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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.43 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.22355/exaequo.2021.43.12 

Recensões

Recensão: Problemas de género

1 Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola. Email: ermelinda.liberato@gmail.com

Butler, Judith. ., , Problemas de género. . Trad., Quintas, Nuno. ., Lisboa: :, Orfeu Negro, ,, 2017. ,, 319 ppp. . ISBN:, ISBN: 9789898868091.


Mulher, feminismo, género, sexualidade, identidade, são palavras e conceitos que imperam nos discursos político, ideológico, académico, e que estruturam, na atualidade, as relações sociais em todas as suas dimensões. Amplamente debatidas nas diferentes áreas do saber, têm seguido uma evolução e constante atualização, permitindo-nos conhecer melhor fatos e acontecimentos desde sempre camuflados e dissimulados bem como, o caminho trilhado ao longo dos séculos com o objetivo alterar essa realidade, mostrando deste modo, os desafios que ainda temos pela frente. São estas conceptualizações que continuam a orientar a luta das mulheres pelo reconhecimento da sua condição enquanto mulheres. E são igualmente estes, os conceitos centrais, a par de outros defendidos pela autora, norteadores de Problemas de Género, de Judith Butler.

A autora dispensa qualquer tipo de apresentação. Considerada uma das mais importantes teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, bem como uma das filósofas mais emblemáticas da atualidade, o seu trabalho em torno da desconstrução de um processo histórico que alheou as mulheres dos espaços públicos e dos direitos civis, fazem desta uma das referências intelectuais mais importantes da contemporaneidade.

Originalmente publicada em 1990, a obra continua tão atual como aquelas que foram sendo editadas nos anos que se lhe seguiram, até ao presente, constituindo assim uma referência incontornável na área dos estudos sobre as mulheres, do género/feminismo/sexualidade, daí a importância da sua tradução e publicação em Portugal, 27 anos depois da sua 1ª edição. O debate filosófico tecido em torno dos conceitos identificados, mas sobretudo, da inter-relação entre os mesmos, fazem deste um documento indispensável de consulta e um “dos textos mais importantes da teoria feminista, dos estudos do género, da teoria queer” (p. 5). Tendo como ponto central a forma como a identidade de género é construída no e pelo discurso, Judith Butler estabelece uma teoria do género não identitária, caraterizada pela análise das relações complexas entre género e sexualidade, despertando no/a leitor/a a necessidade de repensar a ação política e os seus limites.

Dividida em três capítulos, todos eles densos e assentes num debate teórico complexo que “implica uma imersão na filosofia, na literatura, na psicanálise, na teoria social e cultural” (p. 9), é antecedida pelo prefácio de João Manuel de Oliveira “Dançar primeiro e pensar depois” (pp. 5-15), assim como o prefácio de Judith Butler da edição lançada em 1999 (pp. 17-42) onde a autora reconhece que a obra foi produzida “não apenas para a academia, mas a partir de movimentos sociais convergentes” (p. 29) de que faz parte, ou seja, igualmente autobiográfico, bem como o prefácio de 1990, data da publicação e primeira apresentação de Problemas de Género. O destaque vai para a forte influência de Jacques Derrida (1930-2004), que Butler reconhece (p. 26), mas igualmente de outros intelectuais franceses como Jacques Lacan (1901-1981), Monique Wittig (1935-2003), Simone de Beauvoir (1908-1986), Michel Foucault (1926-1984), Herculine Barbin (1838-1868), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Julia Kristeva (1941-), bem como Sigmund Freud (1856-1939), constituindo aquilo que a própria classifica de “promiscuidade intelectual” (p. 21).

O capítulo I “Sujeitos de sexo/género/desejo” (pp. 53-106) tem como ponto de partida o entendimento sobre quem são e quem podem ser as mulheres. Segundo Butler, trata-se de um “termo problemático, um lugar de disputa, uma causa de ansiedade” (p. 57), daí a necessidade imperiosa da sua desconstrução. Uma das preocupações da autora diz respeito às assimetrias instituídas entre sexo e género, questionando se, a partir dessa diferença, o género como resultado de uma “construção cultural” (p. 62) poderia ser estruturado de outra forma. Defende, de igual modo, que o sexo “seja tão culturalmente construído quanto o género; talvez sempre fosse o próprio género” (p. 63), ou seja, sexo e género são construídos socialmente e instituídos culturalmente, sendo género imposto de “forma performativa, pelas práticas da coerência de género” (p. 91) e sexo uma categoria genderizada, definindo, os dois, o corpo.

E aqui a autora introduz o conceito de performatividade, que a própria assume dificuldades em definir dado que, “os (seus) pontos de vista mudaram ao longo do tempo” (p. 26), mas trata-se, sobretudo, de um processo em construção, não estável, complexo. O próprio conceito de identidade de género é, de igual modo, performativamente construído. Butler chama assim a atenção para a necessidade de desconstrução de conceções e ideias historicamente delimitadas que levam à imposição de conceitos que acabam assumidos como “ideal normativo” (p. 79), constituindo deste modo, “uma estratégia epistemológica colonizadora” (p. 108), redutora, de apropriação e opressão sobre o Outro.

No capítulo II “proibição, psicanálise e a produção da matriz heterossexual” (pp. 107-176), adotando uma perspetiva interdisciplinar (antropologia, antropologia estruturalista, filosofia, psicanálise) e assente em diferentes correntes de pensamento, a autora pretende analisar “como se constroem e naturalizam os dualismos sexo/género e natureza/cultura em si e através do outro?” (p. 111). Para o efeito, reflete em torno de definições previamente formuladas como masculino/feminino (e outros conceitos que giram em torno destes, nomeadamente, patriarcal, patrilinear), sexualidade (homo e hétero), masculinidade “se for o Falo ou ter o Falo denotam posições sexuais divergentes” (p. 121), feminilidade, sendo que masculinidade e feminilidade são conceitos socialmente construídos que concorrem para a formação da identidade e estruturam a construção do Outro, ancorados pelas “instituições culturais (a família, as formas residuais de intercâmbio de mulheres, a heterossexualidade obrigatória) e simultaneamente incutidas pelas leis que estruturam e impulsionam o desenvolvimento psíquico individual” (p. 168).

A autora continua o seu debate em torno da relação cultura/natureza na construção dos conceitos no capítulo III “Actos corporais subversivos” (pp. 177-280). Para o efeito, recorre-se de três autores para reforçar a sua posição, nomeadamente: a) Julia Kisteva e a política do corpo. “Kristeva descreve o corpo materno como portador de um conjunto de significados anteriores à cultura em si” (p. 179); b) Michel Foucault e Herculine e a política de descontinuidade sexual. “Foucault pensa a sexualidade enquanto produtora de sexo como conceito artificial que alarga e dissimula as relações de poder responsáveis pela sua génese” (p. 198); c) Monique Wittig e a desintegração corporal e sexo fictício. Para Wittig, “masculino” e “feminino”, “macho” e “fêmea” existem apenas dentro da matriz heterossexual” (p. 228).

Depois de lermos este livro deixamos seguramente de ser indiferentes a essas categorizações em torno das mulheres. Numa tentativa de compreender os Problemas de Género, são levantadas outras problemáticas que alargam o seu campo de estudo para uma interdisciplinaridade enriquecedora e ao mesmo tempo profunda e complexa. É ponto assente todas as vicissitudes que estas têm enfrentado bem como o seu caminho de uma luta que, apesar de longa, ainda vai no início, para alteração da sua condição de dominação, subjugação, opressão… estamos assim em presença de mais um contributo para esse processo reivindicativo.

A compreensão do que significa ser e sentir-se mulher, a estruturação da sua identidade e a definição da sua sexualidade é um processo individual e que abarca uma grande heterogeneidade de significados que importa analisar e compreender. Problemas de Género são assim problemas que cada um/a de nós enfrenta no seu quotidiano, em determinado momento da sua vida. O género afigura-se como um problema na medida em que se “constitui como um instrumento de sujeição, que resiste à própria noção de unidade” (p. 241). Não são apenas “problemas” individuais e biológicos, mas também resultado de um contexto social, cultural, histórico, político, religioso. Abordar a questão da sexualidade significa desconstruir esse “ideal de pureza” que foi discursivamente edificado em torno da mulher, responsabilizada pela reprodução biológica, social e moral, apenas para a manter dominada, condicionando assim a sua elevação cultural

É merecedora de todo o reconhecimento a Orfeu Negro Editora pelo esforço, trabalho, dedicação e investimento. Um agradecimento especial vai para o tradutor Nuno Quintas que, 27 anos depois da sua publicação original e dos debates suscitados, empreendeu um trabalho digno de aplaudir, isento de influências e de interferências, responsabilidade assumida e muito bem conseguida. Se o presente documento despertar a reflexão, a inquietação, a crítica, então cumpre com o seu propósito.

Referências

Butler, Judith . Problemas de género. Trad. Nuno Quintas . Lisboa: Orfeu Negro, 2017. [ Links ]

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