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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.45 Lisboa June 2022  Epub July 18, 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.45.04 

Dossier

Uma boa mulher é difícil de encontrar? Reflexões sobre a “vítima ideal” no direito penal

Is a Good Woman Hard to Find? Reflections on the “ideal victim” in criminal law

¿Es difícil encontrar una buena mujer? Reflexiones sobre la “víctima ideal” en el derecho penal

*Centro de Estudos Sociais (CES) e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Endereço postal: CES - Colégio de S. Jerónimo, 3000-995 Coimbra, Portugal. Endereço eletrónico:


Resumo

As teorias feministas têm colocado vários desafios ao direito, assinalando-o como uma forma de reprodução de desigualdades sexuais e de género. Neste artigo, através da análise de sentenças sobre violência nas relações de intimidade e femicídio, procuro identificar alguns estereótipos de género mais comuns nas narrativas judiciais, em particular em relação à vítima. Os resultados demonstram que persiste na cultura legal, de modo mais ou menos subtil, um imaginário legal sobre vitimação influenciado por ideias estereotipadas de feminilidade (e masculinidade) que importa desconstruir.

Palavras-chave Teorias feministas do direito; vítima; violência; cultura legal; estereótipos.

Abstract

Feminist jurisprudence has posed several challenges to Law, pointing it out as a way of reproducing sexual and gender inequalities. In this paper, through the analysis of case law about violence in intimate relationships and femicide, I will seek to identify some of the most common gender stereotypes in judicial narratives, particularly in relation to the victim. The results demonstrate that, in a more or less subtle way, a legal imaginary about victimization persists in legal culture. This imaginary is influenced by stereotyped ideas of femininity (and masculinity) that it is important to deconstruct.

Keywords Feminist jurisprudence; victim; violence; legal culture; stereotypes.

Resumen

Las teorías feministas ponen varios desafíos al Derecho, señalándolo como una forma de reproducción de las desigualdades sexuales y de género. En este artículo trato de identificar algunos de los estereotipos de género más comunes en relación con la víctima en las narrativas judiciales a través del análisis de sentencias sobre violencia en las relaciones íntimas y feminicidio. Los resultados demuestran que, de manera más o menos sutil, persiste en la cultura jurídica un imaginario jurídico sobre la victimización, influido por ideas estereotipadas de feminidad (y masculinidad) que es importante deconstruir.

Palabras clave Teorías feministas del derecho; víctima; violencia; cultura jurídica; estereotipos.

Introdução

Flannery O'Connor, escritora norte-americana, tem um conto intitulado “A Good Man is Hard to Find” (“Um bom homem é difícil de encontrar”), título que aqui aproprio para questionar se, no direito, uma boa mulher é difícil de encontrar. O direito estatal assenta no pressuposto da neutralidade, consagrando a figura de uma pessoa jurídica (ou sujeito legal), titular de direitos e deveres, independentemente do seu sexo biológico e/ou género (entre outras variáveis identitárias). No entanto, as teorias feministas do direito desde cedo denunciaram que este sujeito, embora se assuma neutro, é formado no reflexo dos dispositivos sociais e produz normatividades sociojurídicas de género ou, se quisermos, do “sujeito homem” e do “sujeito mulher”. Um claro exemplo de que esta neutralidade é uma ficção é a crítica feminista do “homem médio” enquanto referência jurídica sobre o comportamento comum numa dada situação.

Como refere Teresa Beleza (2001, 64), apesar de a lei não definir exatamente o que é um homem ou uma mulher, “[p]ressupõe a existência de homens e de mulheres, [e] pressupõe um certo tipo de relacionamento dito normal ou natural, normativamente ‘desejável’ entre estas entidades”1. É assim que alguns estudos têm vindo a demonstrar que, apesar da consagração legal do princípio da igualdade perante a lei, as mulheres são, enquanto grupo social, mais severamente afetadas por mitos, preconceitos e estereótipos sexistas, contidos quer nas leis, quer nas mentes dos/as magistrados/as (Machado 1999; Cook e Cusack 2010; Duarte 2013, 2021; Ventura 2018).

Importa, pois, analisar em que medida o direito, enquanto regime de verdades discursivas e normalizadoras, emerge como (re)produtor de modelos de relações heteropatriarcais constitutivas dos sujeitos e difusor profícuo de modelos de feminilidade e de masculinidade.

Esta análise é particularmente relevante no âmbito do direito penal, que está repleto de categorias jurídicas alimentadas por imaginários sociais que constroem uma ideia sobre quem são as pessoas e como devem agir. Um desses conceitos é o de vítima, o qual, embora tenha um estatuto balizado por critérios jurídicos, é sobretudo construído socialmente e informado, entre outros sistemas de dominação, pelo heteropatriarcado. Na reflexão desenvolvida no âmbito da minha tese de doutoramento - “Para um Direito sem margens: representações sobre o direito e a violência contra as mulheres” (2013) - concluí, mediante a realização de entrevistas com magistrados/as judiciais e do Ministério Público e a partir da análise sistematizada de decisões judiciais, que é possível encontrar vários tipos de vítimas nas narrativas judiciais que têm por base as caraterísticas que possuem e/ou deveriam possuir as mulheres vítimas de violência doméstica2. Neste artigo, e a partir da discussão teórica de “mulher razoável”, procuro analisar que entendimentos persistem atualmente na cultura legal dos/as magistrados/as influenciando, consciente ou inconscientemente, a prática judicial. Por cultura legal entendo não apenas os comportamentos e ideias legalmente orientadas e que os/as profissionais do direito controlam, porque são formados/as para tal, mas também aqueles aspetos que alimentam o imaginário social e, por isso, mais inconscientes, como crenças, valores, tradições e ideologias (Nelken 2004).

Com este objetivo, procedi a um observatório de imprensa, entre 2004 e 20173, que me permitiu identificar decisões mediáticas relativas a casos de violência doméstica e homicídio em relações de intimidade, e procedi à análise do seu conteúdo, recorrendo às bases jurídico-documentais do Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça. As sentenças foram analisadas de acordo com uma grelha categorial pré-definida - já usada no âmbito da minha tese de doutoramento - para avaliar se, e quais, os tipos de vítima que persistem ao longo do tempo na prática judicial. Em particular, foram analisadas as fundamentações relativamente à diminuição/atenuação de culpa e à qualificação/desqualificação do crime. As sentenças que aqui se apresentam surgem, assim, como indicativas de uma cultura legal ainda marcada, mesmo que não maioritariamente, por estereótipos de género que urge combater.

Nada de mau acontece às boas mulheres: a construção da mulher razoável

A doutrina jurídica apoia-se na figura do “homem médio”, categoria sociojurídica que alude ao comportamento normal expectável por parte de qualquer homem “comum” numa dada circunstância. Esta categoria é simultaneamente falaciosa e complementar. Falaciosa porque se apresenta como neutra em termos de género quando, na realidade, é construída numa matriz heteropatriarcal, por referência ao homem branco e de classe média. Implica, portanto, um ideal de masculinidade e uma determinada performance masculina - “o género masculino é tido como ‘naturalmente’ agressivo, predador, as mulheres como vitimáveis, vulneráveis, violáveis” (Beleza 1991, 147). Neste sentido comporta um risco: que esta abstração deixe de se inspirar no que as pessoas são - “homem médio” - para impor o que devem ser - “homem razoável” (Almeida 2010) -, de forma a ir ao encontro das tais expectativas sociais (que assim se tornam também legais). Este risco concretiza-se particularmente para as mulheres e, neste sentido, o “homem médio” é complementar porque se (re)produz como reflexo da ideia de “mulher razoável”4. O conceito é construído com base não só em noções estereotipadas de masculinidade, mas também por referência à ideia daquilo que, segundo códigos sociais e morais, é avaliado como sendo o comportamento socialmente desejável de uma mulher. Contrariamente ao “homem médio”, a “mulher razoável” não surge como referência jurídica, mas encontra-se na prática judicial, evidenciando “que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente” (Santos 2003, 743). Os estudos feministas sobre vitimação têm sido particularmente importantes para percebermos a presença e a complexidade da “mulher razoável” no direito penal.

No seu estudo Nothing Bad Happens to Good Girls. Fear of Crime in Women’s Lives (1997), Esther Madriz afirma que as perceções e ideologias dominantes sobre vítimas5 levam-nos a crer não só que algumas mulheres têm uma maior propensão a ser vítimas de crimes, sobretudo sexuais, como também estabelece uma distinção entre boas e más vítimas. As vítimas inocentes são mulheres respeitáveis (“as boas meninas”, para usar a terminologia da autora); foram atacadas enquanto exerciam alguma atividade coadunável com as expectativas sociais relativamente ao papel da mulher na sociedade; o local e a hora a que foram atacadas são considerados apropriados para uma mulher; vestem roupas discretas; o seu círculo de relacionamentos é constituído por pessoas igualmente idóneas; foram atacadas por um estranho, mais forte que elas e de reputação duvidosa (um criminoso ideal, portanto). Esta ideologia perpetua fortes relações de dominação e tem consequências no medo do crime e na reparação do crime sofrido. Quando recorre a tribunal, a inocência e a pureza moral da vítima, e não do agressor, assumem uma centralidade que deveria ser dada ao crime em si (Bumiller 1990, 97).

Daqui decorre um aspeto relevante e que tem que ver com o facto de à vitimação corresponder uma certa essência da feminilidade (Chesney-Lind 2006, 11-12). Uma boa vítima e uma boa mulher podem nem sempre coincidir, mas uma má mulher nunca poderá ser uma boa vítima. Segundo Landau (1989), a cultura legal relativa ao crime está simultaneamente imbuída de paternalismo e intolerância para com as vítimas. Kristin Bumiller (1990) usa o conceito popular de Fallen Angels (“anjos caídos”) para dar conta de que está disseminada na sociedade uma ideia da vítima mulher coincidente com aquelas que são as expectativas sociais relativamente ao desempenho da mulher na sociedade, no trabalho e na família, e que, quando há um desvio no desempenho deste papel, há uma certa condenação moral e social que tem tradução na prática judicial. Em suma, as vítimas mulheres devem ser boas mulheres, “porque nada de mau acontece às boas mulheres” (recuperando o título já referido de Madriz). A vítima “razoável” vai, assim, ao encontro não de uma suposta mulher média, mas do estereótipo de feminilidade presente no imaginário legal. Não se trata do “ser”, mas de um “dever ser” que se coaduna com os parâmetros de quem julga.

Daqui resulta a criação de uma tipologia aplicada às mulheres vítimas de violência. Estas tipologias emergiram nos estudos feministas criminológicos tendo como foco inicial a vítima de violação sexual. Através da análise de decisões judiciais sobre violência doméstica e homicídio, identifico, de seguida, alguns estereótipos de género e ideias preconcebidas sobre as mulheres vítimas de violência que alimentam esta tipologia6. São considerações que não se prendem com qualquer exigência substantiva ou processual do direito, tampouco assentam em conhecimento científico, mas fazem parte da cultura legal dos/as magistrados/as, informada pelo senso comum e/ou pelas suas experiências pessoais.

A vítima provocadora: a ideia de culpa partilhada

Uma evidência da complementaridade do “homem médio” e da “mulher razoável” é a partilha de culpa: algo no comportamento da vítima contribuiu para a ocorrência do crime e, portanto, conduziu à sua vitimação (Karmen 2000). Este é um entendimento comum nas sentenças de casos de violação (Ventura 2018), mas também na violência nas relações de intimidade e nos femicídios.

Um dos pressupostos recorrentes da partilha de culpa nestes processos é a questão “por que é que ela não abandonou a relação?” (Duarte 2013, 362-363), como é possível verificar no acórdão que se segue:

Mal se compreende este silêncio face à extensa e pormenorizada narrativa, abarcando vivência conjugal e familiar ao longo de vários anos (!), fazendo-se uma retrospectiva desde os primórdios do matrimónio (concretização temporal registada por duas vezes no texto) e assinalando-se o agravamento da situação a partir de 1989, altura em que a arguida se incompatibilizou com a vítima. (Acórdão do STJ, de 7 de maio de 2009)

Esta questão vai ao encontro da proposição, sugerida pela teoria liberal, de que a conceção de cidadania não pode acomodar situações de violência nos relacionamentos íntimos, uma vez que o autodomínio decreta que a pessoa se vá simplesmente embora ou que lide com a situação sem a intervenção do Estado - o que não é viável para a maioria de mulheres que sofrem abusos (Pateman 1988).

A partilha da culpa está relacionada frequentemente com a violação dos “deveres conjugais”. Veja-se, como exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de maio de 2004. O arguido e recorrente foi condenado em Primeira Instância, decisão que a Relação confirmou, pela prática em autoria material de um crime (entre outros) na pena única de 20 anos de prisão. Pretendendo que o homicídio fosse considerado privilegiado e não qualificado, a defesa argumentou que “praticou o crime de forma repentina, abrupta, sob forte e compreensível emoção, torturado, desorientado e traumatizado pela ideia de infidelidade da sua esposa que o desprezou e o humilhou”. O arguido, em maio de 2002, no decurso de uma discussão com a vítima, com quem estava casado desde 1991, pegou na sua arma de caça e efetuou dois disparos, atingindo-a nos pulmões, coração, região hepática e na perna esquerda. Nesse momento, que ocorreu no quarto onde ambos viviam, os filhos do arguido e da vítima encontravam-se em casa. Deu-se como provado, não só que o arguido agiu por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da sua mulher, como que no último ano de vida conjugal este lhe bateu por diversas vezes e a insultou em frente aos filhos.

Em maio de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre esta decisão. Por um lado, entendeu que o homicídio não podia ser integrado na previsão normativa do homicídio privilegiado porque, “no momento em que efectuou os dois disparos que atingiram a infeliz RMMT, não estava dominado por um forte estado de afecto emocional provocado por essa desconfiança, de tal forma que estivesse afectado nas suas capacidades de determinação ou que a sua capacidade de controle em relação aos seus actos estivesse reduzida ou afectada”. Não obstante, logo de seguida, aceitou o incumprimento do dever de sujeição sexual da mulher ao marido como circunstância atenuante da pena:

No doseamento concreto, haverá de ter em conta nomeadamente as circunstâncias de cariz agravante que se enunciaram, não esquecendo ainda assim as [poucas] atenuantes de que o arguido deve beneficiar, e assim, por um lado, que é analfabeto, e, também, que a vítima, sem que se saiba porquê - ignorância mais uma vez favorável ao arguido em sede de valoração da prova - “após finais de março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um contrato de trabalho, [...] passou a não querer manter relações sexuais com ele”, circunstância, que, pelo menos, permitirá a afirmação de que nem só do lado do arguido terá havido violação dos deveres conjugais, e pode até ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a (in)fidelidade dela. [destaque meu]

A decisão refere ainda que, “até ao dia da consumação do crime, pode afirmar-se que o arguido não passava de um homem normal”, ou seja, a culpa partilhada assenta na presunção de que a conduta da vítima contribuiu para desviar o arguido da conduta que seria esperada e ter uma atitude criminosa. Em vários casos de femicídio, esta violação dos deveres conjugais é considerada, ainda, como justificando uma compreensível emoção violenta que corresponde a “um estado emocional não censurável ao agente e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica" (Gonçalves 2001, 459-460).

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06 de dezembro de 2016, é ilustrativo nesta matéria. O tribunal absolveu o arguido do crime de violência doméstica, argumentando que

[n]uma relação pontuada por frequentes discussões, ao longo de vários anos (cerca de nove anos), na qual a ofendida tinha assumidas (e declaradas na audiência de discussão e julgamento) dificuldades na intimidade sexual com o arguido (recusando-se, inúmeras vezes, a manter com o mesmo relacionamento sexual), dizer o arguido, à ofendida, que ela tinha amantes (ou fazer imputações desta mesma natureza sempre desta natureza e não de outro qualquer jaez), e sem mais de efetivamente maltratante, confere todo um outro significado à atuação do arguido.

No acórdão pode ainda ler-se que, no contexto referido de discussão e recusa em ter relações sexuais com o arguido, a acusação deste sobre a suposta infidelidade da ofendida “é, à luz da natureza humana e dos ‘normais’ comportamentos humanos, entendível”; ou seja, uma clara alusão ao comportamento expectável do “homem médio”.

O pressuposto dos “deveres conjugais” assenta em ideias estereotipadas sobre feminilidade e masculinidade, mas também sobre as relações de intimidade e, em particular, o casamento. No caso decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 3 de julho, analisado por Inês Ferreira Leite (2019), no âmbito do qual se condenou o arguido pelo crime de violência doméstica, a condenação assentou, entre outros, no facto de o arguido sempre se ter recusado a casar com a ofendida e a manter com ela relações sexuais de cópula completa, apesar de ter vivido com a vítima durante 11 anos em união de facto:

Salvo melhor opinião, o facto de ao longo de 11 anos, o recorrido não ter mantido com a ofendida relações sexuais de cópula completa, apesar de ter desejo e actividade sexuais, integra um grave e muito intenso mau trato psíquico, por tal omissão ter ocorrido por sua vontade, não obstante saber, como ele próprio admite, que a companheira/ofendida sempre quis casar e ter filhos da relação que os unia. […]

Tal conduta do recorrido é atentatória da dignidade e saúde da recorrente, senso claramente exemplificativo de que tal ausência de relações sexuais é uma verdadeira ofensa e dor para a ofendida […] num País que constitucionalmente garante a igualdade de género, […] não se pode deixar de considerar que a ausência de relações sexuais de cópula completa com uma mulher com quem o recorrido vive em condições análogas às dos cônjuges, por vontade deste, são um factor atentatório da saúde mental e social da mulher, que, pelo menos tem um desejo sempre manifestado de procriar.

Embora o Tribunal procure demonstrar que a atividade e satisfação sexuais não são exclusivas do homem, permanece uma visão estereotipada quer da mulher, cuja sexualidade permanece associada à procriação e maternidade, quer do casamento, que “continua a ser visto primordialmente, ainda que sob a capa de um discurso romantizado, como espaço central de restrição de direitos fundamentais, de imposição de deveres e obrigações, no fundo, de condicionamento e opressão” (Leite 2019, 38).

Eva: a sexualidade feminina no direito

No imaginário da “mulher razoável” é central a questão da sexualidade feminina. Ao penalizar, direta ou indiretamente, condutas que não se conformam com um conjunto de comportamentos sexuais socialmente expectáveis, o direito promove um certo modelo da sexualidade feminina que é caracterizado pela monogamia, heterossexualidade e passividade (Frug 1992). Os estudos sobre a sexualidade da mulher no direito têm incidido sobretudo nos casos de violação e no modo como é entendido o consentimento. De acordo com alguns desses estudos, o direito quase que trivializa e erotiza a violação (du Toit 2007, 59). A distinção entre o que a mulher pensa e o que o homem crê que a mulher está a pensar (“ela diz não, mas quer dizer sim”) está enraizada no direito penal através dos termos actus reos e mens rea (Cowan 2007, 95). O não consentimento é avaliado sobretudo pelo modo como foi expresso e não pensado pela vítima. Catherine MacKinnon (1987, 86-87) argumenta mesmo que o sexo forçado tem sido tolerado, porque as mulheres são social e legalmente construídas como seres sexuais que desejam ser forçadas. Estrich (1995, 1127) alerta que não foi o direito que inventou “o não dignifica o sim”, mas que socialmente foi disseminada a ideia de que a agressividade dos homens pode ser desejável em várias circunstâncias e que o sexo forçado é visto como uma expressão de desejo e até de amor.

O escrutínio da conduta sexual da mulher no direito deu origem a dois tipos ideais de vítima, amplamente estudados: Eva e Maria. “Eva”, nos estudos sobre vitimologia, é aquele que comporta estereótipos mais vincados sobre a sexualidade da mulher, por oposição a “Maria”, uma mulher casta e doméstica, para quem a maternidade é a suprema realização, caracterizada pela passividade e inábil para tomar qualquer posição que implique autoridade sobre outras pessoas (Schafran 1985; Duarte 2012).

Aspetos relativos à conduta sexual da mulher persistem não apenas em decisões judiciais sobre violação, mas também sobre investigação de paternidade, aborto, violência nas relações de intimidade, e são frequentemente determinantes, não obstante as leis em vigor7.

Na análise efetuada de sentenças e acórdãos, “Eva” surge maioritariamente em decisões judiciais que enfatizam a infidelidade da vítima. O conteúdo da polémica decisão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de outubro de 2017, é demonstrativo da presença deste tipo de vítima na cultura legal. O caso remonta a 2015 e refere-se a uma mulher que foi agredida psicológica e fisicamente (com uma “moca com pregos”) pelo marido, de quem se encontrava separada, e pelo ex-amante. Como ficou provado em Primeira Instância, das agressões resultaram escoriações, hematomas, dores e marcas psicológicas que afetaram o bem-estar da vítima. O Ministério Público recorreu por discordar da medida das penas aplicadas e da suspensão da execução da pena. O Tribunal de Recurso considerou que “este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica”, afirmando ainda que a conduta do marido foi justificada por um quadro depressivo causado pela infidelidade da mulher:

Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.

Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.

Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida. [destaque meu]

Note-se que o acórdão tece considerações, não sobre a infidelidade em geral, mas somente sobre aquela que é cometida por mulheres, referindo-se sempre ao “adultério da mulher”. Isto significa que a prática judicial se mostra mais empática com mulheres que apenas têm sexo com os maridos. O discurso legal desencoraja as mulheres de viverem em celibato ou de terem sexo fora do casamento - com um parceiro, com múltiplos parceiros ou com outra mulher; também dissuadem as mulheres de serem mais assertivas do que os seus maridos querem que sejam sobre a gestão do sexo matrimonial (Frug 1992).

Supermulher: A não vítima

Algumas mulheres possuem características exógenas que as afastam de um imaginário de vítima que se coadune com uma ideia de passividade e dependência, psicológica e económica, face ao agressor. Para Schafran (1985), estas características encontram-se no tipo “Supermulher”: uma mulher inserida no mercado de trabalho, com uma carreira profissional bem-sucedida e economicamente independente e que, consequentemente, dispõe de recursos próprios para se sustentar. Este tipo ideal é alimentado por duas falácias. A primeira é a de que a vitimação nas relações de intimidade está centrada nas classes sociais mais baixas. A segunda é a de que noções liberais de autonomia, independência, livre escolha, igualdade, negociação livre, etc., são atribuídas a um sujeito neutro com liberdades, quando, na verdade, são atribuídas aos homens (Estrich 1995, 1095).

Uma decisão do Tribunal Judicial de Viseu, de 3 de outubro de 2017, ao pôr em causa que uma mulher moderna e autónoma possa ser vítima de violência doméstica, é ilustrativa do impacto que o mito em torno da vítima “supermulher” pode ter nas decisões judiciais:

Denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido. […] O seu carácter forte e independente foi mesmo confirmado por várias testemunhas. [...] Por isso cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando.

Esta argumentação indica haver uma resistência em conceder que mulheres com tais características se submetam a uma situação de violência numa relação de intimidade, sobretudo quando esta é prolongada. Por não reunir os requisitos que vão ao encontro do estereótipo de uma vítima de violência doméstica, e do próprio entendimento deste crime, alguns/as magistrados/as entendem que esta mulher é uma vítima manipuladora, ou seja, que forja ou exacerba situações de violência para com elas obter ganhos como a guarda total dos filhos ou benefícios no divórcio, ou como vingança dos companheiros que terminaram a relação e/ou iniciaram outra.

Reflexões finais

O direito tem tido um papel muito relevante na luta contra as diferentes formas de violência de género e de violência contra as mulheres. A sua relevância não deve ser descurada, nem o investimento que tem sido feito na formação, legal e social, das magistraturas. No entanto, há uma vigilância que deve continuar a ser exercida, pelas teorias feministas do direito, identificando-se obstáculos que persistem e assinalando possíveis trilhos emancipatórios. A justiça tem de ser percebida como um produto das relações sociais que a constituem e do intercâmbio entre o jurídico e o não jurídico, e entre o legislado e o vivido. Esta perceção torna evidente a necessidade de conhecer as culturas legais e quais os estereótipos que delas constam e que podem obstar à efetivação de uma decisão justa. No fundo, importa que se entendam não apenas os comportamentos e ideias legalmente orientadas e que magistrados/as controlam, mas também aqueles aspetos mais nebulosos que influenciam, consciente ou inconscientemente, a sua prática: as vivências, experiências - pessoais e próximas -, os conhecimentos transmitidos e a cultura popular. A vigilância destes aspetos, notoriamente enraizados nas perceções de um tipo legal tão complexo como é a violência doméstica, é fundamental. A análise qualitativa que aqui foi efetuada também não pretende afirmar que os estereótipos identificados estão presentes na maioria da prática judicial, mas sim, apontá-los de modo a que a exceção não se torne regra. Quando persistentes, estes estereótipos podem tornar-se verdades normativas, e aumenta o risco de uma vitimização secundária sempre que o comportamento (ou características) da vítima não se coadunem com as expectativas de quem julga.

É esta a obrigação de um olhar feminista sobre o direito. Um olhar que o denuncia, pelo menos, enquanto regime de verdades discursivas e normalizadoras, (re)produtor de modelos de relações heteropatriarcais constitutivas dos sujeitos, potencial difusor de modelos de feminilidade e masculinidade.

1Esta é uma discussão mais ampla, uma vez que à constituição do sujeito legal antecede a definição do sujeito dos próprios feminismos. Embora não pretenda ignorar as potencialidades desta discussão, neste artigo procuro somente compreender qual tem sido o reconhecimento e produção do sujeito legal “mulher” no direito para poder reconhecer limites e apontar trilhos emancipatórios.

2Mais especificamente, foram encontrados os seguintes tipos de vítimas: a vítima inocente; a vítima masoquista; a vítima supermulher; a vítima tão culpada quanto o agressor; a vítima agressiva; a vítima manipuladora; a vítima precipitadora; e a vítima imaginária.

3Foram analisadas um total de 30 sentenças.

4Tal como o “homem médio”, também a “mulher razoável” vai ao encontro da mulher branca e de classe média. Apesar de não ser o objeto da reflexão que se enceta neste artigo, a desconstrução destas categorias obriga a um olhar interseccional e crítico sobre um sujeito “mulher” que sabemos não ser homogéneo.

5Embora neste artigo me centre na questão da vítima, não podemos esquecer, como refere Hespanha (1984, 220), que também o crime é uma construção social.

6Para uma tipologia mais completa, ver Duarte 2013.

7Refira-se, a este respeito, o caso Carvalho Pinto de Sousa Morais v. Portugal, cuja análise pode ser encontrada em Duarte 2021.

Financiamento

Este artigo foi realizado no âmbito do projeto IPHinLAW - Homicídios nas relações de intimidade: desafios ao direito (projeto nº 30862), com o apoio FEDER (Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional) através do COMPETE 2020 (Programa Operacional Competitividade e Internacionalização - POCI) e por fundos nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). Referência: POCI-01-0145-FEDER-030862 - PTDC/DIR-DCP/30862/2017.

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Recebido: 19 de Janeiro de 2022; Aceito: 04 de Abril de 2022

Madalena Duarte. Doutorada em Sociologia. É Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) e Professora Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É co-coordenadora do Programa de Doutoramento em Estudos Feministas (FLUC/CES). As suas áreas de interesse incluem os estudos feministas, a violência de género e a sociologia do direito. Tem vários artigos publicados e comunicações apresentadas sobre estes temas. Atualmente, coordena o projeto “Homicídios nas relações de intimidade: desafios ao direito”.

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