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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.43 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.22355/exaequo.2021.43.11 

Estudos e ensaios

Joana Semião, homo œconomicus e homo politicus: urdindo uma epistemologia “tolerante” moçambicana

Joana Semião, Homo Œconomicus and Homo Politicus: Weaving a Mozambican ‘tolerant’ epistemology

Joana Semião, homo œconomicus y homo politicus: urdiendo una epistemología “tolerante” mozambiqueña

Dulce Maria Passades Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-5445-3801

1 Universidade Licungo, Campus Murrópuè, Quelimane, Moçambique. dhulcinha@gmail.com


Resumo

Tendências globais sobre o neoliberalismo colocaram Moçambique (mais) exposto aos jargões, às correntes teóricas e às práticas das ideologias dominantes. Discursos sobre movimentos de mulheres, feminismo, género e mulher, de uma forma geral associados aos palcos das decisões, às mesas do poder e aos meandros políticos, são localmente propostos como sistemas cosmológicos de parâmetros de estruturação da sociedade, propondo uma teoria e prática glocal, num contexto enfraquecido pela sua condição de país em vias de desenvolvimento. Com o pretexto de pensar o processo de emancipação da mulher moçambicana a partir da cultura do silenciamento da trajetória da moçambicana Joana Semião, neste artigo, o objetivo é compreender a “representação” da ausência da mulher na sociedade moçambicana no contexto dos fantasmas do homo ɶconomicus e homo politicus.

Palavras-chave: Ausências; silêncios; homo ɶconomicus; homo politicus

Abstract

Global trends in neoliberalism have left Mozambique (more) exposed to the jargon, the theoretical currents and the practices of dominant ideologies. Discourses about women's movements, feminism, gender and women, in general associated with places of decision-making, with power, and political intricacies, are presented at the local level as cosmological systems of parameters for structuring society, proposing a glocal theory and practice, in a context weakened by its condition as a developing country. With the pretext of thinking about the process of emancipation of Mozambican women, based on the culture of silencing the trajectory of the Mozambican Joana Semião, this article aims to understand the 'representation' of the absence of women in Mozambican society, in the context of homo ɶconomicus and homo politicus ghosts.

Keywords: absences; silences; homo œconomicus; homo politicus

Resumen

Las tendencias mundiales del neoliberalismo han expuesto (más) a Mozambique a la jerga, corrientes teóricas y prácticas de las ideologías dominantes. Los discursos sobre los movimientos de mujeres, feminismo, género y mujeres, en general asociados a los escenarios de decisión, a las mesas de poder y a los meandros políticos, se proponen localmente como sistemas cosmológicos de parámetros para estructurar la sociedad, proponiendo una teoría y una práctica glocal, en un contexto debilitado por su condición de país en desarrollo. Con el pretexto de pensar el proceso de emancipación de la mujer mozambiqueña desde la cultura de silenciar la trayectoria de la mozambiqueña Joana Semião, en este artículo se pretende comprender la "representación" de la ausencia de la mujer en la sociedad mozambiqueña en el contexto de los fantasmas de homo ɶconomicus y homo politicus.

Palabras clave: ausencias; silencios; homo ɶconomicus; homo politicus

Que histórias continuam esquecidas no roteiro narrativo moçambicano? A história, como tenho argumentado, é em grande parte a história dos seres humanos e das suas ações e opções no domínio da política, silenciando e excluindo a presença de mulheres. (Meneses 2017, 51)

Joana Semião (1939-?), “reacionária”

Mulher moçambicana, macua, professora de francês do ensino secundário, e sobretudo uma ativista e mulher engajada, em prol de um Moçambique tolerante, inclusivo e democrático. A sua capulana de militante cívica sempre teve como valores um Moçambique justo, plural, “multiétnico”, multirracial, um Moçambique não sexista, um país com consultas e auscultações para todas e todos. Para ela, utópica ou surreal, a democracia e tolerância entre mulheres e homens, interdependente das suas ideologias ou cores partidárias, eram o caminho e o futuro que valia a pena percorrer com gosto.

Mulher que surge no cerne dos média nacionais e internacionais na década 1970 (1973 e 1974), com ideologias claras sobre o projeto da moçambicanização de um país que se encontrava no meio de uma guerra colonial, racial, de segregação e de alienação, em busca da sua independência. Como colocaria Meneses (2017), uma moçambicana macua que surge no meio dos homens “libertadores”, com um pensamento político e governamental para o país. Assim, Joana Semião foi a capulana (mulher) que apareceu e ousou partilhar o espaço com um grupo de calças (homens), que, nas décadas de 1960 e 1970, abraçaram o sonho de libertar os seus países da exploração e alienação colonial.

Na sociedade moçambicana, as narrativas sobre ela não são consensuais, pois, para uns “poucos”, ela é uma referência política e intelectual precípua, para outros, alicerçados no discurso do sistema em função das estruturas de poder de outrora e da atualidade, ela é uma reacionária, inimiga da independência, amiga dos inimigos, ou seja, dos colonos, dos Xiconhocas1 (todo aquele que era “inimigo” da causa da libertação nacional das garras do colono). De entre as justificativas está o facto de Joana Semião ter uma visão que, na década 1960−1970 era vista como um ultraje, ou melhor, uma forma de pensar um projeto de libertação e independência tolerante e inclusivo, um projeto que seria retomado como bandeira por Nelson Mandela na África de Sul na década de 1990.

Para outros, uns em silêncio, e poucos em público, ela foi uma figura que merece todo o destaque na narrativa oficial sobre o processo de pensar Moçambique e pelo facto de ela ter sido uma mulher que não se vergou ou não se confinou à sua condição feminina.

Semião tinha ideias muito claras sobre os grupos sociais existentes em Moçambique, a quem ela designava por "etnia", onde ela pensava não só na “etnia” negra, como também na “etnia” mestiça, na etnia “branca”, na “etnia” asiática, ou seja, chinesa e indiana. Os grupos socais ou comunidades existentes em Moçambique, faziam parte do pensamento dela.

Para ela, o processo de libertação e independência tinha, acima de tudo, de ser feito com base no diálogo, na democracia, onde as partes deveriam ser ouvidas, sem donos do processo, pois ela percebia a diversidade e complexidade “étnica” e cultural do país2. Pensar assim ainda representa um mito das cavernas, imaginar a dimensão e o impacto deste pensamento, quer para o governo colonial, quer para os movimentos de libertação.

O típico caso de “dinner with the enemy”, ou seja, a visão dela sobre libertação, era inclusiva, onde os vários grupos sociais que coabitavam o território moçambicano, deviam fazer parte deste processo. Este pensamento humanista e tolerante dela, pode ter sido o seu “calvário”. A inclusão e o pensar diferente ainda fazem parte de dogmas e mitos no Moçambique atual. Ainda há que enfrentar o fantasma da “reconciliação” com o passado.

A trajetória ativista, cívica e política de Joana Semião está associada ao Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO) e ao Grupo Unido de Moçambique (GUMO), do qual foi vice-presidente (1974).

O GUMO era constituído por Máximo Dias (presidente), Joana Semião (Vice-presidente), Jorge Abreu, Lisete Simões, Cassamo Daúde e Isaías Marrão.

O GUMO foi uma ideia do doutor Máximo Dias, advogado na Beira, que pensou que a solução do problema moçambicano seria uma força criada dentro de Moçambique, dentro da legalidade, no pacifismo, para a construção de uma sociedade multirracial, da qual, infelizmente, não temos ainda no mundo uma verdadeira cópia, e portanto é um trabalho que temos que iniciar de novo, para que a África Austral possa realmente ter um futuro em que todos nós possamos viver em boa harmonia. (Arquivo Histórico de Moçambique apud Meneses et al. s.d., 30)

Segundo um relatório da Delegação de Moçambique da Direcção-Geral de Segurança de 12.3.1974, o GUMO tinha as seguintes aspirações:

  1. Constituição de uma associação de carácter cultural, onde seriam admitidas todas as etnias de Moçambique, sem distinção.

  2. Promoção sociocultural dos grupos sociais “étnicos”, com vista à independência desta Província3 por meios pacíficos e de modo a proteger qualquer cedência desonrosa para Portugal, no campo militar, tendo em conta a força real representada pela “FRELIMO”.

  3. Independência total de influências provenientes de qualquer outra facção política portuguesa, aceitando, contudo, todas as adesões insusceptíveis de desvirtuar a essência dos métodos e objectivos que o “GRUPO” pretende usar e alcançar. (Arquivo da Torre do Tombo apud Meneses et al. s.d., 30)

Para Semião,

o GUMO é o fruto natural de injustiças sociais incidentes, particular e predominantemente, à população negra ou mestiça moçambicana. Alguns elementos desses estratos sociais […] decidiram constituir-se numa instituição capaz de criar condições propícias para um diálogo sério, tendente à obtenção da paz através da supressão das causas geradoras da guerra. Para reagir contra esta situação sociopolítica pediu autorização para se constituir um Partido. (Arquivo Histórico de Moçambique apud Meneses et al. s.d., 33)

Porém, para o regime então vigente, esta hipótese foi imediatamente afastada, mas admitiu-se a possibilidade de criação de uma associação cívica à semelhança da SEDES (Sociedade de Estudo para o Desenvolvimento Económico e Social) 4. «O GUMO encontrou no governo-geral, e entre alguns governantes, cautelosos simpatizantes. Isto em atenção ao circunstancialismo político vigente, avesso a qualquer modificação significativa da estrutura sociopolítica favorável à real emancipação do negro» (Arquivo Histórico de Moçambique apud Meneses et al. s.d., 33).

Semião tinha dois conceitos interessantes. O primeiro era o conceito de moçambicanização , segundo o qual seria «a constituição de uma frente interna, formada por elementos lúcidos e calmos» (Semião 1974, s. p.), que iria estabelecer pontes com as várias etnias existentes no país.

