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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.44 Lisboa Dec. 2021  Epub Dec 31, 2021

https://doi.org/10.22355/exaequo.2021.44.00 

Editorial

Editorial ex æquo

1 Diretora da ex aequo, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 3000-995 Coimbra, Portugal.


Neste quadragésimo quarto número da ex æquo dedicamos o dossier temático às “Desigualdades sociais e medidas de ação afirmativa”. A sua organização esteve a cargo de Carla Cerqueira (Universidade Lusófona - CICANT, Portugal), Maria Helena Santos, (Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE-IUL e CIES, Portugal) e Renísia C. Garcia Filice - (Universidade de Brasília - UnB, Brasil).

As políticas de ‘ação afirmativa’ nasceram nos anos de 1960, nos EUA, para apoiar a luta por uma sociedade mais justa, sem opressão e discriminação raciais. Desde então, a sua filosofia e praxis têm-se estendido a outros eixos de desigualdade e discriminação, nomeadamente, o das relações sociais de género. Definidas como instrumentos de promoção da justiça racial, sexual, social em termos gerais, continuam envoltas em forte polémica em torno das profundas divergências sobre as vias a percorrer para alcançar a justiça almejada, sejam as suas justificações ‘compensatórias’, de uma herança profundamente discriminatória, ‘redistributivas’ de oportunidades ou ‘úteis’ na contenção da conflitualidade social. Abrangendo uma ampla gama de políticas, a ação afirmativa visa aumentar a inclusão de grupos sociais cuja sub-representação em profissões ou posições sociais de mais alto estatuto é entendida como sendo um resultado da discriminação, passada ou presente, de que são alvo. No caso das desigualdades entre mulheres e homens, traduzem-se em estratégias corretivas ou compensatórias das situações de desigualdade e discriminação com que se confrontam mulheres e homens.

Estas políticas passam necessariamente pelo reconhecimento de que há pessoas com menos oportunidade de alcançar os seus objetivos devido a impedimentos de natureza histórica, social e política, independentes da sua vontade. Trata-se, portanto, de ultrapassar a lógica limitada da igualdade perante a lei, paradigma da ideologia liberal, e intervir no sistema organizado socialmente sobre uma estrutura social baseada na desigualdade de oportunidades e de tratamento de cada pessoa em função das suas características raciais, sexuais, étnicas, etc., que podem até, em alguns casos, ter expressão biológica, mas que são social e culturalmente construídas, através de atitudes, comportamentos e modos de ordenação social.

Entendidas enquanto políticas temporárias, destinadas a um grupo específico, centradas nas suas desvantagens, procuram através de “medidas especiais” promover a aquisição, por parte dos membros do grupo, dos requisitos necessários à sua integração nos lugares sociais donde estão arredados, total ou parcialmente. Ou, em alternativa, são centradas na determinação da integração compulsória. Uma vez que envolvem tratamento desigual de um determinado grupo, seja qual for o critério que o define, recolhem a rejeição generalizada de um senso comum robustecido no caldo do individualismo e do liberalismo. A esta luz, uma vez instaurada a igualdade de todas as pessoas perante a lei, haveria apenas que aplicar leis gerais, abstratas e iguais para toda a gente, sem distinção de raça, de género, de etnia, etc.

Há que reconhecer que se trata de políticas que desafiam profundamente as filosofias políticas dominantes, como tal é extensa a agenda de investigação que em seu torno se tem desenvolvido e que tem atravessado várias fases. Enquanto parte importante, desde há décadas, das políticas de igualdade de género europeias, no quadro das quais adota a designação de ‘ações positivas’, as análises concentram-se atualmente na sua aplicação e efetividade, desvelando-nos um mundo de clara confrontação, de resistência passiva ou de aceitação relutante, da parte dos grupos sociais privilegiados, e de visões ambivalentes e sensibilidades mistas, da parte dos grupos alvo. Em causa está a perceção de como a estrutura cristalizada vai reagir às medidas ‘especiais’ com normas diferentes das formal e informalmente implantadas, e quem diz a estrutura diz as pessoas - as instaladas e as intrusas. Com que eficácia são aplicadas estas políticas de ação positiva/ação afirmativa? A sua eficácia é a mesma ou difere consoante o campo de aplicação? A sua longevidade reforça a sua aceitação ou a sua rejeição? A sua naturalização está condenada pelo seu caráter temporário? Diga-se que se trata de questões infindáveis e que irão permanecer nas nossas agendas de investigação à medida que a aplicação deste tipo de políticas se dissemina em cada vez mais países, por reivindicação dos grupos sub-representados, e a polémica em seu torno se agudiza em resultado do crescimento das forças políticas crentes no neoliberalismo e no suprassumo do estatuto do indivíduo. No campo das políticas de igualdade de género europeias, em particular, a resistência é um resultado do forte crescimento dos movimentos anti-género.

A ex ӕquo promete continuar atenta a esta problemática, desde já, no próximo dossier que reunirá artigos em torno dos Desafios feministas ao Direito: resistências e possibilidades.

Além do conjunto de textos compilados no dossier temático deste número, disponibilizamos a leitura de outros textos que respondem a outras inquietações científicas. O primeiro artigo da secção de Estudos e Ensaios prolonga o diálogo relativamente às abordagens bibliométricas, no caso vertente relativamente aos Estudos de Género na Colômbia. Jean Nikola Cudina e colegas, interrogam-se sobre o “What Can We Say About Gender Studies in Colombia? An analysis from a socio-bibliometric perspective”, sugerindo linhas de caracterização através do estudo sociobibliométrico de 1328 artigos sobre género registada na base de dados Scopus. Uma das principais conclusões é a de que, à semelhança do que tem acontecido em outras geografias, o ensino superior público é um pilar fundamental do desenvolvimento registado nesta área de estudos. Barnali Das e de Rekha Pande, por seu turno, providenciam-nos as “Chronicles of Civil Society in Assam and Meghalaya: Converting girls and women from ‘bad to good’”, evidenciando a complexidade paradoxal dos processos de “resgate” de mulheres vítimas de tráfico sexual, numa região da Índia, que acabam encarceradas em lugares altamente vigiados e sujeitas a uma lógica patriarcal de contraste entre modelos de mulheres ‘boas’ e ‘más’. Por fim, Teresa Colomina-Molina mostra como o “Artivismo feminista y Flashmob: lenguaje corporal en el mundo oriental” favorece o empoderamento das mulheres na Índia e no Sudeste Asiático, ao poderem recorrer às redes sociais, nomeadamente o Instagram, para coletivamente se expressarem através da dança e do movimento do corpo.

As sugestões de leitura no capítulo das Recensões são as seguintes: Manuel Abrantes sugere-nos a obra Poesia e prosa, de Judith Teixeira, porque se trata de um contributo importante para desocultar o trabalho artístico de mulheres durante a Primeira República e a experiência de quem ousou desafiar os códigos de género impostos à sua criatividade e sexualidade. Monise Martinez dá-nos a conhecer uma obra que, certamente, vai suscitar o interesse de quem na América Latina acompanha a revista. Trata-se da obra sobre Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina, de Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione, na qual encontramos análises multidisciplinares dos movimentos anti-género cada vez mais visíveis naquela e noutras geografias. Bibiana Garcez chama a atenção para a importância da perspetiva feminista nos estudos mediáticos, tal como são analisados por Alison Harvey em Feminist Media Studies, para “futuras, mais profundas e emancipadoras explorações do campo”.

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