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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.30 Lisboa dez. 2014

 

RECENSÕES

 

Stacey, Clare L. (2011), The caring self: the work experiences of home care aides, Ithaca and London, Cornell University Press, 199 páginas.

 

Joana Pimentel Alves1

1Universidade de Coimbra

 

The Caring Self: the work experiences of home care aides, de Clare L. Stacey, é um trabalho singular no âmbito dos estudos sobre o cuidado. Diferente por aquilo que escolhe observar, os/as cuidadores/as domiciliários/as remunerados, e pelo modo como o faz, optando por uma abordagem metodológica que combina entrevistas em profundidade com observação etnográfica dos contextos de produção de cuidado. O resultado é uma reflexão que traz a público quem cuida a partir do(s) espaço(s) onde o(s) cuidado(s) acontece(m), mas com interesse não só para quem estuda a produção do cuidado, como também os temas do trabalho, das desigualdades sociais e das questões de género.

Um dos pontos fortes desta obra é o seu objeto analítico. Pela sua invisibilidade social, os/as cuidadores/as domiciliários/as tendem a ser constantemente esquecidos/as pela academia, não tendo sido Stacey diferente a isto. Na introdução conta-nos como inicialmente não procurava fazer um trabalho sobre quem cuida, mas antes sobre os idosos e as pessoas com doenças crónicas, nomeadamente, aqueles/as com baixos rendimentos, com o objetivo de compreender como conseguiam viver num contexto que os invisibilizava. Algo que muda com a sua chegada ao terreno. «Na linha da frente do cuidado» confronta-se com outro tipo de invisibilidade, com a ausência de reconhecimento sentida por quem cuida, levando-a a mudar de objeto analítico (pp. 15-16). Vê surgir novas interrogações (p. 16), nascidas da observação de uma situação específica entre de Ruth e Annie, mas que trespassam largamente o âmbito daquela relação, e decide fazer uma (re)focalização teórica face ao seu projeto inicial. E isso dá um enorme peso à observação etnográfica no contexto desta obra.

Stacey propõe assim perceber como é que os/as cuidadores/as domiciliários pagos encontram significado e identidade no trabalho de cuidar – ao que chamou the caring self – dentro de um contexto de real desvantagem estrutural (pobreza, aumento do volume de trabalho, baixos salários e poucos benefícios).

O livro divide-se em duas partes. Na primeira parte, em dois capítulos, procura perceber os percursos dos/as cuidadores/as e como estes influenciam a sua relação com o cuidado. Conclui serem transversais a todas as pessoas que entrevistou duas coisas: o contexto de desvantagem estrutural que estão sujeitas e a existência de experiências passadas como cuidadores/as informais.

No primeiro capítulo, «Os custos do cuidado» (pp. 24-42), faz uma discussão sobre a correlação entre a desigualdade social (de origem) dos/as cuidadores/as e a prestação de cuidados domiciliários. A história de Lette, uma mexicana emigrada nos EUA, torna evidente como fatores políticos, económicos e biográficos «empurram» determinadas pessoas para a única atividade disponível no setor dos serviços, um trabalho que é desigual, invisível e mal pago. Quem aceita este trabalho são especialmente mulheres com baixos níveis de escolaridade e provenientes de contextos desfavorecidos, para as quais não existem outras alternativas, e cuja aceitação do trabalho presente não permite suplantar as suas condições de origem, pelos baixos salários auferidos e pelos benefícios serem praticamente inexistentes.

Através das biografias dos/as cuidadores/as Stacey percebe que, embora os cuidados se alimentem das desigualdades estruturais, quem cuida encontra significado e identidade no trabalho de cuidar. A análise das «trajetórias de cuidado» revela assim que a maioria dos entrevistados/as havia cuidado de alguém que lhes era próximo antes de se tornarem cuidadores/as formais. A sua familiaridade com o fenómeno acaba a ser usada como justificativa para posição atual. Cuidar é uma competência «natural» que mobilizaram inicialmente para cuidarem gratuitamente dos mais próximos e que agora serve de mais-valia para desempenharem um papel no mercado de trabalho pago. Mas ao colocarem a enfâse na «naturalidade», ao invés de evidenciarem os constrangimentos que no passado os/as leva-ram a assumir obrigações de cuidado, parece não existir consciência da sua parte, nomeadamente das mulheres, da pressão cultural para cuidar.

No segundo capítulo (pp. 43-84), conhecemos melhor, através de uma descrição etnográfica, como são prestados os cuidados. A natureza e a intensidade (física e emocional) das tarefas desempenhadas, levam Stacey a referir-se ao cui-dado domiciliário pago como um «trabalho sujo». «Sujo» mais pelos impactos negativos, do que pela natureza das atividades: pelo desgaste físico, psicológico, pelos baixos salários e pela ausência de proteção social, quem cuida está sujeito a um trabalho muito exigente e pesado que nem sempre consegue gerir. Apesar disso, as pessoas desenvolvem laços entre si, que valorizam nos seus discursos, e isso complexifica as relações. Cuidar dia e noite de pessoas (muito) dependentes não é fácil e muitos fazem-no durante mais horas que aquelas que estão estabelecidas nos seus contratos de trabalho, sem exigirem qualquer tipo de compensação financeira por isso. A componente emocional é valorizada e as razões utilitaristas parecem nem entrar na equação quando a autora os/as interroga sobre as relações que estabelecem com quem cuidam. Por mais «sujo» que seja o trabalho, só os laços (afetivos) parecem importar.

A segunda parte da obra inicia com o terceiro capítulo. Neste refletem-se «As recompensas de cuidar» (pp. 85-136). Num trabalho tão duro e tão desigual, parece não haver lugar a recompensas (positivas). Mas, como ficou evidente no último capítulo, quem cuida aprende a valorizar a componente afetiva e isso torna-se o elemento chave para a construção do the caring self (pp. 107-125): uma identidade situada que permite aos/às cuidadores/as «(...) comunicarem a si mesmos e aos outros que o seu trabalho é motivado por razões altruístas e de grande qualidade» (p. 107). Percebe-se, assim, o porquê destas pessoas continua-rem a cuidar apesar do estigma e exploração de que são alvos. Cai por terra a certeza generalizada de que estas pessoas cuidam porque não existem melhores alternativas de trabalho? Não, pois é certo que tal acontece. No entanto, o reconhecimento da existência do the caring self mostra-nos um outro lado da realidade, muitas vezes esquecido neste tipo de estudos: muitas pessoas escolhem fazer este trabalho. Claro que a formação desta identidade não é inume a fatores como a raça, classe e o género, e que estes são cruciais para o modo como se realizam e sentem no trabalho: mulheres e homens sentem e realizam o seu trabalho diferentemente, e as cuidadoras afro-americanas experienciam situações de descriminação racial que afetam profundamente o modo como cuidam e a narrativa sobre o cuidado.

Em «Organizando o cuidado domiciliário» (pp. 137-155), quarto capítulo, Stacey explora a questão da defesa dos trabalhadores deste setor, especificamente através da sua sindicalização. A autora conclui que seria importante ouvir a voz destas pessoas e dar-lhes destaque nas investigações sobre o trabalho e sindicalismo, o que não tem acontecido. Percebe também que poucos/as trabalhadores/as estão sindicalizados e que existe um desfasamento entre os interesses destas pessoas e a agenda dos sindicatos.

Na «Conclusão: melhorar as condições de prestação do trabalho pago» (pp. 156-169), Stacey sumariza as principais questões debatidas nesta obra, com destaque para as questões sobre a identidade e a desigualdade existentes no cui-dado domiciliário. Deixa ainda um importante alerta sobre o the caring self: é que embora este reforce o compromisso entre os/as cuidadores/as e as pessoas cuidadas, ele é «perigoso» nomeadamente para as mulheres. E não deixa de explicarnos porquê: para Stacey este essencializa o papel das mulheres como cuidadoras, focando as suas competências naturais para cuidar e obscurece aquela que, no seu ponto de vista, deveria ser «a» questão: a remuneração digna do trabalho de cuidar.

No início deste texto, disse que a obra de Stacey interessava a um público mais amplo que aquele que à partida o título parecia anunciar. A recensão agora a chegar ao fim, dá conta da complexidade das questões trazidas por esta obra e dos muitos contributos que nos deixa. Stacey coloca em evidência aspetos muitas vezes esquecidos nos trabalhos sobre a produção de cuidado. Destaque para os «percursos de cuidado» dos/as cuidadores/as, essenciais para compreendermos como quem cuida vê o cuidado e ao seu papel, ou a importância do contexto em que o cuidado é produzido para percebermos o modo como as relações se desenvolvem, a relevância dada aos laços afetivos desenvolvidos nas relações de cui-dado e papel que assumem na construção do the caring self. Não obstante, Stacey esquece outros aspetos que tornariam o seu trabalho ainda mais interessante. Em primeiro lugar, dá pouca relevância ao papel da pesquisa etnográfica para esta investigação, apesar desta ter sido uma mais-valia para a realização deste trabalho e um dos aspetos que o tornam atípico. Depois, apesar da importância dada aos laços afetivos para perceber o que leva as pessoas a cuidarem, a autora esquece um contributo teórico que lhe teria sido muito útil para aprofundar esta questão.

Refiro-me ao paradigma da dádiva. Por fim, penso que seria de esperar mais discussão teórica feminista por parte de uma autora que tem trabalhado a questão. A obra em tudo teria ganho com uma maior problematização sobre a questão entre o cuidado e as mulheres e a recuperação de teóricas como Carol Gilligan, Joan C. Tronto, Eva Feder Kittay, ou o trabalho de Nancy R. Hooyman e Judith Gonyea que segundo o olhar crítico da perspetiva feminista analisa a prestação de cuidados nos Estados Unidos.

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