder; os movimentos ecologistas – e não só – descobriram nele os inúmeros desafios éticos, políticos, antidiscriminatórios, premonitórios. A acusação de que a autoria de Frankenstein se devia primordialmente a Percy Shelley foi liminarmente refutada após a análise dos respectivos manuscritos. A sua publicação fac-similada e anotada (Robinson, 1996) revela cabalmente que o manuscrito saiu da pena de Mary. São visíveis algumas sugestões de alteração e notas nas margens do manuscrito com a caligrafia de Percy, decorrentes da revisão que, certamente, Mary lhe pediu e que, curiosamente, na opinião de alguns autores, nem sempre contribuíam para melhorar o texto. A colaboração entre os dois era, aliás, uma prática regular e, não só Mary pedia opinião a Percy sobre os seus textos, como lhe dava a sua opinião sobre temas, textos, poemas que o poeta escrevia e que Mary copiava.

A aproximação do bicentenário do nascimento de Mary Shelley atraiu investigadoras e investigadores. As suas cartas (Bennett, 1980-83) e o diário (Feldman, e Scott-Kilvert, 1987) – inicialmente com entradas tanto de Mary como de Percy e, a partir de certa altura, exclusivamente de Mary – foram estudados, anotados e publicados, os seus contos (Robinson, 1976), romances, ensaios, biografias, poemas foram descobertos e reeditados (Crook, 1996 e 2002), estudos sobre Mary Shelley, fundamentados em fontes primárias, começaram a aparecer. Em Portugal, publicam-se ensaios (v.g. Vasconcelos, 1985; Pires, 1985; Sousa, 1993). A grande revelação surgira: Mary Shelley é uma mulher de cultura invulgar, com uma vasta obra em grande parte publicada sob anonimato; a sua vida é rica em tragédia, determinação e luta.

Filha de dois defensores da liberdade de direitos para homens e mulheres, famosos pelas suas teorias sobre reformas sociais expressas em livros e pela aplicação desses princípios às suas vidas pessoais, Mary Shelley teve uma infância iluminada, numa época de revolução política, social e científica.

Onze dias após o seu nascimento em Londres, a 30 de agosto de 1797, a sua aclamada mãe morria de uma infecção pós-parto. Mary cresceria, porém, num ambiente intelectual, acarinhada pelo pai e acompanhada pela meia-irmã Fanny, que Godwin considerava como sua própria filha, embora fosse fruto de uma anterior ligação de Mary Wollstonecraft com o americano Gilbert Imlay. A presença da memória da mãe, constantemente evocada, era simbolizada pelo seu retrato pendurado na parede. A casa era frequentada pelos amigos da família, intelectuais radicais, escritores, entre os quais se contavam os poetas da primeira geração do Romantismo britânico: Coleridge, Wordsworth, Hazlit, Southey. Hanna, irmã de William Godwin e entusiástica admiradora de Mary Wollstonecraft, acrescentava o cuidado e a atenção que se prestava à educação e ao crescimento das meninas.

O segundo casamento de William Godwin com Mary Jane Clairmont iria alterar radicalmente o ambiente daquela casa: o núcleo familiar duplicou. Mary Jane trazia consigo Claire, de três anos, e Charles, de seis, filhos de duas relações que tivera. Fanny era, então, uma criança de sete anos e Mary de quatro. Algum tempo depois nascia William, filho de Mary Jane e de Godwin. Embora as tertúlias intelectuais, políticas e artísticas continuassem, alguns assíduos frequentadores afastaram-se; as visitas da tia Hanna terminaram. Os que deixaram de aparecer lamentavam que a nova Mrs. Godwin em nada se comparasse à extraordinária Mary Wollstonecraft. A pequena Mary Wollstonecraft Godwin detestava a madrasta, sentia que a estreita relação que tinha com o pai (e com a mãe, através dele) lhe fora roubada.

Quando, aos dezasseis anos, Mary decidiu fugir com Percy Shelley, o poeta rebelde, que viria a ser reconhecido como um dos expoentes da segunda geração do Romantismo, a sua cultura era já vasta. Das cinco crianças que cresceram juntas, sob o teto protetor de William Godwin, onde a justiça, a ética, a cultura eram valores dominantes, Mary era olhada como a continuadora dos ideais republicanos e literários que imperavam na família.

