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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.38 Lisboa dez. 2018

 

RECENSÕES

 

Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violação sexual, de Isabel Ventura, Lisboa: Tinta da China, 2018, 480 pp.

 

Maria Clara Sottomayor

Juíza Conselheira do Tribunal Constitucional

 

 

Isabel Ventura, na sua tese de doutoramento, agora publicada na Tinta da China, Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violação sexual, deixa-nos um estudo interdisciplinar fascinante e rigoroso sobre as teorias da violação e sobre a história jurídico-legal da violação em Portugal, cruzando a sociologia e o direito, com base em fontes legais, jurisprudenciais, doutrinárias e políticas. A autora dedica o trabalho a todas as vítimas de violência sexual: às que suportaram a via sacra (e as humilhações) de um processo judicial, e às que que estão ainda em silêncio, e àquelas para quem o prazo de seis meses para apresentar queixa não foi suficiente. Estas são a maioria: como demonstra o inquérito feito, na União Europeia, a 48 000 mulheres, em que só cerca de 13% das vítimas de violência sexual a denunciam ao sistema (FRA – Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2014).

A obra constitui um poderoso desafio à Justiça e a toda a sociedade porque denuncia a presença, ainda hoje, dos mitos e dos preconceitos em torno da violação, fornecendo-nos a perspetiva da vítima, silenciada na história.

A autora escolheu a imagem da Medusa – uma figura mitológica da cultura greco-latina, violada por Poseidon, o deus do mar – para simbolizar o estigma sofrido pelas mulheres vítimas de violação ao longo da história. Ser vítima de violação transformou Medusa, uma jovem de uma beleza rara, numa criatura feia e abjeta, condenada ao abandono e à solidão por Atena, a deusa da guerra. Esta figura feminina lendária encarna assim os danos psicológicos, sociais e relacionais causados às mulheres vítimas de violação: o dano da confiança, o dano do abandono, o dano da perda de autonomia, o dano da exposição, o dano do isolamento e da rutura com o mundo, o dano da impotência, do medo e da vergonha, o dano da perda da autoestimaauto-estima. Estes danos não têm tido reflexo na narrativa judicial, na doutrina penalista ou nos tratados dos comentadores e só recentemente são conhecidos pela ciência e classificados como stress pós-traumático, tal como os danos sofridos pelos veteranos da guerra e pelas vítimas de tortura (Judith Herman, Trauma and recovery, 1992)

O livro divide-se em duas partes. Na primeira parte, intitulada «Teorias da Violação», a autora identifica os principais discursos sobre a etiologia da violação, respondendo à pergunta normalmente feita pelas comunidades, «Porque é que alguns homens violam», através da descrição das diferentes abordagens sobre esta questão – a perspetiva evolucionista e as perspetivas feministas –, rejeitando a tese biologista do impulso sexual masculino e aderindo à tese da socialização em práticas e crenças, acompanhada da objetificação do corpo das mulheres e da negação da sua condição de sujeito. Analisa a violação como uma questão de género – os violadores são homens; as vítimas são mulheres – e denuncia a omnipresença da cultura da violação, que encoraja a agressão sexual masculina das mulheres e responsabiliza as vítimas pela violência sofrida. Descreve os estudos antropológicos que concluem que a violação é usada como uma forma de intimidação das mulheres, de iniciação sexual, de punição e disciplina, salientando o papel decisivo do pensamento feminista na denúncia dos mitos da violação. Como diz Susan Brownmiller (1975), citada pela autora, «Percebi que a ameaça de violação tinha afetado profundamente a minha vida, de uma forma que preferia ignorar». É que mesmo as mulheres que tiveram a sorte de não terem sofrido uma violação têm de viver com o medo da violação no seu quotidiano, e este medo faz parte da sua identidade, da sua existência e influencia a sua relação com os outros e com o mundo. Erradicar da sociedade a cultura da violação, mudar a vida das vítimas e a forma como estas são percecionadas muda a vida de todas as mulheres e ajuda a garantir a liberdade de todas.

A segunda parte, intitulada «A lei e a Violação», incide sobre a história jurídico- legal do crime de violação, desde o período das Ordenações até às últimas reformas legislativas do Código Penal impostas pela Convenção de Istambul, e subdivide-se nos seguintes capítulos: A força das palavras e as palavras da lei. As leis antigas. As ordenações; As reformas penais oitocentistas; O estatuto jurídico- -penal feminino (de 1852 ao 25 de Abril); Código Penal de 1982; Crimes sexuais: crimes ético-sociais; Violência e resistência feminina; O novo milénio; Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual; Da coação ao assédio.

Isabel Ventura explica como, apesar da instauração da democracia em Portugal, o Código Penal de 1982 manteve os preconceitos do passado, por exemplo, a definição da violação como cópula vaginal e o género feminino da vítima; a abolição da imunidade do marido que viola a mulher, mas a consagração de uma atenuante especial da pena por provocação da vítima. Descreve também o alargamento gradual, nas reformas de 1995, 1998 e 2007 dos comportamentos incriminados no tipo legal de violação, a mudança de paradigma em 1995, com a inclusão dos crimes sexuais nos crimes contra as pessoas e contra a liberdade sexual, abandonando o legislador a sua anterior qualificação como crimes contra valores ético-sociais e coletivos, a autonomização do crime de abuso sexual de crianças e a tipificação do crime de coação sexual. Em 2007, salienta o aumento do prazo de prescrição dos crimes contra a autodeterminação sexual de menores, a criminalização da posse de pornografia infantil e a natureza pública dos crimes contra a autodeterminação sexual de menores. Por último, refere, na reforma de 2015, o alargamento da importunação sexual, da violação e da coação sexual, as causas de inibição das responsabilidades parentais e da prática de profissões com contacto regular com crianças, aplicadas aos indivíduos condenados por crimes sexuais contra menores, frisando as insuficiências e ambiguidades do legislador democrático, que acaba por ficar aquém daquilo que as necessidades das vítimas reclamam e do que é imposto pela Convenção do Conselho da Europa sobre o combate contra todas as formas de violência contra mulheres e meninas (Convenção de Istambul)

O Direito, enquanto lei e jurisprudência, tem o poder de nomeação, recontando os factos vividos pelas vítimas e por quem as agrediu, em narrativas centradas nos agentes ativos, anulando os sentimentos da vítima e a sua condição de pessoa. Em toda a obra, a autora denuncia os preconceitos do discurso jurídico em relação às vítimas – a culpabilização e o mito da provocação da vítima, os crimes precipitados pela vítima e o ónus de resistência da vítima – explicando que a forma como a lei penal foi escrita, em termos históricos, até hoje e ainda hoje (sobretudo a forma como é interpretada e aplicada), exclui a maioria das experiências de violação vividas pelas mulheres. Os estudos sobre o tema demonstram que a maioria das violações é praticada por indivíduos conhecidos das vítimas ou com quem estas se relacionam de forma íntima, muito longe do mito do estranho que agride fisicamente uma mulher para a violar. Mas na narrativa dos tribunais, para que estejam preenchidos os requisitos do tipo legal de crime, tem de ocorrer, invariavelmente, violência física contra a vítima, suscetível de deixar marcas no seu corpo, que permitam fazer a prova dos factos, vencendo a tradicional convicção de que a vítima mente e fantasia. Em consequência, a recusa meramente verbal ou a ausência de consentimento da ofendida são, por si só, insuficientes para se julgar verificado o crime de violação, quer na lei, quer na jurisprudência.

A autora contextualiza o conceito de violação na sua raiz histórica e patriarcal, enquanto cópula extramatrimonial e com potencialidade procriativa, analisando as narrativas judiciais e os discursos dos comentadores ao longo das várias épocas estudadas, notando a presença das conceções sociais em que as mulheres são propriedade do pai ou do marido e a chamada cultura da violação, assente na culpabilização das vítimas.

A interpretação sociológica das decisões jurisprudenciais dos tribunais superiores (Relação e Supremo Tribunal de Justiça), através dos acórdãos disponíveis nas bases de dados jurídicas e nas coletâneas de jurisprudência, permite traçar um retrato das vítimas e dos agressores, e da forma como a violência sexual é vista e concetualizada pelos tribunais. Impressiona a forma fria como os factos são descritos pelas decisões, a contrastar com a enorme fragilidade das vítimas, sempre do sexo feminino, e uma grande parte das vezes adolescentes menores de idade ou mesmo crianças. O conceito de «mulher» é o produto da reconstrução da narrativa judicial, que retira a qualidade de menina ou de criança àquela que é vítima de violência sexual, vista também como alguém que contribuiu para a violação ou facilitou a prática do crime.

Denunciando os mitos da violação, o livro de Isabel Ventura eterniza todas as vítimas de violência sexual, dá-lhes existência e vida, restitui-lhes a sua dignidade humana e condição de pessoa, faz-lhes justiça, presta-lhes homenagem. É preciso reescrever a história de Medusada medusa, torná-la uma deusa poderosa, por todos respeitada e amada. É preciso substituir a história de rejeição e de ódio às vítimas pela história da solidariedade para com elas e do respeito profundo pelos seus direitos. A história de hoje e de amanhã tem de passar também pelo acesso à Justiça, pela validação do seu testemunho e pela punição do agressor.

A publicação da tese de doutoramento de Isabel Ventura permite a generalização e a divulgação dos resultados da investigação científica fora dos muros das universidades, para os tribunais, para as instituições que lidam com as vítimas, e para a própria sociedade.

A Medusa no Palácio da Justiça é um desafio às ideias pré-concebidas e às crenças. A ligação entre o livro e os/as leitores/as é uma fonte de desconstrução e de sensibilização, que provoca uma alteração de mentalidades. Quem o lê, não ficará, decerto, igual.

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