Para ela, a independência do país não deveria ser feita para defender os interesses das superpotências (Portugal) mas, sim, para os moçambicanos poderem decidir sobre o seu próprio destino. Mas sempre em diálogo com o então “colono”, através do Doutor Baltazar Rebelo de Sousa, Governador-Geral de Moçambique e do Professor Marcelo Caetano, Ministro da Presidência e das Colónias. Semião almejava por «um Moçambique não catastrófico, sem pânico e traumas» (Semião 1974), ou seja, acreditava num processo de reestruturação político-administrativa ou num processo de transição com base em diálogo entre as partes, a que o regime português chamaria de Transição Progressiva e Participativa (mesmo não encontrando consenso na metrópole).

Neste processo de moçambicanização, a vice-presidente do GUMO5 não olhava para o movimento local e moçambicano como seu inimigo, ou seja, para ela, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) tinha todo direito e liberdade de participar no comício do GUMO, como foi o caso do comício de Xipamanine, em Maputo6, onde ela olhou para as bandeiras da FRELIMO como um processo normal e natural, que, até então, era aquela força política que a consciência coletiva conhecia.

Na sequência da proposta de constituição do GUMO Joana Simeão constitui uma equipa de ‘animação comunitária’, que integrava várias senhoras (incluindo a esposa do cônsul norte-americano em Lourenço Marques), procurando promover a Mulher Negra Moçambicana e, através desta, no ambiente familiar, “procurar que o Homem Negro deixe de ser atraído pelos movimentos ‘terroristas’ e assegure a paz”. (Meneses et al. s.d., 34)

Outro conceito usado por Semião era o moçambicanismo , o que se poderia chamar de tolerância. Para ela, acima de tudo, sem divisionismo, existia um espírito de fraternidade no seio dos moçambicanos, independentemente da localização geográfica e ideológica, dos “fantasmas” das divergências. Ela acreditava que era importante o espírito do moçambicanismo, como uma característica democrática, onde as moçambicanas e os moçambicanos tinham todo o direito de saber e participar na agenda e no projeto da libertação e independência do país.

Dentro do moçambicanismo, ela pretendia colocar as seguintes questões ao delegado político da FRELIMO, em Paris, em 1974, aquando do vigésimo aniversário do congresso mundial da paz. Do encontro, que Semião adjetivou de fraternal, eis a transcrição de algumas das questões, presentes no pensamento intelectual desta, na época:

  • Comportamentos e atitudes de moçambicanismo;

  • Definição da posição do GUMO;

  • Apresentação de problemas concretos sobre a agenda comum que "uma independência soleva, e que devem ser resolvidos calmamente numa mesa redonda, quadrada ou retangular";

  • Queria saber qual era o pensamento da FRELIMO sobre os problemas e desafios;

  • Qual seria o sistema económico que iria vigorar em Moçambique;

  • Qual seria o sistema político que iria vigorar em Moçambique;

  • Qual seria a posição dos grupos étnicos (não para fomentar o debate tribal, mas para perceber e antecipar os passos num país rico pela sua diversidade cultural);

  • Qual seria a política estrangeira;

  • Como se iriam resolver os problemas financeiros e económicos perante uma balança de pagamento deficitária;

  • A questão do equipamento industrial;

  • Defesa das prováveis fronteiras políticas no país;

  • A prevenção dos cenários políticos seria possível através do diálogo;

  • Armistício entre a FRELIMO e as outras forças políticas;

  • O GUMO era uma força cívica lúcida preocupada com o processo de paz em Moçambique, numa fase inicial, e, numa fase posterior, acreditava que as várias etnias existentes no país tinham direito a serem consultadas sobre o projeto pensar Moçambique;

  • Sempre preocupada com a paz, pensava, em nome do GUMO, na realização de um referendo.

Em suma, pode assumir-se o pensamento desta intelectual em quatro passos, a saber, Paz para Moçambique; realização de um referendo; diálogo e negociação com a ex-colónia; e, o ponto transversal nas suas ações, a visibilidade da mulher negra, visibilidade da mulher africana e visibilidade das mulheres nos espaços de tomada de decisão, sendo ela um exemplo incontornável desta trajetória.

Nestas três fases, nas entrelinhas, estão sempre patentes atitudes como pensar o outro, a relação do eu com o outro, a relação social e económica para o país, empatia, alteridade, tolerância, diversidade cultural e étnica, e a não negação do papel do colono e da metrópole no processo de diálogo.

Estas questões eram, segundo Semião, questões que não deviam ser reféns da ideologia das pessoas, pois todos tinham o direito de sabê-las, ou, como ela afirmaria, "o futuro concerne a todos". Como frisa Meneses:

Uma oposição negra despontava na cena política, onde uma mulher vai conhecer, num curto espaço de tempo, um forte protagonismo. Esta mulher, Joana Semião, ao contrário de outros elementos nacionalistas, que haviam virado as costas à luta e regressado a Moçambique, e se vergavam à política, fortemente discriminatória, da administração portuguesa, mostrava garra. (Meneses 2017, 59)

Semião era vista, pelo sistema colonial, como a única mulher moçambicana intelectual, impactante, com consciência política e como sendo uma mulher nacionalista.

Na verdade, Semião foi reconhecida pelo movimento de libertação como sendo uma reacionária, uma Xiconhoca, uma traidora, uma inimiga do projeto da independência e amiga dos inimigos, pois, ela foi vítima da sua consciência tolerante e moçambicanismo.

Sobre Semião, só se sabe do pouco que é possível encontrar. Não é fácil encontrar material sobre ela, tendo ela sido exposta no espaço público como uma traidora, inimiga interna, ou seja, uma reacionária. Também não é comum o seu nome ser citado nos espaços formais que constroem a narrativa da independência moçambicana. Este assunto faz parte dos tabus, dos mitos que uma possível ou provável reconciliação precisa de abordar.

O desaparecimento físico desta pensadora, assim como de outros moçambicanos percebidos como “terroristas”, reacionários e traidores, é um mistério, pois não existem pronunciamentos oficiais. Mas, nos espaços informais, no senso comum, assume-se que este grupo tenha sido “fuzilado”, com os corpos em parte “incerta”7.

Hoje, em Moçambique, nas redes sociais, circulam discursos de Joana Semião, vídeos da entrevista feita pela RTP na década de 1970, assim como alguns documentos que carecem de autenticidade. As gerações mais jovens vibram perante uma mulher forte e impactante, uma mulher macua, com seu turbante, com uma fala impecável e única, com uma narrativa e retórica sobre um Moçambique tolerante e inclusivo (o calcanhar de Aquiles atual do país)8.

O feminismo moçambicano, africano e global, precisa de conhecer o pensamento político ideológico desta pensadora. Os cursos de feminismo e género precisam de equacionar os discursos da Semião nos debates sobre “emancipação das mulheres”. Pois, com Joana, pensamos que a narrativa da emancipação fez falta aos homens e não às mulheres.

Nada melhor para descrever o espírito da Joana Semião, quando ela ia terminar a sábia entrevista na RTP a 2 de maio de 1974, quando o jornalista disse para ela o seguinte:

[P]ois, para terminarmos esta nossa boa conversa queria-lhe dar uma boa notícia, tenho aqui na mão um telegrama de Dar es Salaam que diz que a Frente de Libertação de Moçambique iniciará amanhã negociações em Lusaka com representantes do governo português. Foi hoje anunciado em Dar es Salaam por Samora Machel.

Feminismo como um continuum

O pano de fundo neste artigo é também repensar a crise ideológica sobre o debate em torno da questão do feminismo e género num contexto que se pretende inflexível, universalista e absolutista, “ignorando” o olhar por e para dentro da cultura, das normas, dos valores, das atitudes, ou melhor, do contexto e da narrativa histórica das mulheres na significação da “emancipação e da liberdade”.

O ressignificar ou desconstruir com base na abordagem da pós-modernidade passa necessariamente pelos pressupostos de uma psicologia culturalista, que estuda a relação entre a mente e o corpo, a relação entre o comportamento humano e a cultura, como é que nas “paredes” grupais se percebem e significam os fenómenos, como é que a cultura dá forma às relações intergrupais e sobretudo como é que o senso comum flui nas relações e dinâmicas sociais (Berry et al. 2011).

O denominador comum na agenda crítica nas questões de feminismo é a “descolonização” da agenda das mulheres, do feminismo, e do género. Como frisa Mama, o continente africano é constituído por milhões de mulheres anónimas e sem “nome”, que lutaram e lutam para ter o seu nome nas narrativas africanas (Mama 2013).

A construção global da mulher africana como pobre, grávida e espancada contém um germe de verdade. As mulheres trabalham mais do que nunca, mas continuam mais pobres do que nunca. Mas também continuamos a lutar por economias mais justas, que possam apoiar as mulheres para lá da mera sobrevivência - para aproveitar a forma como as mulheres improvisam e inovam, inventam e criam continuamente novas formas de fazer as coisas. (Mama 2013, s.p.)

O olhar global ou a ocidentalização das mulheres coloca as mulheres não ocidentais numa posição de desvantagem, pois os produtos culturais são feitos mediante a comparação do modelo e do significado de ser mulher no contexto ocidental, que não serve de exemplo ou referência obrigatória para outros contextos. A partir de Mama, pode inferir-se que, à luz das lentes do ocidente, as mulheres de forma global são colocadas numa única panela e analisadas com base em metanarrativas. O contexto africano é ainda caracterizado por uma economia e agricultura doméstica, informal e de subsistência, com o rosto das mulheres. Desta economia, 70% é movimentada por mulheres, são elas que alimentam as suas famílias. Mas, o sistema formal da economia, a do modelo dos doadores, acaba por ser um fator excludente para estas mulheres. É que, para alimentar as famílias, não precisam saber ler e escrever, mas, para ter acesso a fundos de apoio, precisam de certo nível de literacia9.

Mama e Barnes defendem que as feministas africanas, assim como as universidades africanas10, precisam mais do que nunca de se apropriar do processo de criação de suas narrativas ou “teorias” sobre o papel das mulheres no movimento pan-africanista, das narrativas das mulheres escravas que lutaram contra os seus “donos”, da teorização e valorização do saber local, da ausência das mulheres na política (Mama e Barnes 2007). Tendo em conta que as mulheres são o rosto da pobreza em África, as universidades e as feministas devem questionar o porquê do “crescimento sem desenvolvimento” (Abbas e Mama 2014, 1).

Pensar a temática do feminismo fora do paradigma dominante é uma forma de quebrar com o silêncio das periferias, é o questionar as narrativas dominantes num mundo tão rico em diversidades “cultural”, é quebrar com certas estruturas que preexistem como formas críticas dentro da periferia. A periferia é vista como acrítica e o ocidente como crítico, pois a característica periférica funciona como sendo “culturalista”, na sua condição acrítica, onde o universalismo e o absolutismo “tornam” invisível e silenciado o relativismo epistémico.

Desde os anos 1980 até ao presente, é constante e insistente nos textos de feministas africanas a denúncia do imperialismo, racismo ou etnocentrismo do feminismo do Norte, bem como da sua tentativa de colonização das lutas das mulheres africanas através da imposição de programas, conceitos e debates alheios e culturalmente cegos (Martins 2016, 252).

Este debate sobre o significado da cultura na episteme assume posições diferentes, ou seja, existe um continuum entre o paradigma ocidental e o paradigma periférico: quando colocamos o nosso comportamento no paradigma ocidental, ficamos próximos da noção de cultura como sinónimo de “civilização”, mais próximo da lógica herdada do iluminismo francês; quando nos colocamos na lógica do paradigma periférico, ficamos na acultura, de onde partimos do particular para o geral. Por conseguinte, nas questões de feminismo, é importante que exista uma tolerância entre o lugar do local e o lugar global, criando assim uma abordagem glocal que funcionaria como sendo uma possibilidade tolerante nesta temática.

Cultura no geral e neste campo específico (feminismo) não deve funcionar como uma condição acrítica ou uma condição pré-lógica - e muito menos a sua polarização (quando os símbolos ou produtos culturais, são diferentes dos “nossos”, perdem o valor), ou seja, contexto ocidental e contexto não ocidental -, mas, sim, como uma mudança cultural como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como statu quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.

Como é que em 2020 ainda estamos a participar em seminários e conferências onde os académicos euro-americanos passam uma hora a reutilizar argumentos simplistas e desacreditados pelos académicos do Sul global há décadas? As ideias neo-malthusianas - o principal problema de África é o excesso de população, associado a teorias de “descolagem” do desenvolvimento faseado e do "choque de civilizações" - ainda abundam. Faz tudo parte da colonialidade ocidental, hegemonia e domínio na produção de conhecimento. (Tamale 2020, 21)

Para um debate ético e justo sobre a questão do feminismo, são precisos paradigmas não sobrestimados, não de cultura como legitimadora do poder, pois estas formas de cultura como justificação podem levar a comportamentos tóxicos e podem ser bastantes nocivos num mundo que se quer cada vez mais categorizado nas “paredes” grupais.

As feministas africanas criticam o feminismo ocidental pela sua epistemologia homogénea nas questões de feminismo e pela sua posição "all-knowing" acerca das mulheres africanas. Sabem mais das mulheres africanas do que as próprias (Atanga et al. 2013). Outra crítica está associada ao facto de o feminismo ocidental estar superfocalizado nos privilégios dos homens e na subordinação das mulheres, transformando esta batalha em batalha das mulheres africanas, mesmo que este foco esteja ou não desenquadrado.11

Ainda sobre a crítica da ocidentalização do feminismo em contextos não ocidentais, encontra-se a reflexão da feminista nigeriana Oyèwùmí (2017), sobre como o ocidente “alienou” a sociedade Yorùbá nas questões de género.

A afirmação de que “mulher” não existia nas comunidades iorubás como uma categoria social não deve ser interpretada como uma hermenêutica antimaterialista, uma espécie de desconstrução pós-estruturalista sobre a desintegração do corpo. Nada disto - o corpo era (e ainda é) muito material nas comunidades iorubás. Mas antes da difusão das ideias ocidentais na cultura iorubá, o corpo não era a base dos papéis sociais, nem das suas inclusões ou exclusões, não era o fundamento da identidade nem do pensamento social. No entanto, a maioria dos estudos académicos sobre os iorubá assumiram que o “raciocínio corporal” estava presente na cultura indígena. Assumiram a universalidade dos constructos ocidentais, o que levou à utilização acrítica destas categorias com base no corpo para a interpretação da antiga sociedade iorubá e durante o período contemporâneo. (Oyèwùmí 2017, 16)

A crítica ao feminismo ocidental não deve ser percebida como um antiocidentalismo, mas, sim, como uma porta que possibilita o vencer de ignorâncias erróneas sobre outras realidades, nas questões do feminismo, como forma de iluminar a curiosidade em preconceitos face às outras realidades, como uma possibilidade de romper as pontes entre nós (ocidente) e eles (a figura dos outros). Assim, é possível ter a possibilidade de criar uma alteridade, um continuum do feminismo entre estes espaços de produção de saber sobre o feminismo. Onde o nós e os outros cria pontes flexíveis e elásticas, sem dogmas.

As mulheres africanas sofreram o impacto do período colonial, ora perdendo privilégios, estatuto social e poderes materiais e simbólicos, ora transformando e reinventando os papéis que lhes estavam atribuídos; transgrediram fronteiras e linhas de diferenciação sexual; adquiriram novas e outras competências; enfim, reformularam as suas subjetividades individuais e coletivas (Cunha 2006).

Em Moçambique, em nome do desenvolvimento, em nome da modernidade12, os discursos e narrativas sobre feminismo que perpassam o imaginário moçambicano estão amplamente carregados de abordagens pré-críticas centradas em aspirações transformistas e progressistas. Aspirações de transformar a sociedade, de converter valores e dar novos sentidos às relações entre mulheres e homens. O mais comum nos discursos é apelar às práticas ditas retrógradas, como os ritos de iniciação, educação informal, medicina tradicional, nas suas múltiplas facetas, os desequilíbrios de poder e iniquidade de género.

Em nome do projeto “unidade nacional”, assente num prisma ocidental, ainda carente de epistemologias pós-críticas alternativas e quiçá mais das ditas “periféricas”, surgem práticas quotidianas ligadas à falta de coesão e união entre o diversificado e rico campo de saberes locais, conhecimentos locais, línguas locais e as posturas identitárias locais. Urge a necessidade de não só ficar atento ao projeto “moderno” mas também a outras formas de conhecimentos e saberes, ou seja, a multiplicidade de saberes, pois, caso contrário, seríamos nós ainda vítimas da “colonização”, mas desta vez uma colonização mais profunda, colonização do saber e do conhecimento (Grosfoguel 2002).

Aqui, penso nas mulheres numa lógica da pós-modernidade, ou seja, numa lógica não totalizante, metanarrativa sobre as mulheres no contexto local (Joana Semião), a construção da episteme a partir do local de construção e consolidação do discurso, da fala, da palavra, sem ignorar o mundo ao redor. É de frisar que pensar nas mulheres localmente não deve ser visto como pré-desenvolvimento, como algo oposto ao campo científico mas, sim, como uma das várias alternativas de desconstruir ou ressignificar o rótulo one size fits all.

Porque o pano de fundo é o feminismo local, e depois glocal, sem ignorar o global, forjo o conceito de feminismo como continuum, que estaria mais próximo na ideologia social, cultural, política, académica e espiritual, na igualdade e equidade entre as mulheres e homens dentro de um determinado evento e contexto social, que é caracterizado pelas falas, narrativas, discursos, preconceitos, formas de pensamento e formas de comunicação sobre o que é ser mulher e o que é ser homem. Ou seja, um conjunto de representações sociais e culturais sobre a cidadania, a identidade, os valores das mulheres e dos homens, sem a obrigatoriedade de uma ordem mundial sobre os significados de ser mulher e de ser homem.

Forjar o conceito de feminismo como continuum seria uma forma de enriquecimento do debate, independentemente do GPS13 ou da geografia da fala. Seria a possibilidade de pensar Simone de Beauvoir, assim como a possibilidade de pensar em “anónimas” como Joana Semião, que em Moçambique não é conhecida propriamente pela bandeira do feminismo, mas como aquela que pensava ideologicamente e politicamente o país na década de 1970 (Meneses 2017).

O continuum no feminismo é a possibilidade de perceber a geografia da construção social e cultural nas questões de mulheres e homens, sem ignorar a geografia global da fala.

Discurso neoliberal

O discurso neoliberal encontra “pano para mangas” nos discursos e escritos dos académicos, alicerçados nos média, por um lado, e, por outro, em nome dos projetos de desenvolvimento, nas agências bilaterais, ONG internacionais com o suporte plagiador das ONG locais, na lógica one size fits all.

Em nome do desenvolvimento, perdemos a criatividade e a inovação, pois copiamos, plagiamos e reproduzimos muito das culturas e práticas de fora, e esquecemo-nos de perceber o contexto local.

O homo ɶconomicus e o homo politicus moçambicano impactam no comportamento económico das mulheres e dos homens, para poucos, um impacto positivo e, para muitos, um impacto negativo psíquico. O discurso e a prática neoliberal têm influência na saúde mental, no comportamento, e este, por sua vez, na vida das mulheres e dos homens, nos espaços privados e públicos. O neoliberalismo pode ser visto neste contexto como causador de dor e sofrimento psíquico, ou seja, como mal-estar na coletividade social.

Os termos homo ɶconomicus e homo politicus foram forjados por Michel Foucault, nas aulas sobre o neoliberalismo no Collège de France, com bases filosóficas, a começar por Aristóteles. Os eventos económicos trazem novos entendimentos na relação Estado, governo, política, cidadão e economia, relação esta que nem sempre é muito clara. Esta nova forma de relação afeta as relações intraindividuais e intergrupais, e não só, valores como democracia, cidadania, participação, política e cultura passam a ter novo patrão: o poder económico e as regras do mercado. De facto:

o discurso neoliberal reduz toda a legitimação da argumentação política à esfera da argumentação económica; por consequência, toda a acção levada a cabo por actores, por instituições públicas pode ser acolhida como oportuna, racional, ou conforme o objectivo, somente de se deixar interpretar como eficaz, em termos de mercado. (Ngoenha 2013, 68)

Outrossim, “a liberdade económica deixou de ser somente a liberdade fundamental e o alicerce de outros tipos de liberdades(de certa forma o liberalismo já defendia isso, para a sua defesa passa a ser quase a única razão de ser do Estado moderno” (Castiano 2018, 21)14.

A viagem analítica destes dois filósofos glocais ilustra as liberdades limitadas em nome do neoliberalismo, a substituição do poder político e social pelo poder económico e pelas regras do mercado. Neste contexto, as questões do feminismo são substituídas também pela lógica da economia do mercado, dando assim espaço para a análise da psicologia económica no contexto moçambicano, pois vivemos com o homo ɶconomicus que manda no homo politicus.

O homo ɶconomicus e o homo politicus (re)surgem na conjuntura da sobreposição do económico sobre o social, sobre o político, sobre o cultural e espiritual, sobre o económico e quiçá sobre o próprio Estado. Ou melhor, o posicionamento destes face ao monstro do neoliberalismo, que devemos acreditar que é para o nosso bem-estar, que é para o desenvolvimento, fragiliza as bases sociais e culturais de uma sociedade holística que se justa.

Mas onde colocar a mulher Joana Semião no homo ɶconomicus e homo politicus? A construção da história e a consolidação da ciência são vistas como uma forma de ausência (ocultação e silenciamento) sobre as narrativas das mulheres no processo das mesmas, até estas, num momento pós-revolução francesa, começarem a reivindicar o seu espaço nos eventos públicos e políticos, além da naturalização do espaço privado.

O homo ɶconomicus encontra pano para mangas nos discursos neoliberais em nome do desenvolvimento e da modernidade. Daí a necessidade de perceber o neoliberalismo muito além do conceito simplista de regras do mercado, da visão economicista, da visão do comportamento económico, o económico sobre o político e quiçá moral, do monopólio do mercado sobre o social, acrescento aqui o cultural, que traz consigo toda uma nova realidade para o quotidiano das mulheres e dos homens.

Com o neoliberalismo, precisamos de pensar nas economias fragilizadas como porta de entrada para toda este sistema ou ideologia material, vamos percebê-lo como uma forma de dominação, como forma de colonização. Repare-se que quanto mais abrirmos as portas para as agendas ditas de “ajuda”, ou melhor, quanto mais exposto se está a estas formas de ajuda externa, mais se silencia o “ethos dos locais”, dando voz ao “ethos dos vientes”. As áreas mais frágeis são as agendas das mulheres, a educação e a saúde, onde, no caso das mulheres, dão atenção às lógicas globais e, de forma inconsciente, fragilizam as lógicas locais.

No seio dos académicos, existe uma perceção tácita, naturalizada, e quiçá inconsciente, na memória coletiva destes sobre o papel e o lugar e até sobre o ethos da mulher no espaço social e económico. O filósofo moçambicano Ngoenha (2015), na sua obra Terceira Questão, que mergulha numa análise sobre o debate eleitoral em Moçambique em 2014, ousa colocar as mulheres moçambicanas, todas elas, na seguinte panela, para não escrever no mesmo saco: “As senhoras em Moçambique sofrem literalmente com o sapato de salto alto brasileiro que invadiu o nosso mercado, e não há uma que se respeite que não tenha uma bolsa cavalinho” (2015, 42).

Este jargão coloca a mulher numa posição de escrava do consumo, escrava dos média e sobretudo veda ao pensador a possibilidade de perceber as mulheres no espaço público. Numa visão mais neoliberal, coloca as mulheres na tecnologia do consumo, na arquitetura não de produtoras, mas, sim, na posição de reprodutoras.

Esta forma de representação social sobre as mulheres no espírito dos debates sobre a conjuntura social, política e económica moçambicana é a mais comum nos comentadores de televisão. Não importa se o tema em análise está ou não associado à mulher, se o assunto é economia, política ou de outra índole, o exemplo é a mulher, se o assunto são os cabeças-de-lista que pulam de um partido para outro, o exemplo são as mulheres, mesmo sabendo que estamos, de novo, num cenário de muitos candidatos homens contra poucas candidatas mulheres nas três principais forças políticas (FRELIMO, MDM e RENAMO).

Os média (noticiários, comentadores e moderadores dos debates), através dos debates televisivos sobre temáticas da desenvolvimento moçambicano no geral, de forma (in)consciente ou não, evocam um imaginário moçambicano, amplamente carregado de abordagens preconcebidas centradas em debates, discursos, narrativas e práticas sobre género (nos espaços privados e públicos). O mais comum nos discursos nestes debates e noticiários televisivos é apelar às práticas ditas “retrógradas”, como, por exemplo, confinar as mulheres ao espaço privado nas suas múltiplas facetas, os desequilíbrios de poder e iniquidade de género.

Ao trazer estes aspetos para o contexto dos debates, as narrativas e discursos sobre género e feminismo omitem e ignoram uma séria de pontos, e incluem outros estruturais que se inscrevem na definição e inscrição da noção da cidadania. A qualquerização das mulheres não difere da banalização do mal.

[O] discurso neoliberal reduz toda a legitimação da argumentação política à esfera da argumentação económica; por consequência, toda a acção levada a cabo por actores, por instituições públicas pode ser acolhida como oportuna, racional, ou conforme o objectivo, somente de se deixar interpretar como eficaz, em termos de mercado. (Ngoenha 2013)

O que o totalitarismo, a psicologia da ditadura e a psicologia do silêncio interessam ao homo ɶconomicus e ao homo politicus moçambicano no processo de pensar o país com os silêncios e as ausências das mulheres?

Considerações finais

O processo ideológico e político de silenciar a intelectual Joana Semião do espaço formal moçambicano não a tornou invisível. As suas entrevistas, as suas imagens monumentais e a sua firmeza criam um duplo sentimento, por um lado, a curiosidade e, por outro, o questionamento do porquê do “desconhecimento” dela nos espaços formais.

Um país, um continente, um contexto “global” que ainda luta com as feridas narcísicas masculinas, ou seja, um contexto dominado, na sua maioria, pelos homens nos espaços públicos, independentemente da conjuntura, Moçambique não se pode dar ao luxo de ter esta figura hercúlea em “parte incerta”. Não podemos continuar a reproduzir uma narrativa de falta de mulheres nos espaços de tomada de decisão, associada ao jargão da “capacidade”, ou melhor, a célebre frase dos média moçambicanos, “não basta ser mulher, deve ser capaz", quando “tivemos” uma verdadeira guerreira com recurso ao poder da palavra, uma crente de valores democráticos, mesmo estando num contexto de “timocracia”.

Os monstros que assolam a dupla homo ɶconomicus e homo politicus já eram esmiuçados pela intelectual Semião. O que nos falta como país é a tão necessária “reconciliação” com os nossos fantasmas, com os nossos inimigos, com os nossos traidores, com os nossos Xiconhocas, rumo a um Moçambique tolerante e quiçá inclusivo, onde o pensar diferente deixará de ser visto como um “crime”.

As universidades precisam sair da caverna para ir ao encontro dos Xiconhocas, dos terroristas. Pois, elas, as universidades, também têm um grande papel a desempenhar no processo da reconciliação. Qual seria o lugar da Joana Semião na academia moçambicana?

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1Em Moçambique, durante o primeiro ano de independência, o inimigo foi representado como Xiconhoca, num contexto monopartidário, onde se pretendia criar uma nova nação sem inimigo, onde o foco era a construção do Homem Novo, que encontrou na figura propagandista do Xiconhoca (inimigo interno) o ponto de partida para moralizar a sociedade. O Xiconhoca ou Chico Feio (agente da PIDE), literalmente significa: Xico, atribuído a um agente a PIDE, tido como feio, e nhoca, na língua local significa cobra (traidor). É de frisar que este jargão ainda faz parte das narrativas moçambicanas. O pensar diferente ainda é associado à figura do Xiconhoca.

2Parte desta secção é construída com base nas entrevistas que Joana Semião deu ao canal RTP1 em 1974 (Semião 1974).

3Designação colonial da época.

4A sugestão foi de Marcello Caetano, visto que o multipartidarismo ainda não fazia parte da realidade da metrópole.

5Legalizado em 1974. Vide Meneses (2017).

6O comício foi organizado pelo GUMO e teve Joana Semião como oradora. Nele foram anunciados os objetivos do GUMO, entre aplausos e desconfiança, 1974

7A FRELIMO enviou-a, na companhia de outros, para o centro de “reeducação” na província de Niassa (norte de Moçambique), e de lá existem narrativas sobre o seu “desaparecimento” nos finais da década de 1970 e início da década de 1980, sem ainda um posicionamento formal do sistema.

8As questões que ela levantara na década de 1970 fazem parte das questões que o país hoje enfrenta. Ainda se fala e busca a paz para as moçambicanas e os moçambicanos, o que torna esta intelectual intemporal para a realidade do país.

9Não estou a defender uma fasquia baixa para as mulheres, mas a ilustrar como por vezes a formalidade dos processos mata a dinâmica informal. No lugar de perceber a informalidade, têm-se criado regras e normas no informal à luz do formal.

10É preciso ter autonomia na criação dos milagres locais, assim como no processo de escolha dos “santos” de casa. Precisa ser um processo de dentro para fora, sem ignorar outros contextos.

11Transformando cada vez mais a agenda do feminismo numa agenda global, perdendo oportunidades de percebê-lo na sua glocalidade.

12«A ideologia que mistura os interesses capitalistas com o colonialismo e a colonialidade, sob o pressuposto errado de que só existe uma forma global de prosseguir o desenvolvimento» (Tamale 2020).

13Global Positioning System.

14“Não obstante à promessa de uma nova liberdade que o ‘monstro’ nos vendeu logo desde o início da sua existência, em Moçambique hoje, em Africa em geral, e mesmo no Ocidente1, avolumam-se críticas ao modelo neoliberal de desenvolvimento. Este modelo parece, na retórica de muitos, ser a causa de todos males sociais e económicos dos países da periferia, sejam do dito Norte, sejam do dito Sul" [1 Países como Portugal, Grécia, Espanha e outros estão no centro da produção crítica contra o que chamam por modelo neoliberal de desenvolvimento, estando Alemanha no centro das suas críticas] (Castiano, 2018, 16).

Recebido: 16 de Julho de 2020; Aceito: 22 de Outubro de 2020

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