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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.41 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.12 

ESTUDOS E ENSAIOS

 

(Des)Construção da parentalidade trans*: Homens que engravidam

(De)Construction of Trans* Parenthood: Pregnant Men

(Des)Construcción de la Paternidad Trans*: Hombres Embarazados

Ana R. Pinho*, Liliana Rodrigues**, Conceição Nogueira***

Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP), Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Endereço postal

 

 

RESUMO

Engravidar e ter filhos/as é uma realidade existente para alguns homens trans* que resistem à construção da gravidez associada à mulher cisgénero. Contudo, as formas de discriminação, especialmente nos cuidados de saúde, resultam num evitamento destes serviços e repercutem-se na saúde individual da pessoa trans* e do/a bebé. Para lidar com a visibilidade da gravidez, é adotado um conjunto de estratégias, mas nenhuma protege realmente estas pessoas. Neste sentido, esta resenha teórica pretende refletir sobre a opressão perpetuada pela cultura cisnormativa que afeta homens trans* grávidos, alertando para a necessidade de pensar estas vivências e de criar condições que contemplem a diversidade e bem-estar de todas as pessoas.

Palavras-chave: Homens trans* grávidos, direitos, reprodução, parentalidade.

 

ABSTRACT

Getting pregnant and having children is a reality for some trans* men who resist the construction of pregnancy associated with cisgender women. However, forms of discrimination, especially in healthcare, result in the avoidance of these services and have an impact on individual health of the trans* person and the baby. To deal with the visibility of pregnancy, a set of strategies are adopted but none of them protects these people. In this sense, this theoretical review intends to reflect on the oppression perpetuated by the cisnormative culture that affects trans* pregnant men, alerting to the need of thinking about these experiences and creating conditions that contemplate the diversity and well-being of all people.

Keywords: Trans* pregnant men, rights, reproduction, parenthood.

 

RESUMEN

Quedar embarazado y tener hijos es una realidad para algunos hombres trans* que resisten a la construcción del embarazo asociado a las mujeres cisgénero. Sin embargo, las formas de discriminación, especialmente en la asistencia sanitaria, resultan en la evitación de estos servicios y afectan la salud individual de la persona trans* y del/a bebé. Para lidiar con la visibilidad del embarazo, se adopta un conjunto de estrategias, pero ninguna protege estas personas. Así, esta revisión teórica pretende reflexionar sobre la opresión que afecta a los hombres trans* embarazados, alertando sobre la necesidad de pensar en estas experiencias y crear condiciones que contemplen la diversidad y el bienestar de todas las personas.

Palabras-clave: Hombres trans* embarazados, derechos, reproducción, paternidad.

 


 

 

Ponto(s) de partida

O presente texto é uma resenha teórica1 sobre a temática da gravidez em homens trans*. Esta surge como resposta à ausência de literatura no contexto português sobre o fenómeno e tem por objetivo contribuir para instigar uma importante discussão sobre a necessidade de pensar, bem como definir medidas práticas que assegurem os direitos reprodutivos de homens trans*. Desta forma, adotando um posicionamento feminista crítico e construcionista social, e tendo por base a teoria da interseccionalidade, pretende-se abordar as questões de opressão que este grupo de pessoas vivencia face às suas identidades enquanto homens grávidos. Neste sentido, salientam-se os constructos usados como provisórios e falíveis (Missé 2014; Rodrigues, Carneiro, e Nogueira 2018).

Uma ilustração da temporalidade e falibilidade dos termos a que nos ancoramos para produzir discursos está na terminologia trans*. O termo transexual era (e em certos contextos continua a ser) comummente usado para endereçarse a pessoas que vivenciavam uma não conformidade entre o sexo designado no registo de nascimento e o género com que se identificavam, o que envolvia frequentemente a cirurgia de redesignação sexual. No entanto, recentemente, tem vindo a ser utilizado o termo trans* com o fim de ampliar o significado da palavra, contemplando diferentes identidades de género e quebrando com as construções sociais da existência de uma expressão de género binária (Platero 2014; Rodrigues 2016). A designação, ao ser abrangente, possibilita a cada ser humano afirmar-se tal como é. Assim, dada a tentativa do termo de englobar uma vasta diversidade de experiências e vivências que inclui a expressão de pessoas trans* binárias e identidades não binárias, bem como de marcar uma mudança de paradigma de patologização para uma visão de direito à autodeterminação de género e das identidades (Platero 2014), este é assumido ao longo do texto.

