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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.36 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

 

Como ser uma Ragazza: Discursos de sexualidade numa revista para raparigas adolescentes, de Sara Isabel Magalhães. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016, 353 pp.

 

Nuno Santos Carneiro

Membro do Centro de Psicologia da FPCE na Universidade do Porto – Bolseiro de Pós-Doutoramento da FCT (SFRH/BPD/68661/2010), Portugal

 

 

Resultando da Tese de Doutoramento com o mesmo título e agora editado em livro, este trabalho apresenta-se como contributo inestimável em «áreas como a educação, saúde, a sexologia, as ciências da comunicação, a sociologia, a filosofia, estudos culturais e de mulheres, estudos feministas, para nomear apenas algumas» (p.4).

Não fosse já bastante esta abrangência de campos de investigação e de pensamento para justificar uma recensão, desde logo se sublinha o interesse do livro para uma aproximação criteriosa a um objeto de investigação que, como diz a autora, é ainda muito pouco explorado em Portugal: a análise de revistas femininas para raparigas.

A mestria que Sara Magalhães imprime a este objeto de análise é transversalmente reiterada no livro: tanto o enquadramento epistémico e teórico-conceptual, quanto o pertinente Estudo apresentado ajudam e incitam a refletir cuidadosamente sobre muitas das atuais discussões em torno dos géneros (note-se que é no plural que destes se fala) e dos processos de construção social que (discursivamente) sustentam esta construção. Em torno de tais processos, o livro enaltece as leituras feministas críticas para que não apenas mulheres e homens possam encontrar modos relacionais igualitários entre si, mas também para «ir além das diferenças entre os sexos dando mais atenção […] à diversidade existente entre as mulheres e entre os homens, tentando compreender a importância de fatores sócio-históricos e contextuais no desenvolvimento pessoal e identidade de género» (p. 47). De visões rígidas e separatistas sobre o que possa entender-se como «género( s)» estão também os feminismos cheios, pelo que mais ainda vale a pena ler-se o trabalho aqui versado.

Este olhar feminista crítico aporta contribuições de relevo para o entendimento enriquecido da adolescência, numa estreita relação com o contextualismo desenvolvimental pondo, em primeira instância, o dedo na ferida que é essa tradição androcêntrica própria das abordagens desenvolvimentais. Este contextualismo leva-nos também, por mãos deste trabalho, à compreensão ampla do tão nefasto condicionamento que os contextos em que nos movemos jogam sobre o desenvolvimento psicológico. Resulta isto no facto de «que as alternativas de construção pessoal são restritas ao considerado socialmente adequado» (p. 36), restrição que os estudos feministas sobre raparigas, tão exemplarmente sintetizados neste livro, reificam ao fazerem-nos (re)reconhecer as «raparigas adolescentes enquanto grupo heterogéneo de indivíduos sujeito a uma homogeneização cultural penalizante reificada pela sociedade patriarcal» (p. 54).

Nos domínios da saúde e da educação, e em particular da educação para a sexualidade, as propostas de Sara Magalhães permitem a aquisição de um saber necessariamente implicado (como sempre tem de desenhar-se e fazer-se o conhecimento que queira apelar-se de crítico), ainda crassamente em falta quando nos aproximamos daqueles domínios. Sem o pano de fundo ideológico que esta obra tão bem sabe integrar, continuaremos a acolher perspetivas negativas, culpabilizantes, moralizadoras, conservadoras e adstritas ao determinismo biomédico em vez de, como é desejável e necessário, sermos capazes de «identificar o mecanismo social que interliga sexo e género, configurando socialmente masculinidades e feminilidades» (p. 67). Continuaremos, pois, a investir em modalidades ineficazes de intervenção na educação e na saúde enquanto permanecermos negligentes face à diversidade humana.

Nisto, o livro em foco é também de enorme relevância para quem se interesse por e/ou se implique nestes terrenos de pensamento e de praxis, ao sublinhar o substrato social e político das escolhas comportamentais que jovens raparigas e rapazes fazem, com custos para a (sua) saúde e para o (seu) bem-estar, quando esta visão crítica, localizada, contextual não é conhecida ou contemplada.

São também revistos os estudos sobre os media e a sexualidade na adolescência, dando-nos a possibilidade de compreender como este (apenas aparente) nicho de mercado veicula modos performativos de produção e de cristalização (das conceções) dos géneros, sempre com uma penalização particularmente acentuada das raparigas, das suas sexualidades, do seu viver humano. Em palavras mais exatas, este trabalho não esquece as «conjunturas de poder macro e micro-sociais que constrangem assimetricamente a construção pessoal de cada um e reificam desigualdades que penalizam o feminino» (pp. 44-45).

Neste exímio e consistente trabalho de revisão, análise e reflexividade, se enquadra o estudo empírico apresentado. Cabe, desde logo, realçar a incursão iniciática nas epistemologias críticas que a introdução ao estudo permite, introdução que ao mesmo tempo oferece possibilidades de aplicação concreta a quem já se familiarize com tais epistemologias.

Na intrincada relação sempre estabelecida entre estas epistemologias e a(s) análise(s) do discurso, Sara Magalhães adota como eixo central de abordagem metodológica das revistas para raparigas a análise foucauldiana do discurso. Mais uma vez, o trabalho desenvolvido se revela de importância maior para um contacto de qualidade com as possibilidades analíticas nele avançadas, a que se junta a complementaridade destas possibilidades face às já mencionadas implicação e contextualização inerentes ao conhecimento crítico. Mais particularmente, o cuidado investido na análise apresentada relativamente à definição das orientações de ação, deposicionamentos e de práticas, vem sustentar oportunidades ricas de edificação de modos mais justos, igualitários e emancipatórios de relação entre os géneros e de oposição à «subjugação a valores construídos histórica e socialmente [inclusive através dos media] e que se mantêm como opressores, sobretudo das mulheres» (p. 307).

Em tempos como os que vamos vivendo, marcados pela reemergência de posicionamentos de desvalorização da diversidade humana (quando não explicitamente atacantes desta diversidade), mais não seria preciso dizer para justificar um elogio maior a trabalhos de investigação como este.

Mostrando, afinal, que nada há de essencial no que se tem tentado estabelecer como o essencialismo do género, Sara Magalhães nunca esquece os modos de construção das subjetividades, nem como esta construção (ainda) se faz por intermédio de julgamentos negativos, de exclusões e de marcas discriminatórias sobre quem escapa ao que é estabelecido como norma. Uma norma, assim mostra exemplarmente este trabalho, que continua a pautar-se pela imposição desumanizada e desumanizante da heteronormatividade, da heterossexualidade compulsória, da maternidade, da monogamia, da obrigatoriedade da relação romântica para a (re) validação de si.

Encerremos, pois, com palavras que abrem este livro e que dizem, em si mesmas, o que é preciso dizer: que é imperioso »refletir sobre as representações [mediáticas e outras] das raparigas […], porque a forma como constituem a adolescência no feminino constrói certas posições de sujeito como insuportáveis, incompreensíveis ou mesmo incompatíveis com o que consideram ser a rapariga «normal»» (p. 3).

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