A fuga foi um ato consciente de coragem e de determinação: Mary escolheu a paixão. Essa escolha representa uma ruptura brusca na vida de Mary Shelley; vai marcar todo o seu percurso futuro. Ainda que os pais se tivessem pronunciado contra as amarras que o casamento significava numa sociedade opressora, Godwin opôs-se-lhe categoricamente. Conhecia bem Percy – um jovem talentoso expulso de Oxford pela publicação de The Necessity of Atheism, influenciado pelos princípios godwinianos – que o visitava com a mulher, Harriet, como um discípulo que procura o mestre escolhido. Embora, na altura em que fugiram, Percy não vivesse com Harriet, esta estava grávida da segunda criança do casal. Após a fuga consumada, Godwin cortou relações com os fugitivos. Essas relações seriam, contudo, passados alguns anos, reatadas.

Nada faltou ao sabor romântico e romanesco de que esta fuga, no dia 28 de junho de 1814, se revestiu. Fugiram numa carruagem até Dôver, onde fariam a travessia do Canal da Mancha num pequeno veleiro. A tremenda tempestade que se levantou ameaçava naufrágio. À vista de terra, Percy exclamou: «Olha, Mary. O Sol ergue-se sobre França» (Feldman e Scott-Kilvert, 1995: 7). Em Calais, desembarcaram numa praia; lentamente, caminharam na areia até ao hotel, onde pernoitaram. Um hotel com história, aquele onde Laurence Sterne iniciara o seu livro A Sentimental Journey Through France and Italy. Por bagagem, levavam escassa roupa, muitos livros e pouco dinheiro. O seu destino era Uri, o berço da Confederação Helvética, precursora da moderna Suíça. Atraía-os a lenda de Guilherme Tell, os ecos da Revolução Francesa que ainda perduravam, o Iluminismo que nascera no continente europeu. Desejavam aí permanecer, fundar uma comunidade livre de preconceitos, em que os direitos das mulheres fossem reconhecidos. Deixavam com prazer a despótica Inglaterra.

Claire, a filha de Mrs. Godwin, acompanhava-os na fuga. Porquê, nunca ficou cabalmente esclarecido. Nenhuma carta, documento, apontamento em diários nos permite afirmar se Claire exigiu que a levassem na grande aventura, ou se pediu e o seu pedido foi naturalmente aceite (Stocking, 1968 e 1995). Certo é que Claire seria daí em diante uma presença constante nas vidas de Mary e Percy, Constantia Clairiae, como ironicamente se lhe referiam quando surgiam atritos entre Claire e algum deles.

O grupo era atraente. As jovens envergavam os seus vestidos de viagem de seda preta, como a moda exigia: «uma [Mary] esguia, frágil, não muito alta, de cabelo cor de fogo e ouro e profundos olhos de um cinzento-escuro-esverdeado, e outra [Claire], mais robusta, de cabelo preto e olhos negros vibrantes» (Queiroz, 2014: 21). Percy, nos seus 21 anos, alto, louro e de olhos azuis, olhar terno e franco, vestia «em consonância com a moda de um gentleman da época» (Bieri, 2008: 60), divergindo deste no modo despreocupado como usava a sua cara roupagem e no cabelo, que deixava crescer.

Os três deambularam pela Europa a pé, de burro, numa mula, em pequenos barcos de pescadores, ocasionalmente em diligências, dormindo onde podiam, comendo quando podiam. Como hippies (com século e meio de avanço), viveram seis semanas de felicidade plena, não exigindo mais da vida do que o amor que os unia, as paisagens que os extasiavam, a escrita, a permanente leitura, entre outros, de Shakespeare, de Mary Wollstonecraft, do abade Barruel que, embora crítico feroz das ordens maçónicas e dos Illuminati da Baviera, lhes fornecia dados preciosos, que os interessavam. Sentiam-se viajantes com uma missão, viam-se a dar os primeiros passos na construção de uma comunidade nova, livre de injustiças sociais. Muito ficou meticulosamente registado nos seus diários: no de Mary e Percy – Shelley and Mary’s Journal Book – e no de Claire.

Passadas seis semanas, o sonho caía por terra. Já não tinham dinheiro, não havia mais relógios ou correntes de ouro para vender. Rendidos, voltaram a Londres. Viver em Inglaterra não foi fácil. O escândalo da fuga alastrara, o anátema do pecado, do comportamento impróprio pesava sobre eles, sobretudo sobre ela: as portas dos amigos fechavam-se. Percy Shelley, filho de um barão rico, tinha más relações com o pai. As divergências políticas e religiosas eram incompatíveis. Primogénito, por lei herdeiro do baronato, obtinha, então, empréstimos causa mortis, a juros elevadíssimos, que lhe permitiam viver. A primeira criança, uma menina, nasceu prematura e morreria poucos dias depois. Mary teve um enorme desgosto. No seu isolamento, mudando de casa frequentemente para fugir a credores, nenhum deles descurava o trabalho: estudavam, liam, escreviam. Percy desgostava-se com o mau acolhimento que a sua poesia recebia dos críticos, com a repressão que o governo conservador exercia sobre os trabalhadores. Em breve, decidiram partir de novo.

Já com outro bebé, William, Mary e Percy, novamente acompanhados por Claire, deixavam Inglaterra a 3 de maio de 1816, com destino a Genebra. Aí deu-se o famoso encontro com Byron, que tivera em Londres uma breve relação sexual com Claire. Nas margens do lago Léman, o grupo de Mary arrendou uma simpática vivenda, Maison Chapuis. Byron, que apreciava o convívio com Shelley, instalou-se com o seu grupo, que contava com o seu médico John Polidori e o mordomo Fletcher, numa bela e vasta mansão, Villa Diodati. As duas casas ficavam a escassos passos de distância.

Além dos passeios de barco no lago, aos arredores e glaciares, extensamente documentados em poemas, cartas, diários e livros, as extraordinárias tempestades que se abateram sobre o lago nesse ‘ano sem Verão’ proporcionavam os longos serões no salão de Villa Diodati. Claire reatou temporariamente a sua relação com Byron; o belo jovem Polidori sentia-se atraído por Mary.

Na Villa Diodati falava-se de poesia, política, ciência, lia-se literatura gótica. Num desses serões, Byron propôs aos convivas que, cada um, escrevesse uma história de fantasmas. É curioso que, em lugar de um fantasma, um espírito, Mary tenha respondido ao desafio oferecendo a enorme criatura humana construída pelo Dr. Frankenstein, ou seja, um corpo, uma personagem profundamente materializada.

Este grupo com a sua aura de fama e escândalo atraía as atenções dos veraneantes britânicos, que enviavam relatos sobre o facto de Shelley viver com Mary e com a sua quase-irmã Claire, sobre a constante movimentação entre as duas casas e sobre os serões na Villa Diodati de onde, com frequência, só se saía no dia seguinte. Os jornais britânicos publicavam estes mexericos: o epíteto de ‘liga do incesto’ foi-lhes atribuído. Embora os principais visados fossem os poetas, a maledicência abrangia Mary, Claire, Polidori e chamuscava algum amigo mais próximo que ocasionalmente os visitava.

De volta a Londres, à reprovação social acrescentaram-se duas tragédias que a afectariam profundamente: o suicídio da sua meia-irmã Fanny e, dois meses depois, o de Harriet. Mary e Percy lutaram com todas as armas de que dispunham para ficar com a custódia dos filhos de Harriet e Shelley. A conselho de um advogado, mas contra os seus princípios, casaram. De nada lhes valeu, o casamento não apagava o passado; a custódia foi-lhes negada. No julgamento, o Lorde Chanceler Eldon trouxe a lume o ateísmo de Shelley, a sua posição política radical, a ‘liga do incesto’ a que pertenciam. Frankenstein saiu e a crítica conservadora não a poupou: construir uma criatura humana com pedaços de corpos humanos era blasfémia; dar-lhe vida sem intervenção divina era heresia.