 

Homens que engravidam

Considerando que as palavras usadas nas narrativas habitam um determinado contexto histórico-político-cultural, é possível questionar o próprio conceito de sexo. Entre as décadas de 1960 e 1980, graças à segunda vaga do feminismo que encarou o privado como político, trazendo à ribalta preocupações como as questões da identidade, da sexualidade e dos estereótipos de género, é cunhada a separação entre o sexo (definido biologicamente) e o género (construído socialmente) (Nogueira 2017). Apesar das importantes implicações que tal trouxe para a luta feminista nessa época, esta visão essencialista colocou o sexo num lugar impossível de desafiar (Louro 2004; Karaian 2013). No entanto, através de estudos com pessoas intersexo,2 John Money alertou para a imprecisão de pensar o sexo de forma dicotómica – especificando-o com base num único critério –, já que uma pessoa poderia apresentar, por exemplo, um código genético, gónadas e morfologia interna correspondente ao definido como masculino, conjuntamente com genitais externos, funcionamento hormonal, um sexo designado e uma expressão de género associada ao feminino (Money 1985). Também Rosario (2009) questionou o constructo em si mesmo, defendendo que o sexo feminino não é simplesmente definido pelo gene XX, nem o sexo masculino pelo gene XY mas, sim, pela relação entre um conjunto de genes – que conferem uma inclinação para um determinado sexo –, e as interações do meio – que induzem variações nessa potencial propensão. Assim sendo, sexo, género e sexualidade são termos complexos que decorrem de relações biopsicossociais indissociáveis, só existindo tal como os conhecemos graças à linguagem criada e partilhada culturalmente (Louro 2004; Karaian 2013). Desta forma, o habitual posicionamento simplista «do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas» (Butler 1990, 7). Esta construção do conceito sexo enquanto algo inquestionável pretende cumprir uma função reguladora, mas a sua desconstrução multiplica as possibilidades do ser, tornando claro que:

indivíduos trans são tão homens ou tão mulheres como aqueles em que existe congruência entre os seus corpos, mentes e identidades de género e que a autoidentificação é tão relevante para pessoas com identidades cis como para pessoas com identidades trans. (Karaian 2013, 6-7)

O desejo pela parentalidade por parte de pessoas trans* tem sido evidenciado em investigações científicas (Tornello e Bos 2017; Stambuk, Milkovic, e Maricic 2019). Contudo, os estudos realizados são ainda parcos e os que existem tendem a explorar o tema sob o domínio da homoparentalidade, o que nem sempre abarca as especificidades inerentes ao cruzamento entre as construções identitárias trans* e a parentalidade (Zambrano 2006; Souza 2013). Isto porque se centraram na orientação sexual experienciada na conjugalidade, não questionando sexo/género enquanto construções sociais. Neste sentido, parentalidades trans* torna-se uma expressão mais ajustada para incluir a diversidade de percursos (Monteiro 2018), nos quais as possibilidades para alcançar a parentalidade são múltiplas. Atualmente tem-se verificado um aumento do recurso à criopreservação de gâmetas, embriões ou tecido gonadal por parte de homens trans*. No entanto, o custo elevado taxado pelo armazenamento ao longo do tempo, bem como a necessidade de parar a toma de testosterona e – no caso da colheita de oócitos e embriões – administrar estrogénio para recolher o material biológico, leva a que algumas pessoas trans* optem por outras formas de aceder à parentalidade (Blakemore, Quinn, e Fino 2019), entre elas a adoção, a coparentalidade, o uso de dadores de gâmetas ou a procura de pessoas com vista a obter uma gestação de substituição (Zambrano 2006; Souza 2013). Assim, enquanto há pessoas trans* que desejam e decidem fazer cirurgias de redesignação sexual, há outras que por motivos médicos, económicos ou por decisão pessoal não acedem às mesmas (Karaian 2013; Charter et al. 2018), pelo que homens que mantêm ovários, útero e vagina podem engravidar, se assim o entenderem (Karaian 2013; Obedin-Maliver e Makadon 2016; Hoffkling, Obedin- -Maliver, e Sevelius 2017; Charter et al. 2018).

Embora a gravidez em homens seja uma realidade com tendência a crescer (Karaian 2013; Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017), os discursos que proliferam tanto na sociedade como no sistema legal são, à luz da teoria da interseccionalidade, formas de poder que privilegiam uns corpos em detrimento de outros. Neste sentido, ao engravidar, estes sujeitos desafiam as convenções de género que definem o corpo grávido com uma expressão e papéis atribuídos ao feminino. Esta destabilização dos pressupostos falaciosos sobre sexo e género, bem como da estrutura cisnormativa3 subjacente (e constantemente reiterada pela sociedade) à constituição de uma família, é sentida como uma ameaça, decorrendo deste processo penalizações (Louro 2004; Zambrano 2006; Souza 2013; Karaian 2013; Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017; Charter et al. 2018; Toze 2018; Monteiro 2018), represálias e/ou microagressões4 (Nadal 2018).

Num estudo qualitativo que inquiriu 25 homens trans* relativamente às suas experiências e construções da gravidez, Charter et al. (2018) referem que a pressão social para a maternidade, fortemente associada ao «ser-se» mulher, é experienciada como uma alienação na fase em que as pessoas se questionam sobre a não conformidade entre o que os outros dizem ser o seu sexo/género e o que a pessoa sente que é. Assim, dado o baixo controlo na categorização e na construção do sexo/género conjugado com os discursos de fecundidade do corpo como algo feminino, há frequentemente uma negação da parentalidade. Contudo, com a integração da identidade que a pessoa autodetermina e com o início da modificação corporal, tende a ocorrer uma ressignificação da experiência de parentalidade, alcançada através da dissociação da ideia de que ter uma criança é um fenómeno exclusivamente de mulheres cis,5 o que abre a possibilidade de a gravidez ser considerada como meio para atingir o fim de ter um/a filho/a (Charter et al. 2018). Inclusivamente, numa etnografia sobre parentalidades trans e reprodução realizada no Brasil por Monteiro (2018), concluiu-se que os homens trans* atribuíam um significado ao processo de gestação, parto e amamentação que era englobada na construção subjetiva que faziam da própria masculinidade.

No caso da necessidade de um dador de esperma, a opção observada no estudo de Charter et al. (2018) foi o recurso a redes de contacto informais (dadores conhecidos) para evitar recorrer ao sistema de cuidados de saúde, já que se verifica uma grande probabilidade de discriminação e exclusão vivenciada nestes contextos. Também o estudo realizado por Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius (2017), em que foram entrevistados 10 homens trans*, salientou as discriminações perpetuadas nos cuidados de saúde, frequentemente associadas à falta de investimento em estudos com esta população, o que se reflete na desinformação e desconforto dos/as profissionais da área clínica. Tal como Foucault (1988) referia, o saber de algumas esferas da sociedade, como é o caso do domínio médico, encerra em si um poder que legitima diferenças e mantém desigualdades sociais. Apesar da gestação por parte de homens trans* ser uma realidade, a pouca literatura existente tende a centrar-se na parentalidade trans*, não espelhando a experiência vivenciada por parte deste grupo de pessoas (Monteiro 2018; Castro-Peraza et al. 2019). Assim, o uso inadequado dos pronomes das pessoas, procedimentos invasivos, perguntas impróprias, espaços com quartos de banho exclusivos para mulheres cis, formulários de preenchimento limitados e falta de informação visual inclusiva são apenas algumas das barreiras que os homens grávidos têm vindo a enfrentar. Progressivamente, a manifestação de discriminação explícita torna-se inaceitável, mas as atitudes e ações adotadas por pessoas que pertencem a grupos identitários dominantes são microagressões (Nadal 2018), que individualmente até podem parecer ter pouco significado, mas que tendem a ser vivenciadas de forma bastante aversiva, especialmente quando repetidas constantemente. Desta forma, a transfobia, evidente ou subtil, gera frequentemente um evitamento dos espaços de saúde, sendo as experiências positivas meras exceções (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017).

A população de homens trans* que passa por processos de gravidez tem necessidades específicas decorrentes dos efeitos do uso hormonal posterior, de cirurgias de redesignação sexual, do meio cultural estigmatizante e das perceções corporais que se alteram (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017; Castro-Peraza et al. 2019). A supressão da terapia hormonal durante a gestação influencia a construção da masculinidade da pessoa, o que consequentemente pode afetar o bem-estar e qualidade de vida do homem grávido (Charter et al. 2018). As alterações hormonais, psicológicas e corporais (com enfâse no crescimento do peito), derivadas da ausência de testosterona e das mudanças induzidas pela própria gravidez, tendem a ser acompanhadas com sintomatologia ansiosa e depressiva (Charter et al. 2018). Mas as fontes de ansiedade para homens trans* não cessam aqui. Este grupo enfrenta ainda medo: (1) da perda de passibilidade (Karaian 2013; Charter et al. 2018; Toze 2018) – isto é, da possibilidade de serem lidos por terceiros/ as de forma congruentemente com o género autodeterminado –, privilégio que, por um lado, compactua com um sistema que coloca o corpo trans* num lugar abjeto, mas que, por outro, possibilita a redução de potenciais situações de violência e discriminação (Nunes 2016; Rodrigues 2016); (2) do impacto no/a bebé decorrente das terapias hormonais ou de outros aspetos diretamente ligados às pessoas trans* (Karaian 2013; Toze 2018); (3) de lhes ser negada posteriormente a possibilidade de modificação corporal (Karaian 2013; Toze 2018); (4) da negação de direitos laborais face à parentalidade (Karaian 2013); (5) de perder a custódia dos/as filhos/as (Karaian 2013; Toze 2018), já que são escassos os países que apresentam um reconhecimento do estatuto parental do homem grávido – segundo o índex divulgado pela TGEU (2018) apenas Bélgica, Eslovénia, Malta e Suécia contemplam medidas legais referentes a direitos familiares de pessoas trans* –, havendo casos de separações cujas deliberações jurídicas são discriminatórias e fundamentadas em ideias erróneas sobre as transexualidades (Rodrigues 2016); e (6) das discriminações que tanto eles como os/as filhos/as podem sofrer (Karaian 2013; Charter et al. 2018; Toze 2018).

É evidente que a experiência da gravidez tende a ser enquadrada numa ótica médica e psicológica e orientada pelos discursos preexistentes de sexo/género, o que leva a que as produções médicas e psicológicas, legais e sociais construam a fertilidade de homens trans* como arriscada, indesejada e irreconhecível (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017). Em países como a Albânia, Andorra, Arménia, Azerbaijão, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Chipre, Eslováquia, Finlândia, Geórgia, Kosovo, Letónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Macedónia, Mónaco, Montenegro, Roménia, San Marino, Sérvia, República Checa e Turquia, (TGEU 2018) a esterilização para obter o reconhecimento da identidade autodeterminada continua, inclusivamente, a ser uma questão grave de direitos humanos por resolver (Karaian 2013; Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017). Os mecanismos de regulação do corpo feminino são assim estendidos aos corpos masculinos trans*. Contudo, homens trans* grávidos resistem e reorganizam internamente as suas experiências fora das noções binárias estanques de homem vs. mulher ou pai vs. mãe (Charter et al. 2018; Toze 2018).

Para lidar com a visibilidade da gravidez, há um conjunto de estratégias que Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius (2017) chegam a delinear com base na investigação realizada, sendo elas (i) fazer-se passar por uma mulher cis, o que aumenta o reconhecimento da gravidez, mas diminui o reconhecimento enquanto pertencente ao género masculino, permitindo, por um lado, sentimentos de segurança e diminuição da exposição à transfobia, mas, por outro, aumentando o sofrimento, já que se passa por algo que não se é; (ii) agir com discrição para que outros pensem que a pessoa é um homem cis, o que aumenta o reconhecimento externo do género adequado e diminui a exposição à transfobia, mas também diminui o reconhecimento externo enquanto grávido e, consecutivamente, leva a uma ausência de suporte e proteção social, nomeadamente com a impossibilidade de, por exemplo, usufruir do direito de atendimento prioritário; (iii) assumir-se enquanto homem trans* grávido, o que permite a afirmação do seu género masculino, de ser trans* e de estar grávido, contudo aumenta a exposição à discriminação e transfobia.

À semelhança do que acontece no estudo de Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius (2017), há que considerar uma grande variação entre homens trans* grávidos, não havendo respostas universais para as questões levantadas. No entanto, os dados obtidos através dos artigos causam inquietações e traduzem a importância de um combate à discriminação alicerçado em mudanças estruturais, que deveriam passar por uma reconceção da construção social feita em torno da própria ideia de conceção de um/a filho/a (Karaian 2013), já que também homens trans* podem ter a potencialidade corporal de exercer a sua parentalidade com recurso à gestação (Monteiro 2018). Estes dados, conjuntamente com outra literatura sobre transsexualidades, denotam a existência de ideias sociais erradas face a homens grávidos, pois um homem trans* que decide engravidar através dos seus próprios órgãos reprodutores encontra-se a utilizar estruturas e funções do seu corpo na mesma medida em que outras pessoas o fazem (Platero 2014). Deste modo, «em momento algum este comportamento deve ser deslegitimador de qualquer identidade. Um homem trans* ao querer engravidar não está a ser menos homem por isso, está apenas a espelhar a diversidade humana» (Rodrigues 2016, 154).

É alarmante constatar que existe um evitamento do contexto clínico num período de vida em que as pessoas necessitam de acompanhamento especializado adequado (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017). A ausência de consultas pré-natais constitui um acréscimo na vulnerabilidade deste grupo de pessoas. O empoderamento é o caminho e para tal é essencial tornar a linguagem e os espaços inclusivos (Karaian 2013; Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017); investir na (in)formação dos/as cuidadores/as formais, especialmente face a temáticas como procedimentos de modificação corporal (cirurgia e terapia hormonal), fertilidade, gravidez, saúde da criança e lactação, para contribuírem para tomadas de decisão refletidas com tempo (Obedin-Maliver e Makadon 2016; Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017; Charter et al. 2018; Blakemore, Quinn, e Fino 2019); e aumentar a visibilidade de modelos para outros homens grávidos (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017; Charter et al. 2018).

 

Considerações Finais

Devido à maior invisibilidade social, existe uma dissimulação do facto de existir, a nível nacional, maior número de homens trans* do que mulheres trans* (Nunes 2016; Rodrigues 2016). A preferência por ocultar a mudança por parte de homens trans* (Nunes 2016; Rodrigues 2016) assenta na tentativa de corresponder às construções de um corpo com um padrão de beleza normativo que a sociedade reconhece e aceita (Platero 2013), fugindo a um percurso histórico de patologização, discriminação e controlo médico partilhado tanto por pessoas com sexualidades não normativas como por pessoas funcionalmente diversas (Platero 2013; Rodrigues 2016; Rodrigues, Carneiro, e Nogueira 2017). Contudo, com a gravidez e transformações físicas visíveis, deixa frequentemente de ser possível essa invisibilidade, o que pode causar experiências de desconforto e mal-estar em homens trans* (Nunes 2016).

A cisnormatividade tende a sonegar a existência de experiências trans*, transmitindo a ideia de reprodução vinculada unicamente a mulheres cis e negligenciando outros corpos que apresentam biologicamente as mesmas possibilidades. Este enquadramento da reprodução leva a que a gravidez em homens trans* seja percecionada como algo novo e excecional, apagando a história de pessoas trans* e mantendo assim os pilares cisnormativos intocáveis (Toze 2018; Lampe, Carter, e Sumerau 2019). Deste modo, o simples ato de engravidar enquanto homem trans* é um ato de resistência, uma vez que supera barreiras face à negação de escolhas reprodutivas (Hoffkling, Obedin-Maliver, e Sevelius 2017).

Como refere Monteiro «a gravidez também deve ser pensada dentro de um contexto que envolve relações de poder, relações de gênero, acesso à saúde» (2018, 53), pelo que é uma responsabilidade da sociedade tornar-se segura e inclusiva para todos/as. Recentemente, a Direção-Geral da Saúde lançou um guia com a Estratégia de Saúde para as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo (2019). Neste documento, embora sem menção direta a questões reprodutivas, é delineado um plano de ação que visa potenciar boas práticas entre os/as profissionais e dotar os serviços de saúde de maior acessibilidade. A medida, de grande relevo para assegurar o bem-estar das pessoas, deve fazer-se acompanhar por uma permanente reflexividade, estando sempre atenta aos lugares de poder e pontos de interseccionalidade, isto porque o género por si só não define a identidade pessoal. A identidade alicerça-se num complexo eixo interseccional, pelo que a identidade trans* x grávidos x baixos rendimentos económicos x baixos níveis de educação x «minorias» raciais/étnicas, entre outras, são categorias que multiplicam posições de opressão e exacerbam as desigualdades sociais (Nogueira 2017). Com isto, é crucial reforçar que homens trans* têm bebés, mesmo sem os recursos, bem como o suporte de que necessitam e ao qual deveriam ter direito (Charter et al. 2018). Assim, estudos futuros deveriam investir na produção de conhecimentos sobre parentalidades trans*, especificamente sobre o processo de gestação, com vista a criar condições que derrubem os sistemas geradores de sofrimento e que abarquem a diversidade que de facto é característica da humanidade.

 

 

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Endereço postal: Rua Alfredo Allen, 4200-392, Porto, Portugal.

 

*Ana Rocha Pinho

Endereço eletrónico: psic.anapinho@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9190-8094

Doutoranda do Programa Doutoral em Sexualidade Humana na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, cujo projeto de investigação se intitula «Possibilidades de Assistência Sexual em Portugal ». Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela mesma Universidade. As suas áreas de interesse e produção científica centram-se nos estudos de género e sexualidades de pessoas funcionalmente diversas.

 

**Liliana Rodrigues

Endereço eletrónico: frodrigues.liliana@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6900-9634

Investigadora Integrada do Centro de Psicologia da Universidade do Porto. Doutorada em Psicologia pela FPCE da Universidade do Porto e Mestre em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho. No âmbito do seu doutoramento foi bolseira pela FCT, desenvolvendo a tese: «Viagens Trans(Género) em Portugal e no Brasil: Uma Aproximação Psicológica Feminista Crítica». As suas áreas de interesse e produção científica centram-se nos estudos de género e sexualidades não normativas.

 

***Conceição Nogueira

Endereço eletrónico: cnogueira@fpce.up.pt
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9152-754X

Professora Associada com Agregação da FPCE da Universidade do Porto. Doutorada em Psicologia Social pela Universidade do Minho. Autora de inúmeras publicações nacionais e internacionais – revistas, livros, capítulos de livro, atas de congressos – sobre Estudos de Género, Feminismos e Sexualidades. Coordenadora/ investigadora principal de diversos projetos de investigação com financiamento e apoio da CIG, da FCT e do Fundo Social Europeu nos domínios em que é especialista.

 

 

Artigo recebido a 9 de janeiro de 2020 e aceite para publicação em 6 de maio de 2020.

 

 

Notas

1 Os trabalhos referenciados foram acedidos através de diferentes fontes de informação digital, nomeadamente EBSCO, Web of Science, Scopus e SciELO, tendo sido utilizadas como palavraschave para a pesquisa as expressões «homens grávidos», «pregnant man» e «transgender pregnancy ». Além disso, recorreu-se ainda a fontes de informação em formato de papel, nomeadamente livros e teses.

2 Denominação utilizada para designar pessoas que nascem com uma anatomia reprodutiva e/ou sexual que não corresponde à definição tipicamente atribuída ao sexo feminino ou ao sexo masculino (Pino 2007).

3 A cisnormatividade refere-se a privilégios sociais dominantes na sociedade (Platero, 2013), na qual é considerado como «normal» a pessoa ser cisgénero, ou seja, identificar-se com o género que está em conformidade com o sexo atribuído à nascença (Stambuk, Milkovic, e Maricic 2019).

4 Formas de discriminação subtis (Nadal 2018).

5 Diminutivo de cisgénero.

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