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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.43 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.22355/exaequo.2021.43.13 

Recensões

Recensão: Mulheres Invisíveis. Como os dados configuram o mundo feito para os homens

1 Universidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, 3000-115 Coimbra, Portugal. Email: rosalocs@gmail.com

Perez, Caroline Criado. ., Mulheres Invisíveis. Como os dados configuram o mundo feito para os homens. ., Lisboa: :, Relógio D’Água, ,, 2020. ,, 392 ppp. . ISBN:, ISBN: 9789897830235.


É um facto: este planeta é habitado por quase oito mil milhões de pessoas e mais de metade são mulheres. Todavia, o espaço público não faz eco desta maioria.

Sabemos que existe disparidade salarial entre homens e mulheres, que as mulheres são mais frequentemente vítimas de violência sexual, são elas que, na maioria, arcam com a responsabilidade do trabalho não renumerado e que, com maior frequência, assumem o papel de cuidadoras. Em Mulheres Invisíveis, Caroline Criado Perez analisa estes aspetos e muitos outros, e verte-os em exemplos palpáveis, com dados a sublinhar a falta de representatividade das mulheres, documentando, assim, um problema de longa data. A ausência de dados que inclua as mulheres, o défice informacional de género, aliado ao universal masculino, potencia o silêncio e torna mais de metade da população mundial invisível, apagando conquistas, experiências e necessidades do dia-a-dia. Neste livro expõe-se as lacunas em torno da informação que é colidida e faz-se uso dos dados que estão acessíveis para mostrar os efeitos reais e profundos do défice informacional de género na vida das mulheres, quer seja no local de trabalho, no meio académico, na investigação médica, na esfera privada ou na vida pública.

O volume de dados sobre os homens, Big Data, torna-se a referência para toda a humanidade, uma consequência da ausência de dados desagregados por sexo, perpetuando o mito da universalidade masculina, nem sempre maliciosa ou deliberada, mas produto de um pensamento que existe há milénios. Porém, esta abordagem tem permitido às pessoas com responsabilidades sociais e políticas, sistematicamente ignorar e negligenciar as mulheres e as suas necessidades, postura que este livro pretende contrariar e alterar, basta para tal, envolver as mulheres na discussão, dando voz às suas inquietações. As mulheres e o défice informacional de género são centrais a este livro, e Caroline Criado Perez adiciona ainda as camadas interseccionais de etnia, identidade de género, deficiência e pertenças várias que são ampliadas pela ausência de dados, criando-se um efeito pernicioso cumulativo ainda maior.

O livro centra-se em seis temas, com um número irregular de capítulos por tema, num total de dezasseis, cuja abrangência vai desde o quotidiano (capítulos 1 e 2), passando pelo local de trabalho (capítulos 3, 4, 5 e 6), pela conceção de espaços e ferramentas (capítulos 7, 8 e 9), pela ida aos serviços de saúde (capítulos 10 e 11), pela vida pública (capítulos 12, 13 e 14) até desaguar na gestão de conflitos, pandemias e catástrofes naturais (capítulos 15 e 16). Cada capítulo compreende uma revisão abrangente dos dados existentes para mostrar que as mulheres são sistematicamente excluídas na recolha desses dados e na tomada de decisões.

No que concerne ao quotidiano, as mulheres fazem 75% do trabalho não remunerado em todo o mundo, e isso afeta as suas necessidades de deslocação. Ir às compras, levar as crianças à escola, cuidar de pessoas idosas, todas estas responsabilidades exigem que as mulheres se desloquem em padrões diferentes dos dos homens, recorrendo com maior frequência aos transportes e à via pública. Ter estes aspetos em consideração fez com que em Karlskoga, uma cidade na Suécia, se baixasse drasticamente o número de internamentos de mulheres por quedas, simplesmente por se priorizar a limpeza de neve em passeios e não em estradas, estas mais frequentemente usadas pelos homens que se deslocam em viatura própria até ao local de trabalho.

Também o planeamento urbano e o acesso aos espaços públicos se tornam “masculinos por defeito” (p. 84), quando não há preocupações de género e não se tem em linha de conta a socialização das mulheres, pois estas enfrentam uma imensidão de comportamentos sexuais intimidatórios em diferentes espaços públicos, nos ginásios, nas paragens dos autocarros, nos parques de estacionamento.

Em média, 61% do trabalho doméstico diário é assumido pelas mulheres, o que se traduz em mais horas de trabalho. Mesmo quando os homens aumentam o seu volume de trabalho não remunerado é pouco provável que desempenhem tarefas embaraçosas e emocionalmente desgastantes. O trabalho das mulheres, renumerado e não renumerado, é a espinha dorsal da sociedade e da economia, logo as conceções do mundo do trabalho devem ser reconsideradas, por forma a assentarem na informação sobre os corpos e as vidas das mulheres.

Na conceção de espaços e ferramentas, os dados mostram que os fabricantes se regem pelo “tamanho único para homens” (p. 178), criando assim produtos que são difíceis de usar pela outra metade da população mundial. Das ferramentas agrícolas aos smartphones, dos instrumentos musicais ao software de reconhecimento de voz, o design do produto é baseado no padrão masculino, sendo que as mulheres se devem adaptar a esse padrão. No caso da segurança rodoviária, esta premissa pode ser fatal, considerando o equipamento de segurança nos automóveis - os encostos de cabeça, os cintos de segurança e os airbags. Os manequins de teste de colisão baseiam-se no percentil 50 masculino, com cerca de 1,77 metros de altura e 76 quilos de peso. O facto de o equipamento de segurança não ter em consideração que as mulheres são, em média, mais baixas e mais leves, contribui para a chocante estatística de que, quando uma mulher se vê envolvida num acidente, tem mais 47% de probabilidade de se ferir gravemente do que um homem. A situação agrava-se se tivermos em consideração as grávidas, muito embora um manequim de grávida tenha sido criado em 1996, mas o seu uso em testes não é obrigatório por lei.

Também a ida aos serviços de saúde se reveste de discriminação para as mulheres, permitindo que estas sejam cronicamente incompreendidas, maltratadas e mal diagnosticadas. A área da saúde baseia-se geralmente em dados recolhidos sobre os homens, sendo as mulheres apresentadas como uma variante da humanidade padrão. Os corpos femininos são demasiado complexos, demasiado variáveis, demasiado dispendiosos para serem testados, e a ausência de dados organizados por sexo afeta a capacidade de oferecer às mulheres aconselhamento médico fiável. A grande maioria dos medicamentos tem instruções de dosagem de ‘sexo neutro’ determinadas pela taxa metabólica, percentagem de gordura corporal e outras características biológicas de um homem branco médio. Também neste campo, a gravidez é vista como um caso raro e especial. Os tratamentos para doenças comuns, como a gripe, são virtualmente desconhecidos para mulheres grávidas, porque estas são excluídas de todos os ensaios clínicos.

No âmbito da vida pública e da economia, a incapacidade de medir o trabalho doméstico não renumerado talvez seja o maior dos défices informacionais de género, com estimativas a apontar para a contribuição dos cuidados domésticos para 50% do PIB nos países ricos e 80% nos países pobres. Ao que parece, “o PIB tem um problema com as mulheres” (p. 257). O trabalho não remunerado não é simplesmente trabalho de mulheres. É uma atividade que beneficia toda a sociedade e impulsiona a economia. No entanto, também impede as mulheres de dedicaram esse tempo ao trabalho remunerado, este sim, com impacto significativo no PIB. A baixa percentagem de participação na força de trabalho remunerada acarreta disparidades salariais entre homens e mulheres, o que, por sua vez, permitiu que se desenvolvesse um sistema tributário que desincentiva as mulheres de ingressarem em empregos remunerados.

Também em política e em democracia não há igualdade de condições, sendo que há um preconceito contra a eleição de mulheres. A prática de excluir as mulheres da tomada de decisões é generalizada e basta prestar atenção a reuniões de estado e de governo, para contar o número de homens sentados à mesa em comparação com as mulheres na mesma sala. Ainda que as democracias deste mundo tenham o que se chama um código de conduta, pondo de parte atitudes sexistas e misóginas, a maior parte dos países age como se as mulheres na política não lidassem com uma desvantagem estrutural. A tónica deve ser a diversidade, diferentes pontos de vista que beneficiam toda a população.

A última parte do livro centra-se nos contextos de guerra, conflitos, desastres naturais e pandemias, e nos esforços pós-desastre vedados às mulheres. Se quando as coisas correm bem há reticência em incluir a perspetiva das mulheres, em contexto de calamidade o preconceito serve como desculpa para não as envolver. Os responsáveis pela gestão pós-calamidade são quase exclusivamente homens, homens que apresentam uma série de desculpas para atrasar ou ignorar as preocupações das mulheres, como foi o caso com o tremor de terra de 2001 em Gurajat, na Índia, o tsunami de 2006, no Sri Lanka, ou o furacão Katrina, em 2005, nos EUA. A verdadeira razão pela qual foram excluídas as mulheres é porque encararam os direitos de 50% da população como um interesse de uma minoria.

Quando as mulheres conseguem escapar à violência masculina e ao conflito, as coisas não melhoram com o estatuto de refugiadas. O que devia ser uma simples ida à casa de banho torna-se uma atividade de alto risco para as mulheres nos campos para pessoas refugiadas, onde algumas passaram a usar fraldas para adultos, tentando escapar à violência sexualizada. O apelo para que possam ser disponibilizados artigos de cuidados obstétricos e de contraceção para as mulheres refugiadas tem sido ignorado pelos responsáveis, relegando esses itens essenciais para o final da lista de prioridades.

Este é um livro sobre como o conhecimento é criado, partilhado e (re)produzido. Evidencia uma pesquisa sólida dos assuntos apresentados, permitindo o aprofundamento de conteúdos a quem os queira investigar por conta própria, recorrendo, para tal, às notas que se estendem ao longo de quarenta e nove páginas.

A autora doseia equilibradamente dados, números e percentagens com ironia e apartes, a juntar aos títulos pouco comuns dos capítulos, sem preocupações de maior com os cânones académicos, tornando a leitura fluida. Não deixa de ter, por isso, uma perspetiva incisiva, perspicaz e escorreita acerca dos assuntos apresentados e da realidade que os dados transmitem. Diminuir o défice informacional de sexo e de género está estreitamente ligado à representação feminina, pois onde há mulheres envolvidas nas tomadas de decisões, estas tendem a não esquecer as outras mulheres. Esta peça jornalística extensa, esclarecedora e envolvente, cuja leitura recomendo, será um “abrir de olhos” para pessoas dos vários quadrantes da vida pública. É uma leitura fundamental se quisermos ter em linha de conta os desafios que metade da população mundial enfrenta.

Referências

Perez, Caroline Criado. Mulheres Invisíveis. Como os dados configuram o mundo feito para os homens. Lisboa: Relógio D’Água, 2020. [ Links ]

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