Voltam com Claire ao continente europeu a 12 de março de 1818; o destino é Itália, onde permanecem, sempre temporariamente, em várias cidades. Com eles levam três crianças: os seus filhos William e Clara, que entretanto nascera, e Allegra, a filha que Claire teve de Byron. Mary reata relações com duas amigas da mãe – Mrs. Gisborne em Livorno, Mrs. Mason em Pisa –, importantes no reestabelecimento de elos afetivos com o passado. Dão-se com italianos, com alguns britânicos, com revolucionários gregos que preparam a libertação da Grécia do Império Turco. Criam raízes. Mais uma vez, associam-se a Byron, que, desde os tempos do lago Léman, não voltara a Inglaterra e vivia, agora, em Itália. Em Pisa, Mary funda com Percy Shelley, Byron e Leigh Hunt um periódico literário, irreverente, The Liberal. O fulgurante e talentoso círculo de Pisa em que se move vai ser apelidado por Southey ‘a escola satânica’. Os jornais conservadores britânicos ocupam-se a denegrir as suas imagens.

Se o estilo de vida intelectual e social que Mary manteve em Itália foi grandioso, a permanência nesse país foi igualmente intensa em tragédia: com intervalo de poucos meses, morrem os seus dois filhos – Clara com uma infeção intestinal, William de malária. Uma gravidez, que termina em aborto, quase a mata. Allegra, a filha que Claire tivera de Byron, morre de tifo. Várias vezes a depressão apodera-se dela e isola-se. Refugia-se no trabalho e escreve artigos, poemas e dois romances, Matilda e Valperga. Acompanha o trabalho de Percy, apoia-o com o seu juízo crítico e sereno; Byron pede-lhe conselho sobre a publicação das memórias que escreveu; copia muitas vezes os manuscritos dos dois poetas. No dia 8 de junho de 1822, Percy Bysshe Shelley morre num naufrágio, ao regressar de Livorno para casa, a Villa Magni no golfo de La Spezia, onde estão a passar o Verão. Percy tinha 29 anos, Mary 24.

Encerrava-se uma etapa fortíssima e determinante da sua vida. Com óbvia modéstia e generosidade, confidenciava no diário:

Durante oito anos comuniquei com ilimitada liberdade com alguém cujo génio transcendia a grande distância o meu, despertava e guiava os meus pensamentos. […] Agora estou só oh, tão só! […] Pensei em como tinha sido superiormente privilegiada ao estar unida a alguém a quem me podia revelar e que me podia compreender! Bem, agora estou reduzida a estas páginas brancas que mancho com negras imagens (Feldman e Scott-Kilvert, 1995: 429-30).

Mary lutou desesperadamente para se manter com Percy Florence Shelley, o filho que entretanto nascera e seria o único a sobreviver. Queria ficar em Itália com o filho, viver do seu trabalho de escritora, apoiar-se no afecto dos amigos, publicar a obra de Shelley, tão maltratada e tão mal divulgada; horrorizava-a a ideia de voltar a Inglaterra, onde iria encontrar a hostilidade da sociedade puritana e da família de Shelley, que a desprezava.

Mas Byron, que a apoiara depois da morte de Percy, decidira juntar-se à luta da Grécia e para lá seguiria, onde viria a morrer vítima de uma infeção, a 19 de abril de 1824. Os amigos dispersaram-se: alguns voltaram a Inglaterra; Leigh Hunt, numa situação financeira desastrosa, foi para Florença com a sua numerosa família; Claire juntou-se ao seu irmão Charles Clairmont em Viena, onde este vivia. Daí, viajou para a Rússia, onde trabalhou largos anos como precetora. O círculo de Pisa desmoronara-se.

Após um ano de luta para se manter com o filho em Itália, Mary reconhece que não consegue sobreviver. É com ansiedade que volta a Inglaterra, onde chega a 25 de agosto de 1823. O sogro, Sir Timothy, recusa-se a vê-la, mas acede a contribuir com uma pequena anuidade para a educação do seu neto Percy Florence, por quem se não interessa. Depois da morte do seu legítimo herdeiro, o poeta Percy Bysshe Shelley, o sucessor ao baronato é, por lei, Charles Bysshe Shelley, o primeiro filho de Percy e de Harriet. Sir Timothy já o instalara e orientava a sua educação em Field Place, a mansão ancestral dos Shelley, em Sussex. Contudo, quase com 12 anos, Charles morre com tuberculose a 14 de setembro de 1826. O facto de, agora, Percy Florence passar a ser o herdeiro dos domínios de Field Place não demove os avós, que pouco alteram o seu desinteresse pela educação do neto. Mary nunca se encontraria com a família do marido; Sir Timothy impõe que as negociações sejam mediadas pelo seu procurador e avisa Mary de que o apoio financeiro concedido não é mais do que um empréstimo, a ser pago com juros após a morte de Sir Timothy.

Mary escreve incessantemente. Publica o primeiro livro de poemas do marido: Posthumous Poems of Percy Bysshe Shelley (1824), bem aceite pelo público e pela crítica. No prefácio, onde promete a publicação de uma biografia do poeta para breve, dá conta da causa por uma sociedade socialmente mais justa, que orientou a vida e obra de Percy Shelley. Anota os poemas, referindo datas, dados biográficos e descritivos das condições pessoais, sociais e políticas subjacentes à origem de cada um, um trabalho que só ela, que acompanhara de perto a elaboração da obra de Shelley, poderia ter feito. Essa prática, inovadora na época, vai repeti-la uns anos mais tarde (1839-40), quando, finalmente, consegue publicar a obra completa de Shelley.

A organização da obra de Percy Shelley é reconhecida como um trabalho extraordinário. A partir de um amontoado de cartas, folhas de papel quase ilegíveis, amarelecidas pelo tempo, desorganizadas, muitas sem data, textos e poemas incompletos, Mary conseguiu criar, não um corpo humano como em Frankenstein, mas «um corpus literário póstumo» (Wolfson, 2003: 197). Para Emily Sunstein,

A edição de Mary Shelley da obra de Shelley afirmou-o como um dos maiores poetas ingleses e as suas notas continuam a ser uma mina para os estudiosos de Shelley. Tem sido dito que as tentativas de relacionar a obra de um poeta com as circunstâncias em que foi escrita teve origem nela (Sunstein, 1991: 345).

Susan Wolfson confirma esta apreciação ao comentar que «as suas edições constituíram um momento de viragem na receptividade [à obra] de Percy Shelley e influenciaram profundamente editores posteriores» (Wolfson, 2003: 209, n.12). Muriel Spark comenta que o facto de «as Notas de Mary terem sido incluídas na edição definitiva da poesia de [Percy] Shelley da Oxford é, possivelmente, o mais elevado reconhecimento que ela recebeu neste século [XX]» (Spark, 2002: 214).

Posthumous Poems teve êxito. As críticas foram favoráveis e, embora o nome de Mary não constasse como a organizadora e anotadora da obra, Mary era citada nos jornais de crítica literária. A fúria de Sir Timothy explodiu. Através do seu procurador, fez saber a Mary que, ou os exemplares ainda não vendidos eram retirados do mercado, ou não haveria qualquer apoio financeiro ao seu filho Percy Florence. O nome de Percy Bysshe Shelley não deveria aparecer a público enquanto Sir Timothy fosse vivo; nem tão pouco o de Mary Shelley. Ela e o filho não deveriam ausentar-se de Inglaterra. Esta sentença monstruosa foi, de certo modo, atenuada com a intervenção de Thomas Love Peacock, um amigo de longa data, na altura com uma posição socialmente respeitável aos olhos de Sir Timothy e do seu procurador. Peacock argumentou que Mary não poderia sobreviver com a miserável anuidade que lhe era concedida, que o seu nome tinha aparecido na imprensa porque era conhecida como escritora: Mary não assinara o livro. Sir Timothy reconsiderou, aumentou-lhe um pouco a anuidade e já não eram muitos os exemplares que restavam quando foram retirados das livrarias.

O poder de Sir Timothy, a lei que não defendia as mulheres, a terrível lembrança de que a custódia dos filhos de Harriet fora recusada, a si e a Percy, assustaram Mary. Os riscos que o filho e ela corriam eram demasiadamente sérios para não serem levados em consideração. Assim, Mary não ousou lançar-se na publicação imediata da restante obra.

Porém, o receio das represálias de Sir Timothy não a paralisou. Continuou a recolher e copiar poemas, textos, cartas dispersas de Percy; estava determinada a completar esse trabalho e esperava a ocasião certa para o fazer. Esta só ocorreu quinze anos após a publicação de Posthumous Poems. Entretanto, muitas publicações traziam poemas de Shelley, alguns secretamente fornecidos por Mary, e as edições piratas com os poemas de índole política, divulgadas entre as classes trabalhadoras e adoptadas quer pelos Cartistas quer pelos partidários da utopia de Owen, apareciam em grande quantidade, muitas vezes extratos, com os poemas deturpados ou com omissões. A poesia de Shelley chegara aos meios radicais americanos numa edição saída em Nova Iorque, em 1821; apareceram várias traduções em alemão, uma delas, mais tarde, da autoria do jovem Engels, quando fervilhavam os movimentos revolucionários de 1848. Sir Timothy convenceu-se, por fim, de que não conseguia esconder do público o nome e os poemas do filho: em 1839, Mary foi autorizada a publicar os restantes volumes, o que oferecia, ao menos, a garantia de que apareceria a púbico a obra fidedigna de Percy Bysshe Shelley.

Do mesmo modo, Mary continuou a escrever, embora não assinasse o que publicava. Além de romances, escrevia contos, crónicas, críticas, poemas para vários periódicos e anuários muito em voga na época. Os anuários eram álbuns destinados a serem presentes de Natal ou de aniversário, que saíam em novembro de cada ano e cujos textos contribuíram muito para o desenvolvimento do conto moderno. The Keepsake, onde Mary publicou muitos dos seus trabalhos, continha poesia, ficção, belas ilustrações; com larga difusão, a edição era muito cuidada e cara. A qualidade dos textos publicados pode ser avaliada pela crítica de The Athenaeum à edição de The Keepsake de 1829, ao assinalar «com aprovação a presença entre os seus colaboradores de Coleridge, Scott, Southey e Wordsworth, lado a lado com Mackintosh, Moore e Mrs. Shelley» (Williams, 2000: 129).

Mary Shelley colaborou com enorme prazer nos cinco volumes dedicados à biografia da prestigiada enciclopédia dirigida por Dionysius Lardner, The Cabinet Cyclopaedia. Lives of the Most Eminent Literary and Scientific Men of Italy, Spain and Portugal (1835-7) e The Cabinet Cyclopaedia. Lives of the Most Eminent Literary and Scientific Men of France (1838-9). Embora muitas contribuições para The Cabinet Cyclopaedia não fossem assinadas, foram já referenciados trinta e oito autores. No que toca aos volumes em que Mary Shelley colaborou, das sessenta e oito biografias de eminent men (em que estão incluídas quatro mulheres: Vittoria Colonna, Madame de Sévigné, Madame Roland e Madame de Staël), sessenta e uma foram identificadas como sendo da sua autoria. As biografias dos autores portugueses – Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, Francisco de Sá de Miranda, António Ferreira, Luís Vaz de Camões – saíram todas da pena de Mary, que menciona também Jorge de Montemor, o qual, ainda que escrevesse em castelhano, era português.

As contribuições para os anuários ostentam o cunho do seu estilo literário, da sua vasta cultura e ironia; contudo, era, em parte, a necessidade de ganhar dinheiro que levava Mary Shelley a escrevê-las. Além de serem textos encomendados, muitas vezes para acompanhar belas ilustrações previamente escolhidas (e não o contrário), ficava desesperada por não poder dar largas à sua imaginação e por ter um espaço limitado para expor as suas ideias:

Quando escrevo para eles, morro de preocupação para fazer as minhas coisas cada vez mais curtas – até me convencer que as pessoas apanham as ideias por intuição – e que é uma superstição considerar que as palavras são necessárias para a sua expressão (Bennett, 1995: 256),

lamentava-se Mary a Mrs. Gisborne.

Por outro lado, ao escrever as biografias para The Cabinet Cyclopaedia, entre 1834 e 1839, Mary sentia-se mergulhada na vida de autores que tão bem conhecia e tanto apreciava. Considerava o género biográfico o melhor meio para veicular a História. Uma historiografia convencional – que descrevesse a trama de conquistas militares e do poder monárquico, um amplo traçado dos movimentos nacionais na direção do progresso – não lhe interessava. Ainda que não desprezasse o rigor dos factos, Mary via na convergência entre a biografia e a História um meio de, através da vida passada, chamar a atenção para a política do tempo presente. As suas biografias consistem numa inserção do privado no contexto social, político e histórico, em que os afetos são parte integrante. Mary Shelley considera que a literatura biográfica deve «formar, tal como se fosse uma escola onde se estuda a filosofia da história» (Cit. in Kucich, 2003: 228). Para Johanna Smith, as «lições» históricas de Shelley antecipam claramente as críticas àquilo que as historiadoras feministas hoje designam «sistemas de sexo-género» que são «injuriosas para as mulheres» (Smith, 1996: 122).

As grandes causas da vida de Mary Shelley após a morte do poeta – publicar a obra de Percy Shelley, educar o filho, escrever – foram cabalmente conseguidas, maugrado a cruel rejeição de Sir Timothy. Percy Florence frequentou a public school de Harvard e licenciou-se em Cambridge; quando o avô morreu aos 90 anos, a 24 de abril de 1844, herdou o título de 3º barão de Castle Goring, bem como as propriedades da família Shelley. Sabendo que Field Place viria a pertencer a um neto que mal conhecia, bem como a Mary, que detestava, Sir Timothy deixou degradar o domínio; no seu testamento, doava todos os bens que a lei permitia à mulher, Lady Elizabeth Shelley, às duas filhas solteiras e ao filho mais novo. O rendimento com que Mary e Percy Florence ficaram não era suficiente para pagar as dívidas e cumprir os compromissos. Uma gestão cautelosa e o casamento, em 1848, de Sir Percy Florence com Jane St. John, agora a nova Lady Shelley, uma viúva que tinha algum dinheiro, alteraram radicalmente a vida de Mary. Voltou várias vezes a Itália, o país onde tinha querido viver e onde deixara as cinzas de Percy Shelley e de dois filhos. Os últimos anos de vida de Mary Shelley foram atormentados por cefaleias e paralisias temporárias, só mitigadas pela constante companhia de Percy Florence e pela grande amizade que uniam sogra e nora. Morreu, provavelmente com um tumor cerebral, a 1 de fevereiro de 1851. Tinha 53 anos.

Nas cartas e no diário, Mary lamenta muitas vezes a solidão da sua vida depois da morte de Percy. Contudo, embora não fosse recebida nos salões de uma elite convencional, que se escandalizava com o seu passado e com a heterodoxia da sua vida e da sua obra, conviveu com intelectuais e artistas, que a estimavam, ia ao teatro, à ópera, a concertos. Mary teve vários pretendentes, mas não voltou a casar. Os retratos que chegaram até nós e as memórias de autores seus contemporâneos, dão-nos uma ideia dos seus traços físicos e da recordação que deixava nos meios em que se movia.

Mary Cowden Clarke, filha de Vincent Novello, um músico de renome e organista na Capela da Embaixada de Portugal em Londres, menciona-a nos seus livros. Num deles, escreve:

Certamente, Mary Wollstonecraft Godwin Shelley era, então, a figura central de atenção aos meus olhos de jovem; e eu olhava para ela com imparável admiração tanto pelos seus encantos pessoais como pela sua distinção literária. [...] Para mim, concentrava o charme e o interesse que perpetuamente me excitavam e absorviam enquanto visitante da casa de meus pais. O meu pai tinha uma consideração especial por ela; e ela evidenciava uma estima por ele igualmente afectuosa (Clarke, e Cowden, 1878: 41).

 

Na opinião de Eliza Rennie, Mary era

 

Uma mulher muito interessante, adorável, [...] com uma pele requintadamente clara, olhos cinzentos; feições delicadas, [...] cabelo castanho-claro brilhante, sedoso na textura e luxuriante na profusão, pendendo em longos canudos sobre a sua face pálida e, apanhados atrás, caíam ondeados nos seus ombros; uma testa alta. [Tinha uma voz] baixa, suave, murmurante. […] Mas, com esta suavidade, não havia traços de indecisão nem de fraqueza [...], antes o mais firme propósito. Com afectos calorosos e fortes, [era] uma amiga sincera e fiel (Rennie, 1860: 106, 107 e 109).

 

Emily Sunstein escreve na sua excelente biografia:

 

A carreira de Mary Shelley traça toda a trajetória de uma vida Romântica e o seu significado especial está no seu papel tanto de protagonista da era gloriosa como no de um seu sobrevivente. A sua vida proporciona também um estudo aturado da ‘condição superior de ser mulher’, da criatividade literária e da problemática do feminismo Romântico. Durante o processo de estudo, esta biografia tornou-se um labor de respeito e convicção de que Mary Shelley constitui a sua própria reivindicação (Sunstein, 1991: 8).

Mary Shelley deixou-nos sete romances: Frankenstein: Or, The Modern Prometheus (1818 e 1831), Matilda (escrito em 1819-20, publicado pela primeira vez em 1959), Valperga; or, The Life and Adventures of Castruccio, Prince of Lucca (1823), The Last Man (1826), The Fortunes of Perkin Warbeck, A Romance (1830), Lodore (1835), Falkner. A Novel (1837). A sua carreira literária publicada em vida teve início e final com dois livros de viagens: History of a Six Weeks’ Tour through a Part of France, Switzerland, Germany, and Holland; with Letters Descriptive of a Sail round the Lake of Geneva, and of the Glaciers of Chamouni (1817), escrito em colaboração com Percy Bysshe Shelley, e Rambles in Germany and Italy, in 1840, 1842, and 1843 (1844). A sua obra inclui ainda um vasto número de contos, ensaios, críticas literárias e a coordenação de vários textos literários, com particular destaque para a organização e notas da obra de Percy Shelley.

A sua obra é inovadora. Com originalidade, «redefiniu a noção de ‘mistura de géneros’, desde uma amálgama de poema e prosa até a um estilo de prosa intercalada por longas reflexões poéticas, pelas quais foi quer aplaudida, quer recriminada» (Bennett, 2003: 211). As suas cartas privadas são muitas vezes transformadas em cartas ficcionadas para exprimir as suas convicções políticas e posições filosóficas (v.g. Rambles). Mary Shelley quebrava regras e convenções; a política e o poder, assuntos destinados aos homens, são frequentemente o foco principal dos seus romances; são também motivo para as ferozes críticas de que foi alvo. De modos muito diferentes dos de alguns escritores do Romantismo inglês, usou o género epistolar para associar questões públicas com privadas. As suas heroínas (v.g. Valperga e The Last Man) não estão exclusivamente encerradas na esfera doméstica, elas anseiam por liberdade e reconhecimento, defendem formas sociopolíticas democráticas, criticam abusos de poder, a descriminação das mulheres. As suas ficções são «arrojadas, heterodoxas e experimentais» (Schor, 2003: 3).

Frankenstein representa a antecipação dos perigos que a tão aclamada revolução científica do Romantismo encerra; dos riscos que provêm da intervenção tecnológica no mundo natural, motivada pela ambição (seja ela da fama, do poder político ou económico), na ausência de ética e de respeito pelo equilíbrio terrestre, na ausência do ‘princípio de precaução’. Hoje os resultados estão à vista. A noção de que a espécie humana e a Natureza se opõem e a de que o domínio da Natureza serve o bem da humanidade, como Francis Bacon anunciou no século XVII, está implícita na ambição do Dr. Frankenstein ao querer penetrar «nos mistérios da Natureza e mostrar como ela funciona nos seus recessos mais secretos», de «adquirir novos poderes quase ilimitados», de ter «domínio sobre os raios do céu, imitar o tremor de terra», de «zombar do mundo invisível» (Shelley, 2003: 38). É irónico que Mary Shelley tenha morrido no ano da Grande Exposição Industrial, no Crystal Palace de Londres: 1851. O olhar crítico de Mary Shelley sobre os benefícios dessa ciência sem fronteiras, considerada inquestionavelmente o triunfo da humanidade, não foi, contudo, inteiramente partilhado por Percy Shelley. «Uma pena na mão e os meus pensamentos afluem depressa» (Cit. in Bennett, 1995: xxix), disse uma vez Mary Shelley. Mary não foi, na verdade, Shelley’s Mary.

 

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Artigo recebido em 9 de março de 2014 e aceite para publicação em 1 de setembro de 2014.

 

Notas

1Clara Queiroz é membro do CFCUL, Ph.D. em Genética pela Universidade de Edimburgo, onde foi Research Fellow, Prof. Catedrática aposentada da FCUL, autora de artigos e capítulos, publicados em Portugal e no estrangeiro, sobre genética, bioética, ciência/sociedade, estudos sobre mulheres, e dos livros Ciência e Género. Quatro Textos de Quatro Mulheres (org. com T. Levy, CFCUL, 2005), Se Não Puder Dançar Esta Não É a Minha Revolução (Assírio & Alvim, 2008), Quem Tem Medo de Frankenstein? Viagem ao Mundo de Mary Shelley (Guerra e Paz, 2014).

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