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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.45 Lisboa jun. 2022  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.45.02 

Dossier

Desafios feministas ao Direito: resistências e possibilidades

*Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Endereço postal: Colégio de S. Jerónimo, 3000-995 Coimbra, Portugal. Endereço eletrónico:

**NOVA School of Law, Lisboa, Portugal. Endereço postal: Campus de Campolide, 1099-032 Lisboa, Portugal. Endereço eletrónico:


O Direito foi longamente, ao lado das religiões, tradições, ciências e outras práticas de diversa natureza, um campo de desvalorização do feminino e das mulheres em geral, como o foi de povos submetidos ao jugo colonial ou semelhante, criando sujeitos de primeira e de segunda, quando não de terceira ou não-sujeitos. Em algumas zonas do mundo, ainda é. É difícil generalizar e seguir uma linha direita, porque nada aqui foi ou é simples e universal. Mas, de várias maneiras e em várias frentes, o Direito foi passando, paulatinamente, a assumir um papel inverso, mostrando e contrariando o que em muitos contextos era tido como natural e inevitável, quando não oculto: a diferenciação hierárquica de direitos, estatutos e valor entre homens e mulheres, primeiro, e depois entre seres de vivências e preferências diversas, condicionando a sua identidade ou pelo menos a sua autoidentificação. As lutas pelo direito ao voto e por outras conquistas da cidadania foram determinantes nesta inversão de paradigma do Direito enquanto discurso, regras e práticas. E são-no, ainda, em tantos lugares e de tantas maneiras.

Nesse processo de mudança profunda, a arena jurídica foi, pelo menos desde as lutas sufragistas, um campo privilegiado de atuação dos movimentos feministas, quer para a consagração de direitos, quer para a sua efetivação. As reivindicações pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, pela presença e visibilidade no espaço político, por direitos sexuais e reprodutivos, pelo fim da violência de género, entre muitas outras, são claros exemplos dessa atuação (Rhode 1989). Estas tornaram-se conquistas jurídicas inegáveis, infelizmente ainda longe de universais. Nas últimas décadas, e após a conquista de inúmeros direitos, as lutas foram dirigidas sobretudo ao nível da sua aplicação na prática, ainda refém de contextos políticos e práticas judiciais mais conservadoras. Os tribunais passaram a ser um frequente campo de batalha pela concretização da dignidade de género que o Direito estatal já havia prometido.

Paralelamente, o Direito tornou-se crescentemente um campo de análise por parte de várias académicas (e ativistas) feministas, que o procuraram denunciar, e desafiar, sempre que se assumia, na continuação do «antigamente», como um regime de verdades normalizadoras e (re)produtor de modelos de relações heteropatriarcais constitutivas dos sujeitos (Smart 1989). Este olhar feminista sobre o Direito tornou-se mais consistente a partir do início da década de 1970, nos EUA, com os contributos de um conjunto de autoras em revistas científicas e jurídicas, colóquios, etc., que evidenciaram a necessidade de uma análise crítica do Direito e ajudaram ao desenvolvimento de uma corrente de pensamento sobre o direito estatal que veio a ser conhecida como Feminist Jurisprudence (em português, Teoria Feminista do Direito) (e.g., Olsen 1995). Na Europa surgiram alguns focos de elaboração teórica em linhas semelhantes, como na Universidade de Oslo, onde Tove Stang Dahl criou um dos primeiros institutos universitários dedicados ao estudo, investigação e promoção dos direitos das mulheres: o Department of Women's Law, em 1978 (Dahl 1987). O questionamento de supostas verdades ancestrais foi sendo feito em muitos contextos, aliando por vezes a luta política e social à reflexão académica e à abertura dos estudos jurídicos a perspectivas críticas e desconstrutoras, tradicionalmente execradas pelas Faculdades de Direito.

A Feminist Jurisprudence trouxe importantes contributos para se pensar o género e o sexo no sistema legal, nas profissões jurídicas, no ensino do Direito; nos diferentes campos, em particular no Direito penal, no Direito da família e no Direito do trabalho, mas também no que diz respeito a regras de nacionalidade, de participação política ou de organização militar; na definição de vítima e de criminoso; no Direito infra e supra-estatal e nas suas zonas de contacto; etc. E contribuiu, ainda, de formas por vezes surpreendentes, para desafiar a produção de conhecimento sociojurídico e a sua abordagem epistemológica (e.g., Weisberg 1993; Barnett 1997). Esta perspetiva tornou-se, crescentemente e de forma indispensável, cada vez mais interseccional, muito graças aos feminismos negros, aos feminismos pós e decoloniais, aos feminismos pós-estruturalistas e à teoria queer.

O presente número temático pretende seguir nesta esteira e ser mais um contributo para uma reflexão crítica, multidisciplinar e interseccional sobre o Direito, que continua imprescindível. Nos últimos anos, o Direito, e em particular os tribunais, têm sido submetidos a um maior escrutínio por parte da opinião pública no que se refere ao tratamento jurídico e judicial das questões de género. Por um lado, é notória (e preocupante) a expressão e força que está a ganhar, em vários países, uma reação conservadora que tem como objetivo o retrocesso nos direitos das mulheres em várias áreas. Por outro, mesmo nos países com quadros jurídicos normativos nacionais promotores da igualdade de género, assistimos a práticas judiciais que corrompem ou anulam os direitos existentes. Importa, assim, compreender em que medida o Direito, quer como instrumento, quer como campo de disputas, comporta possibilidades de combate à desigualdade de género, de proteção das mulheres, e de efetiva justiça social.

Este dossiê temático é composto por oito artigos, que adotam uma abordagem ao(s) direito(s) a partir de lentes de género e/ou leituras feministas do Direito.

O primeiro artigo, escrito por Susana Santos, convida-nos a olhar para as questões de género nas profissões jurídicas. Partindo da análise de dois estudos de caso - o alemão e o inglês -, a autora discute o acesso das mulheres ao ensino do Direito, as condições e os impactos da docência no feminino. Olha ainda para as interligações com os movimentos feministas, sublinhando as práticas de cooperação, as escolhas nas áreas de intervenção do Direito e os impactos nos modos de produção e acesso ao mesmo.

Os três artigos que se seguem olham mais atentamente para a relevância das questões de género no Direito penal. O artigo de Madalena Duarte reflete sobre a persistência de determinados estereótipos de género na cultura legal das magistraturas. Para tal, analisa decisões mediáticas sobre violência nas relações de intimidade e femicídio e conclui que ainda encontramos, de modo mais ou menos subtil, nas narrativas judiciais, ideias estereotipadas de feminilidade (e masculinidade) que influenciam o modo como se vê (e pensa) uma vítima e que acabam por ter impacto na obtenção ou não de justiça nestes casos.

Os dois artigos seguintes procuram, ainda que de modo distinto, desafiar uma abordagem tradicional androcêntrica sobre o estudo do crime, enriquecendo o conhecimento das mulheres enquanto autoras e não já apenas vítimas, como tem sido mais comum. O texto de Ana Guerreiro, Sílvia Gomes e Pedro Sousa centra-se numa área do crime parcamente estudada sob uma perspetiva feminista: o crime organizado. Partindo da criminologia feminista, as autoras e o autor analisam as mulheres ofensoras no crime organizado, em particular na sua participação e nos papéis assumidos.

O artigo “Mulheres e desvio”, de Mariana Grilo e Nuno Poiares, debruça-se sobre os crimes sexuais e, através da análise de acórdãos nesta matéria e dos resultados de um inquérito, concluem que o sexo da pessoa agressora influencia o modo como as magistraturas abordam e lidam com os casos de crime sexual.

Mostrando a riqueza potencial do desenvolvimento dos estudos de género e das práticas reclamadoras de cidadania e inclusão alargadas, nas últimas décadas o recurso ao argumentário dos direitos e à arena jurídica e judicial tem sido muito visível igualmente no movimento LGBTQIA+. A reivindicação e aquisição de direitos por parte da comunidade LGBTIA+ implicou (e continua a implicar) necessariamente a alteração de várias instituições no âmbito do Direito. Mariana de Oliveira Rodrigues fala-nos dessas transformações no que se refere ao Direito da família. No seu artigo, a autora propõe-se analisar o tema do reconhecimento da parentalidade trans em Portugal, tentando perceber, em particular, de que forma a aprovação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, implicaria alterações ao regime da parentalidade e como se conjugam (ou não) atualmente estes dois regimes jurídicos.

Analisando igualmente as reivindicações por direitos e a sua efetivação por parte do movimento LGBTQIA+, Libni Milhomem Sousa e Olívia Cristina Perez observam as vantagens e perigos da mobilização do Direito por parte dos movimentos sociais. No seu artigo, abordam mais especificamente o recurso à judicialização pelo Grupo Matizes, um dos principais movimentos sociais brasileiros LGBTQIA+, fundado em 18 de maio de 2002, com o propósito de construir uma cultura pautada pelo respeito pelos direitos humanos e pela diversidade. Através da análise de propostas apresentadas ao Poder Legislativo pelos movimentos sociais LGBTQIA+ e de entrevistas com militantes, conclui-se que a mobilização do Direito por este movimento permitiu não só assegurar direitos, como também trouxe desejável visibilidade social aos direitos LGBTQIA+.

No artigo “La dimensión punitiva en el campo de oposición a la Interrupción voluntaria del embarazo”, discute-se um dos direitos das mulheres mais tardio em muitos quadros jurídico-normativos: o da interrupção voluntária da gravidez. O texto debruça-se sobre a atuação e argumentos da oposição à interrupção voluntária da gravidez nas reuniões realizadas nas comissões das Câmaras de Deputados e Senadores da Argentina (2018). A partir de uma abordagem qualitativa, a autora analisa um corpus de 410 exposições de diferentes atores da sociedade civil que foram convocados para manifestar a sua posição sobre a reforma legal nesta matéria. Este estudo reflete sobre um tema caro para a atuação feminista no Direito: a luta por direitos sexuais e reprodutivos, efetivos e dignos. A análise mostra que subsiste uma tentativa de enquadramento do aborto no paradigma punitivo.

O dossier encerra com um texto de Carina Jordão, Teresa Carvalho, Sara Diogo e Zélia Breda, no qual se apresenta e reflete sobre a estratégia adotada numa universidade portuguesa para aumentar a presença de mulheres em órgãos de tomada de decisão. As autoras concluem que a combinação de mecanismos formais e informais permite estimular práticas quotidianas transformadoras que contribuem para o aumento da representatividade feminina nesses cargos, levando a que os esforços legislativos e políticos, nacionais e europeus, se tornem mais eficazes.

Longe de esgotarem todos os campos de análise feminista do Direito, os textos reunidos contribuem para a consolidação de um espaço que se quer interdisciplinar de reflexão teórica, epistemológica e crítica, de mapeamento de desafios conceptuais e metodológicos e de aprofundamento de um conjunto de discussões fundamentais relacionando diferentes áreas do Direito com o género, a sexualidade e os feminismos.

Referências bibliográficas

Barnett, Hilaire. 1997. Sourcebook on Feminist Jurisprudence. London: Cavendish Publishing Limited. [ Links ]

Dahl, Tove S. 1987. Women's Law: An Introduction to Feminist Jurisprudence. Tradução de Ronald L. Craig Oslo: Norwegian University Press. Tradução portuguesa publicada em 1993 com o título O direito das mulheres: Uma introdução à teoria do direito feminista (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian). [ Links ]

Olsen, Frances E. (ed.). 1995. Feminist Legal Theory II: Positioning Feminist Theory Within the Law. New York: New York University Press. [ Links ]

Rhode, Deborah. 1989. Justice and Gender: Sex Discrimination and the Law. Cambridge, MA: Harvard University Press. [ Links ]

Smart, Carol. 1989. Feminism and the Power of Law. London: Routledge. [ Links ]

Weisberg, D. Kelly (ed.). 1993. Feminist Legal Theory. Foundations. Philadelphia: Temple University Press. [ Links ]

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