SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número44Recensão: Poesia e prosaRecensão: Feminist Media Studies índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.44 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

 

Recensões

Recensão: Gênero, neoconservadorismo e democracia

1 Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), Coimbra, Portugal. martinezmonise@gmail.com

Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. , de, Biroli, Flávia; Machado, Maria das Dores Campos; Vaggione, Juan Marco. ., São Paulo: :, Boitempo Editorial, ,, 2020. ,, 224p. pp.


O livro Gênero, neoconservadorismo e democracia tem como uma de suas propostas fulcrais pensar o que se tem vindo a compreender como «movimentos anti-gênero» em parte da recente literatura produzida sobre movimentos sociais na América Latina e para além dela. Reflexo da convergência entre os perfis de investigação de quem o escreve, o livro oferece lentes multidisciplinares para lermos e entendermos o conservadorismo religioso na região, bem como a centralidade atribuída às agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual num cenário marcado pela politização e pelas disputas em torno do termo «gênero». Assim, fazendo convergir algumas das diferentes abordagens sobre essas temáticas nos campos da Ciência Política, da Sociologia e do Direito, a obra busca entender as relações entre os referidos fenômenos com os processos de desdemocratização, a qual, entre outras coisas, tem sido igualmente marcada por disputas em torno dos próprios sentidos de democracia.

Como referido pelas autoras e pelo autor na seção peritextual de apresentação do livro, um dos principais argumentos desenvolvidos ao longo das páginas que lhe dão corpo é o de que «a forma atual do conservadorismo latino-americano está relacionada a uma temporalidade marcada pelos avanços dos movimentos feministas e LGBTQIA+ e expressa coalizações políticas de grupos cristãos com setores não religiosos da direita» (p. 8). Fundamentado, em parte, em abordagens teóricas que respaldaram muitas das análises sobre o campo de oposição política inflamado por atores da direita religiosa no contexto estadunidense, o entendimento dos movimentos antigênero como «reações» especialmente emergidas na esteira de um ciclo de conferências sociais organizadas pela ONU na década de 1990 localiza e estende os debates sobre o fenômeno de forma atenta às especificidades da América Latina. Ao fazê-lo, as autoras e o autor não apenas situam a região no panorama transnacional dos movimentos antigênero, como delineiam perspectivas de análise para pensar as ditas «reações» a partir das conexões entre a dimensão econômica e moral, bem como de seus efeitos para a política da democracia.

Para esse efeito, na Introdução do livro a «moldura conceitual e teórica» que o embasa é apresentada a partir de dois eixos principais: o da temporalidade, lançando luz sobre o processo de determinação das bases epistemológicas das campanhas antigênero, incluindo a bem-conhecida retórica da «ideologia de gênero»1, na sua relação com atores conservadores e religiosos; e o do neoconservadorismo, conceito discutido e empregado no livro para referir «uma lógica normativa e disciplinadora interiorizada pelos sujeitos contemporâneos» e, portanto, «um modelo de governança e cidadania» (p. 26).

Norteado pelas linhas do referido enquadramento teórico, o primeiro capítulo do livro tem como foco abordar as relações entre gênero, neoconservadorismo e democracia, situando-as no campo do Direito - na perspectiva de Juan Marco Vaggione , que assina o capítulo -, uma arena e uma ferramenta estratégica crucial para compreender a materialidade democrática das tensões em torno das políticas sexuais e de gênero na América Latina. Entre as razões para isso, como elucida o capítulo, estão o fato de o neoconservadorismo operar como uma espécie de «maquinaria legal» que, regida por atores religiosos e conservadores de perfis diversos, disputa não só a própria função simbólica do direito, como também faz dele uma ferramenta para restauração da moral.

Dinamizando a construção do capítulo a partir desses dois eixos, Vaggione começa por discorrer sobre o «mito do direito secular», salientando as imbricações entre esse e a doutrina católica, o papel das políticas sexuais e de gênero na «descristianização da lei» e, enfim, a «juridificação reativa da moral» levada a cabo por uma constelação variada de atores conservadores e aliados no âmbito da sexualidade, da reprodução e do matrimônio. De seguida, as estratégias adotadas por esses diferentes perfis de atores são esmiuçadas pelo autor, lançando luz sobre as ações de políticos cristãos, fundamentais para a criação de alianças nacionais e transnacionais em defesa de valores como a vida, a família e a liberdade religiosa, bem como advogados e juristas confessionais, cruciais na prática do uso do «litígio estratégico» para defender interpretações legais alinhadas com a doutrina religiosa. Dentre essas, Vaggione destaca ações como a «cidadanização do feto», base do chamado movimento antiaborto dito «pró-vida»; a «renaturalização da família», a qual, em resposta às «ameaças» da «ideologia de gênero», mobiliza estratégias legais como a defesa da pátria potestade; e, enfim, a «ampliação da proteção às crenças religiosas», por meio da redefinição da ideia de liberdade religiosa com vistas a reduzir a legitimidade e a legalidade dos direitos reprodutivos e sexuais.

Na esteira das discussões pleiteadas por Vaggione, Maria das Dores Campos Machado assina o segundo capítulo do livro focando-se em identificar os pontos de convergência entre o ativismo neoconservador protagonizado por mulheres no Brasil e na Colômbia. Atenta ao fato de que a maioria e fiéis que integram igrejas pentecostais na América Latina são do sexo feminino, e de que as inseguranças propiciadas pelos contextos de violência e desigualdade relacionados aos avanços substanciais das políticas de austeridade e neoliberais na região são úteis à compreensão do ativismo conservador acionado por mulheres pertencentes a grupos cristãos como os (neo)pentecostais e católicos carismáticos, Machado busca identificar quais são os elementos das campanhas anti-gênero que mobilizam as mulheres; o que faz com que essas mulheres reproduzam a ordem social patriarcal; e, ainda, como elas têm assumido o ativismo neoconservador nos últimos anos.

Tendo-se em conta o protagonismo que os grupos evangélicos têm tido nas ações neoconservadoras na América Latina, e a expansão desses frente à maioria católica que imperou por muitos anos na região, a primeira parte do capítulo é dedicada a apontar as principais mudanças na agenda política desses grupos evangélicos. Na esteira desse panorama, no qual o campo moral e as contraposições às agendas feministas e LGBTQIA+ ganharam protagonismo nas últimas décadas, a autora evidencia não só como a retórica da «ideologia de gênero» tornou-se uma ferramenta fundamental nas disputas no Legislativo, no Judiciário e na sociedade civil brasileira, como também como cantoras gospel, pastoras, empresárias, políticas e assessoras parlamentares têm cumprido um papel crucial na construção de alianças entre evangélicos e grupos neoconservadores e, mais recentemente, na máquina estatal brasileira gerida por Bolsonaro. De seguida, foca-se no caso colombiano e passa a delinear os pontos de convergência entre os referidos contextos. Como ressalta, em ambos os países mulheres (neo)pentecostais e ativistas dos movimentos neoconservadores têm se dedicado a confrontar agendas feministas e LGBTQIA+, engajado-se nas lutas contra a «ideologia de gênero» e reiterado os valores cristãos propagados em suas comunidades. Apresentadas por Machado como um conjunto de reações às mudanças protagonizadas pelos movimentos feministas e LGBTQIA+ nas últimas duas décadas, tais ações encontram apoio nas camadas populares por meio da mobilização do medo, como o discurso de ameaça à família tradicional e às crianças, bem como pelo discurso da «maioria moral» - a ideia de que existe uma suposta «maioria» ameaçada por uma minoria progressista.

O terceiro capítulo do livro, de autoria de Flávia Biroli , situa os processos analisados por Vaggione e Machado no cenário de «erosão da democracia» marcado, entre outras coisas, pela «erosão do ‘público’ na forma da privatização e da redefinição do próprio sentido de coletivo» (p. 142) associada aos avanços do neoliberalismo na região latino-americana a partir dos anos de 1990. Compreendendo os movimentos feministas e LGBTQIA+ como partes da constelação de atores que têm produzido mudanças nas agendas dos Direitos Humanos e nos sentidos de democracia, a autora foca-se em entender como os atores neoconservadores têm produzido e promovido ideias e valores «alternativos» aos que têm sido levados a cabo por esses movimentos progressistas. Analisando protestos anti-gênero que ganharam as ruas especialmente entre 2016 e 2017, Biroli constata que a «proteção» da família que os permeiam está atrelada, por um lado, à recusa da dimensão coletiva que embasa as políticas de igualdade em seus variados níveis e, por outro, à legitimação da organização familiar heteronormativa - ambas sustentadas por uma dinâmica de autoridade restritiva, reivindicada em nome das já referidas «maiorias morais». Sem discursar contra a democracia, esses atores neoconservadores não só disputam discursivamente pelo sentido de democracia na arena pública como, nesse fazer, apresentam a produção teórica e empírica dos feminismos como «ideologia», bem como os movimentos feministas e LGBTQIA+ como inimigos.

No capítulo de conclusão, as principais ideias desenvolvidas pelas autoras e pelo autor logram sistematizar, a partir das perspectivas adotada ao longo do livro, o que há de novo e específico no campo de ações dos agentes neoconservadores na América Latina. Com badanas e quarta-capa assinadas, respectivamente, pelas investigadoras Sonia Corrêa e Maria José Rosado Nunes, o livro logra deslocar o eixo de análise sobre o tema para esse contexto do Sul global, enfatizando a produção discursiva e as relações entre religião, gênero e políticas que urgem no agora que nos cerca nas mais diversas geografias.

Referências

Biroli, Flávia, Maria das Dores Campos Machado , eJuan Marco Vaggione . 2020. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina, São Paulo: Boitempo Editorial. [ Links ]

1Aqui, refiro o sintagma «ideologia de gênero» entre aspas para enfatizar o seu entendimento como parte estratégica de um projeto político concebido pela Santa Sé com vistas a deslegitimar os Estudos Feministas e de Gênero, bem como as agendas dos movimentos feministas e LGBTQIA+.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons