SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número34EditorialFeminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.34 Lisboa dez. 2016

 

DOSSIER: PERSPETIVAS INTERDISCIPLINARES SOBRE O FEMICÍDIO

Femicídio: o fim da linha da violência de género

Sofia Neves*

 

* Instituto Universitário da Maia, 4475-690 Maia, Portugal; Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1300-663 Lisboa, Portugal. E-mail: asneves@ismai.pt. Endereço: Avenida Carlos de Oliveira Campos – Castêlo da Maia, 4475-690 Maia, Portugal.

 

À Fátima, uma das muitas vítimas de femicídio em Portugal que não soubemos proteger.

A violência de género é hoje considerada um dos maiores flagelos sociais à escala mundial. Definida pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica como «(…) um dos mecanismos sociais cruciais através dos quais as mulheres são mantidas numa posição de subordinação em relação aos homens» (CE 2011, 3), a violência de género configura um sério atentado aos Direitos Humanos e um grave problema de saúde pública. Atingindo desproporcionalmente as crianças e as jovens do sexo feminino, assim como as mulheres adultas, manifesta-se de for-mas variadas, em diferenciados contextos socioculturais e políticos, culminando a sua expressão mais severa e gravosa na morte das vítimas, i.e., no femicídio (UNODC 2013).

Recuperando a resolução n.º 68/191 de 18 de dezembro de 2013, a Assembleia Geral das Nações Unidas ratificou, em dezembro de 2015, a resolução 70/176 – Taking action against gender-related killing of women and girls – no âmbito da qual reconhece a prevalência global das diferentes formas de assassinato de meninas e de mulheres baseadas no género (UN 2016).

Fruto de relações sociais de género estruturalmente assimétricas, o femicídio é uma realidade expressiva que se materializa em múltiplas tipologias tais como o assassinato de mulheres como resultado da violência entre parceiros, a tortura e o homicídio misógino, a morte de meninas e de mulheres por razões de honra, o homicídio em situações de conflito armado, o assassinato associado ao dote, a morte por motivos de orientação sexual e/ou identidade de género, o homicídio de mulheres aborígenes e indígenas pela sua pertença de género, o infanticídio de meninas e a seleção sexual por via do feticídio, a morte associada à mutilação genital feminina e à feitiçaria e demais assassinatos relacionados com o crime organizado, a ação de gangues, o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas e o tráfico de armas (Laurent, Platzer, and Idomir 2013).

A utilização da expressão femicídio – originalmente cunhada por Carol Orlock e resgatada mais tarde por Diana Russell, aquando do seu testemunho no Primeiro Tribunal Internacional sobre os Crimes contra as Mulheres, em 1976, na Bélgica – visa pois acentuar e, por consequência, problematizar a dimensão genderizada do homicídio de mulheres, traduzindo assim a politização de um fenómeno que tem na sua base profundas desigualdades objetivas e simbólicas (Russell, 2001). Segundo Russell (2008), o femicídio tende a ser cometido por parceiros ou ex-parceiros, por familiares, por conhecidos ou por estranhos das vítimas.

Inspirada nos trabalhos teóricos e empíricos de Diana Russell e de Jill Rad-ford, Marcela Lagarde y de los Ríos viria, em 1994, a resignificar o termo femicídio propondo a utilização do conceito de feminicídio (Lagarde y de los Ríos 2006). De acordo com a antropóloga feminista mexicana o feminicídio não apenas se refere ao homicídio de mulheres – em castelhano femicídio é a expressão homóloga de homicídio – mas ao conjunto de violações dos seus direitos humanos. Na sua ótica, o termo feminicídio, mais amplo e mais genérico do que femicídio, enfatiza a permissividade dos Estados no que concerne ao genocídio das mulheres, bem como à impunidade dos agressores. É assim colocada a ênfase na revitimação das mulheres no seio do sistema de justiça, responsabilizando-se os governos pelos sucessivos processos de discriminação e de violência de género que, neste contexto, corporizam crimes contra os Estados.

Apesar desta resignificação, ambos os termos são hoje empregues, muitas vezes até como sinónimos. Dependendo da região e do respetivo contexto político, quer o termo femicídio, quer o termo feminicídio têm servido para reivindicar direitos e liberdades fundamentais, estando mesmo plasmados em alguns códigos penais.

Mais problemática do que a ausência de consenso sobre que termo melhor descreve a realidade do assassinato de mulheres, parece ser a cegueira de género que caracteriza não somente os mecanismos de coleta de dados em matéria de violência contra as mulheres, como a sua análise. Na verdade, muitos países falham na adoção de uma lente de género na compreensão do crime de homicídio contra as mulheres, deixando de lado os fatores estruturais que o enquadram.

Muito embora a prática do femicídio não se cinja à esfera das relações familiares ou de intimidade, é nela que é mais recorrente. Com efeito, o femicídio perpetrado por parceiros ou ex-parceiros é o mais prevalente de todos os tipos de femicídio (Alvazzi del Frate 2011) sendo o fim da linha, não raras vezes, de histórias prévias de vitimação cujos desfechos se faziam adivinhar. Estima-se que uma em cada duas mulheres seja morta por um parceiro ou por um membro da família (UN 2016).

A designada criminalidade passional – termo frequentemente usado pelos media para caracterizar o femicídio, desenquadrando-o de uma matriz analítica culturalmente informada – não apenas engrossa as estatísticas criminais como ocupa, quase que diariamente, o palco mediático nacional e internacional. Sob o pretexto do ciúme, da dependência de substâncias, da doença mental ou da impulsividade dos agressores, da negligência das vítimas ou da ineficácia do sistema, as notícias sobre os crimes pretensamente motivados pela paixão ou pelo amor doentio são cada vez mais frequentes, deixando a descoberto uma realidade que, ainda assim, está longe de ser fielmente retratada. Casos de mulheres mortas após a rutura das relações, na sequência da apresentação de queixa ou da determinação de medidas de coação de afastamento ou de vigilância eletrónica, dão conta da urgência de se investir, por um lado, na criação de uma cultura de tolerância zero face à violência, que desafie as condições de sustentação das assimetrias de género e, por outro, no aperfeiçoamento de medidas de proteção às vítimas e de inibição da conduta dos agressores.

Este número especial da ex æquo – Perspetivas Interdisciplinares sobre o Femicídio – apresenta um conjunto de textos que permite, para além da caracterização de diferentes tipos de femicídio, em vários países (Brasil, México, Portugal, Índia e Espanha), o seu enquadramento cultural e a reflexão em torno dos seus impactos pessoais e sociais, nomeadamente do ponto de vista da denúncia e das narrativas mediáticas produzidas pela imprensa escrita. O primeiro texto, Feminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista, da autoria de Tânia Teixeira Laky de Sousa, discute o fenómeno à luz do debate jurídico, pontuando a necessidade de se adotarem leis específicas que respondam às necessidades das mulheres. A autora alude aos dados da realidade brasileira, invocando a Lei Maria da Penha em vigor no país desde 2006.

O segundo texto, Femicide of girls in contemporary India, da autoria de Shalva Weil e Nishi Mitra vom Berg, retrata o femicídio na Índia, apresentando uma análise da cultura subjacente às práticas de violência de género e problematizando o estatuto minoritário das meninas e mulheres naquele contexto.

O terceiro texto, de Patrícia Alves Lobo, intitulado O Feminicídio de Juárez: alterações económicas, narrativas sociais e discursos coloniais na fronteira dos EUA e México, discorre sobre os impactos do Acordo de Comércio Livre da América do Norte na situação das mulheres mexicanas, assim como sobre as narrativas sociais patriarcais que legitimam a violência de género a que estão sujeitas.

O quarto texto, Análisis psicosocial de las barreras que dificultan la denuncia: el caso de los femicidios íntimos en España, de Victoria A. Ferrer Pérez e Esperanza Bosch Fiol, reflete sobre o diminuto número de denúncias efetuado às autoridades espanholas, apontando as razões que o justificam, nomeadamente os parcos recursos comunitários e jurídicos no que concerne ao atendimento das vítimas.

O quinto texto, Narrativas mediáticas sobre o femicídio na intimidade: análise de um jornal popular português, da autoria de Sofia Neves, Sílvia Gomes e Dircelena Martins, apresenta a análise e a caraterização de notícias sobre o femicídio na intimidade, publicadas entre 2011 e 2014 no jornal popular português Correio da Manhã, discutindo as possíveis implicações das narrativas mediáticas na construção social do crime e na manutenção de estereótipos de género a ele associados.

O sexto texto, Changing representations of intimate partner femicides by a Portuguese newspaper (2006 and 2014): From episodic to thematic frames, de Carolina Magalhães-Dias e Soraia Lobo, discute as representações mediáticas dos femicídios nas relações de intimidade a partir da análise das notícias publicadas num jornal diário generalista português, nos anos de 2006 e de 2014.

Sendo o campo de estudos sobre o femicídio complexo e denso, e simultaneamente recente e pouco amadurecido, espera-se que um número temático como este abra caminho a reflexões profundas e críticas, capazes de iluminar a ação no sentido da prevenção e do combate à violência de género.

 

Referências Bibliográficas

Alvazzi del Frate, Anna. 2011. «When the victim is a woman». In Global Burden of Armed Violence, Geneva Declaration, 114–144. Disponível no endereço http://www.genevadeclaration.org/fileadmin/docs/GBAV2/GBAV2011_CH4.pdf . [Consultado em 1 de julho 2016].         [ Links ]

Conselho da Europa. 2011. Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Lisboa: CIG.         [ Links ]

Lagarde y de los Ríos, Marcela. 2006. «Del femicidio al feminicidio». Desde el jardín de Freud 6: 216-225. Disponível no endereço http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/jardin/article/view/8343/8987 [Consultado em 17 de julho 2016].         [ Links ]

Laurent, Claire, Michael Platzer, and Maria Idomir. 2013. Femicide: A Global Issue That Demands Action. Vienna: Academic Council on the United Nations System (ACUNS) Vienna Liaison Office.         [ Links ]

Russell, Diana. 2001. «Defining femicide and related concepts». In Femicide in Global Perspective, editado por Diana Russell e Roberta Harmes, 12–25. New York: Teachers College Press.         [ Links ]

Russell, Diana. 2008. «Femicide: Politicizing the Killing of Females». In Strenghtening understanding of femicide. Using research to galvanize action and accountability. editado por Program for Appropriate Technology in Health (PATH), InterCambios, Medical Research Council of South Africa (MRC), and World Health Organization (WHO), 26–31. Washington: PATH, InterCambios, MRC and WHO. Disponível no endereço https://www.path.org/publications/files/GVR_femicide_rpt.pdf [Consultado em 19 de novembro 2016].         [ Links ]

UN. 2016. Resolution adopted by the General Assembly on 17 December 2015. 70/176. Taking action against gender-related killing of women and girls. UN.         [ Links ]

UNODC. 2013. Global Study on Homicide 2013. Trends, contexts, data. UNITED Vienna: Nations Office on Drugs and Crime. Disponível no endereço https://www.unodc.org/documents/gsh/pdfs/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf [Consultado em 15 de julho 2016].         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons