SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número44Artivismo feminista e Flashmob: linguagem corporal no mundo orientalRecensão: Gênero, neoconservadorismo e democracia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.44 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

 

Recensões

Recensão: Poesia e prosa

1 SOCIUS/CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão, ISEG, Universidade de Lisboa. manuelabrantes@gmail.com

Poesia e prosa, de Judith Teixeira. , organização e estudos introdutórios de, Alonso, Cláudia Pazos; Silva, Fabio Mario da. ., Alfragide: :, Dom Quixote, ,, 2015. ,, 370p. pp.


Judith Teixeira tinha vinte anos de idade quando se iniciou o século XX. Tinha trinta anos à data da implantação da República; trinta e oito quando findou a Primeira Guerra Mundial. Foi só depois de tudo isso, tanto quanto sabemos, que começaram a surgir textos da sua autoria em jornais e revistas. O seu livro de poemas inaugural, Decadência, foi publicado em 1923 - e logo apreendido por ordem do Governo Civil de Lisboa. Continha versos que ofendiam a moral, segundo a acusação de um grupo de estudantes do ensino superior encabeçados por Pedro Teotónio Pereira, destacado reacionário que chegaria a ministro no Estado Novo. Até 1927, Judith Teixeira publicou dois outros livros de poemas, uma conferência, duas novelas; dirigiu durante alguns meses uma revista chamada Europa. Nada é conhecido sobre eventuais atividades literárias a que se tenha dedicado desde então até à sua morte em 1959.

Estamos perante um dos muitos apagamentos sob os quais se grava o ferro da ditadura. Foram múltiplas as vozes literárias do primeiro quartel do século XX português a inquietar os poderes contemporâneos e futuros - vozes que, felizmente, têm vindo a ser redescobertas e revalorizadas por um leque crescente de investigações. Pensando apenas em mulheres que se exprimiram através da palavra escrita, encontramos casos tão diversos como os de Alice Moderno, Ana de Castro Osório, Maria da Cunha, Olga de Morais Sarmento, Virgínia Quaresma, Irene Lisboa, Virgínia Victorino ou Fernanda de Castro. Como várias dessas autoras, Judith Teixeira suscitou nos últimos anos um novo impulso de curiosidade, traduzido no desenvolvimento de estudos sobre a sua obra e na realização de colóquios e tertúlias em sua homenagem.

Todos estes elementos justificam um olhar atento sobre o livro organizado por Cláudia Pazos Alonso eFabio Mario da Silva . Publicado em 2015, trata-se de um contributo importante para desocultar o trabalho artístico de mulheres durante a Primeira República e a experiência de quem ousou desafiar os códigos de género impostos à expressão da sua criatividade e da sua sexualidade. A relevância deste volume evidencia-se assim em duas frentes. Por um lado, disponibiliza todos os textos de Judith Teixeira que foi possível localizar até ao momento, reunindo textos já antes publicados e outros de acesso mais difícil. Permite-nos reler os poemas que Teixeira publicou em vida, incluindo aqueles censurados em 1923 por motivos que não podem ser qualificados senão de misóginos e homofóbicos: a sua abordagem lírica ao desejo, com referências a contactos sexuais protagonizados por mulheres e entre mulheres, era afinal demasiado livre para ser respeitada - e tampouco poderia ser ignorada, pois que perigosas mensagens se propagariam através da leitura? A punição foi efetivamente firme e exemplar. O presente volume permite-nos também ler, provavelmente pela primeira vez, vários poemas inéditos e uma conferência intitulada «Da Saudade», composta a partir de cópias dactilografadas de um texto que se crê redigido entre 1922 e 1925.

Por outro lado, o livro contém estudos breves e notas introdutórias que descrevem os critérios de organização dos textos e os enquadram historicamente e literariamente. Compreendemos assim que Judith Teixeira não constitui um caso tão isolado quanto à primeira vista seríamos tentados/as a julgar. Já atrás referimos escritoras que desenvolveram trabalho pioneiro no mesmo período. São também vários os paralelismos com António Botto, que viu o seu volume Canções retirado das livrarias na mesma vaga de apreensões do Governo Civil de Lisboa em 1923 (Klobucka 2018). Nem Teixeira nem Botto estavam sozinhos, ainda que possam por vezes ter chegado a senti-lo. Um dos mecanismos da exclusão social é precisamente isolar, tornar singular, exagerar as particularidades - daí também o imperativo histórico de cruzar fontes e, sem prejuízo da originalidade de cada voz autoral, reconstruir as pontes entre elas.

Ao organizar os textos por género - poesia, ensaio e novela - e por ordem cronológica, o presente volume oferece-nos uma oportunidade de explorar o percurso e a complexidade da expressão escrita de Judith Teixeira. Na sua poesia encontramos uma estrutura métrica variável, rica e imprevisível. Nela sobressaem os temas do desejo, da paixão, da solidão, da saudade. Já na conferência «Da Saudade», a escritora rejeita de forma contundente esse «mal, espásmico e doloroso, de que a nossa raça sentimental e sonhadora adoece tantas vezes» (p. 259), contrapondo-lhe um elogio da modernidade: «Penso e afirmo-lhes desassombradamente, minhas senhoras e senhores, que neste século em que a rádio telefonia nos pode trazer de países distantes a voz do amante ou do irmão, e os aviões nos levam a percorrer o mundo em poucas horas, a Saudade não deve existir na sua forma doentia e nostálgica. Ela deverá traduzir-se apenas no desejo forte de realizar novos momentos de prazer e alegria!» (p. 263). Na conferência «De Mim», defende a liberdade criativa como dever de sinceridade e esclarece que as medidas estreitas da vida convencional representam para ela uma opressão insuportável: «As minhas emoções não podem, portanto, obedecer a pautas nem a conceitos tradicionais. Nascem duma vibração misteriosa, e eu vivo-as e sinto-as e traduzo-as na maior porção de elegância que a minha arte lhes pode dar» (pp. 285-286).

A veia ensaística de Teixeira - não sabemos se as suas conferências terão sido alguma vez proferidas - funde o poético, o filosófico e o político. Com a mesma naturalidade, a escritora realça os legados inspiradores de Lenine, Isadora Duncan, Oscar Wilde ou Edgar Allan Poe, bem como a sua fé num Deus encorajador e misericordioso.

As duas novelas que encerram o volume, por sua vez, centram-se em tensas intersecções das dinâmicas de género e de classe. A protagonista da novela Satânia, Maria Margarida, confronta-se com o dilema de cumprir o dever familiar que sobre ela impende (casar com António, um homem correto e de origens sociais afluentes) ou seguir o seu desejo (consumar a atração que sente por Manuel, filho do caseiro, inegável desde a primeira ocasião em que se cruzam por casualidade no solar). A trama da novela Satânia, concluída em 1927, encontra ressonâncias iniludíveis em romances tão célebres como O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, ou Maurice, de E. M. Forster, sendo oportuno notar que, mesmo escritos por homens em Inglaterra, o primeiro viria a ser objeto de processos judiciais e o segundo publicado só após a morte do autor.

De caráter sucinto e fragmentado, os estudos de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva que acompanham os textos de Judith Teixeira não impõem significados à leitura, antes abrem portas. De facto, a escrita de Teixeira recorda-nos que podemos, na esteira do que propunha Sontag (2004), resistir à tentação da interpretação - isto é, da decifração do texto por vias intelectuais - e encarar a obra de arte não como uma caixa (uma determinada forma com o conteúdo no seu interior) mas como uma experiência na qual forma e conteúdo se entrelaçam a ponto de ser impossível autonomizá-los. Os significados exteriores à obra, sejam erigidos pela própria autora ou por quem a lê, serão então menos relevantes que o valor simples e poderoso da expressividade. Talvez estejamos com isto a reatar na literatura uma noção de «intérprete» mais próxima da que utilizamos tipicamente no âmbito da música ou da dança. O exercício de uma leitura mais sensorial que intelectual poderá até ajudar-nos a localizar com propriedade o entroncamento do modernismo e do feminismo em Judith Teixeira, o qual atinge o seu expoente numa feroz rejeição dos papéis de género e numa defesa incondicional do corpo e da liberdade.

Como lemos no estudo introdutório, «a história da literatura portuguesa continua a estar nas suas entrelinhas assombrada por escritoras rebeldes, que ainda carecem de reavaliação à luz de assimetrias de género generalizadas» (p. 33). Embora as primeiras décadas do século XX não esgotem decerto o arco temporal a estudar, contêm uma abundância de casos notáveis (Klobucka 2013). Não resta dúvida de que temos pela frente muito trabalho.

Referências

Klobucka, Anna M. 2018. O Mundo Gay de António Botto. Lisboa: Documenta. [ Links ]

Klobucka, Anna M. 2013. “Palmyra’s Secret Garden. Iberian (Dis)Connections, Portuguese Modernism, and the Lesbian Subject.” Luso-Brazilian Review 50(2): 31-52. [ Links ]

Sontag, Susan. 2004 [1966]. Contra a Interpretação e Outros Ensaios. Algés: Gótica. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons