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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.45 Lisboa June 2022  Epub July 18, 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.45.14 

Recensões

Enough Already! A Socialist Feminist Response to the Re-emergence of Right Wing Populism and Fascism in Media, de Faith Agostinone-Wilson. Leiden: Brill Sense, 2020, 223 pp.

1Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Coimbra, Portugal, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Braga, Portugal

Agostinone-Wilson, Faith. Enough Already! A Socialist Feminist Response to the Re-emergence of Right Wing Populism and Fascism in Media. 2020. Brill Sense, Leiden: 223p.


A obra Enough Already! A Socialist Feminist Response to the Re-emergence of Right Wing Populism and Fascism in Media propõe uma análise à mediatização da (re)emergência dos movimentos fascistas e populistas de extrema-direita a partir de uma abordagem feminista socialista e marxista. Assumindo que o livro não se configura como uma leitura otimista, a sua autora, Faith Agostinone-Wilson, defende a necessidade de “acordar” a esquerda a partir de uma leitura da paisagem mediática e de um posicionamento crítico cultural ancorado ao feminismo socialista para confrontar o fascismo e o populismo autoritário com os grupos e as ideologias que os sustentam. A autora questiona os motivos por trás do rápido aumento do populismo autoritário e do fascismo do homem forte, não apenas nos Estados Unidos, mas globalmente. Agostinone-Wilson procura abordar o que leva esses movimentos a incorporarem sempre a misoginia como parte das suas ideologias. Neste sentido, e criticando o que considera perspetivas ingénuas, a autora sublinha que estes questionamentos significam não hesitar em criticar a classe trabalhadora branca sempre que necessário.

O livro propõe explorar a reafirmação dos movimentos populistas e fascistas de direita divulgados pelos media, considerando em particular o aumento dos ataques a imigrantes, mulheres, minorias, pessoas LGBTQ, assim como a eleição de políticos que apoiam abertamente discursos autoritários e populistas. Faith Agostinone-Wilson sustenta que a génese destes discursos está inscrita nas leis e políticas e que, apesar da situação limite, a esquerda não tem sido capaz de responder a estes ataques à sociedade por insistir numa ideia de liberdade de expressão baseada na perspetiva de “ouvir os dois lados”. A partir desta leitura da era contemporânea, a autora sustenta que a resistência à ascensão de movimentos de direita implica uma análise feminista socialista marxista da sociedade como forma de demonstrar como o racismo, o sexismo e a homofobia são canais para o capitalismo.

A obra defende que os media, de forma intencional ou não, colaboram na propagação do populismo autoritário e do fascismo. Segundo a autora, esta situação deve-se essencialmente à mudança de paradigma do jornalismo tradicional para a distribuição online de informações. Logo, a proposta do livro é investigar criticamente a forma como os media estão a ampliar os limites da legitimidade de ações de populistas de direita e fascistas.

O primeiro capítulo intitula-se “On the Relevance and Necessity of Socialist Feminism” (“Sobre a relevância e necessidade do feminismo socialista”) e centra-se nas múltiplas definições e formas de feminismo. A partir de um enquadramento de feminismo liberal, teorizações pós-modernas, formas conservadoras e alternativas socialistas, a autora aborda as fontes de opressão que dão origem às várias conceções de feminismo. Assumindo como cenário a eleição de Donald Trump e a sua retórica misógina, sexista, racista e xenófoba, o capítulo sustenta que só uma dupla abordagem marxista e feminista pode permitir compreender as lutas das mulheres e as dificuldades que enfrentam - violação e assédio, violência doméstica, questões laborais, duplos padrões de representação mediática e objetificação nos media. A autora argumenta ainda que o feminismo socialista é também oprimido por homens de esquerda, referindo-se ao termo “brocialist” para enquadrar uma ideologia que tem particular eco nos media sociais. Elencando exemplos concretos, como o caso de Hillary Clinton e Julian Assange, Faith Agostinone-Wilson advoga a necessidade de um feminismo militante, uno e global da classe trabalhadora.

A obra prossegue com uma análise dos movimentos populistas autoritários e fascistas, identificando características comuns como ideologia conservadora, reforço do capitalismo, racionalização da violência, rejeição do liberalismo, culto da masculinidade hegemónica e corrupção desmedida. Estas particularidades interagem entre si promovendo, por exemplo, a ideologia do mercado livre e sociedades racistas e misóginas. No decorrer do capítulo, a autora sustenta que às características comuns se somam diferenças relevantes, sublinhando que o populismo autoritário se afasta do fascismo na vertente da força e do controlo, assim como as ambições de conquistas territoriais. Considerando o contexto contemporâneo, Agostinone-Wilson sustenta que as respostas liberais de esquerda têm sido insuficientes para dar resposta aos avanços da extrema-direita por todo o mundo, exemplificando com o Brexit e a ascensão de partidos de índole fascista na Europa. Na perspetiva da autora, é urgente enfrentar as coligações do centro com a extrema-direita nas múltiplas esferas.

O terceiro capítulo centra-se na classe trabalhadora e procura “ir além da construção do trabalhador industrial masculino branco como marcador de autenticidade”1 (p. 61). As representações mediáticas de pequenas cidades industriais e rurais apresentam o racismo e o sexismo como consequências da vulnerabilidade económica e da insegurança. A autora sustenta que enquanto perdurarem estas representações erróneas da classe trabalhadora não será possível promover uma mobilização em massa, considerando que o capitalismo se intersecta com o sexismo, racismo, homofobia e xenofobia. Defendendo que a persistência da ideia do homem branco como marca da autenticidade da classe trabalhadora é uma consequência dos efeitos do neoliberalismo, Agostinone-Wilson explica que as contradições advêm da ideia de construir o capitalismo através do género e da raça, abrindo caminho para uma leitura enviesada da sociedade que se perpetua através de uma abordagem homogénea de uma classe trabalhadora que é, pelo contrário, diversa. A valorização e visibilidade do homem branco como trabalhador resulta na invisibilidade da verdadeira diversidade da classe trabalhadora, causando divisões e falta de solidariedade.

O capítulo que se segue dá continuidade ao anterior e aborda estas problemáticas associadas à campanha presidencial de Bernie Sanders em 2016, incluindo tendências destrutivas à esquerda que acabaram por alimentar a extrema-direita. A autora destaca o facto de a campanha de Sanders reunir consenso junto dos/as mais jovens, convencionalmente desinteressados/as da política. No entanto, a oportunidade foi perdida naquilo que a autora apelida de “estridência sem substância”2 (p. 95) nos media sociais que se pode resumir a um discurso paternalista, sobretudo considerando raça, género e classe. A ideia de que a revolução pode ser em si catalisadora ignora os grupos mais vulneráveis da sociedade que não têm recursos para se defenderem das políticas agressivas da direita. Apesar de Sanders ter trazido para o debate público conceitos socialistas prementes à democracia, a sua campanha e os seus apoiantes mostraram relutância e até uma certa hostilidade em abordar questões relacionadas com as mulheres e minorias. Perdurou a ideia de que os assuntos económicos têm género masculino e são brancos. Neste sentido, Agostinone-Wilson argumenta que a campanha de Sanders foi uma oportunidade perdida de mostrar tolerância zero ao racismo e à misoginia, sustentando a ambiguidade da classe trabalhadora nestas questões.

O quinto capítulo dá o mote para discutir como o sexismo e o racismo online abrem portas e possibilitam o discurso do e-libertarianism (p. 113). A autora desconstrói o argumento da Internet como espaço de igualdade e promotor de progresso e democracia, demonstrando que a neutralidade não existe nos espaços digitais que se assumem como um continuum de violência contra mulheres e minorias. Aludindo ao discurso conservador nos media sociais, Agostinone-Wilson mostra como a Internet é um poderoso fórum para cultivar valores de extrema-direita tradicionalistas e retrógrados, alinhados com uma retórica racista, sexista, homofóbica e violenta. A autora sustenta que o “e-libertarianismo” é uma extensão digital do discurso liberal tradicional que assenta na ideia da neutralidade da Internet e é contra qualquer tipo de regulação. Sob a falácia de que a Internet não é real, a violência e os comportamentos tóxicos são considerados o preço a pagar por um espaço livre de regras, cultivando a persona do troll como forma de contracultura numa prática discursiva de transgressão do politicamente correto. Estes espaços dão palco à organização de coletivos como Alt-Right ou a manosfera, centrados na ideia de que existem dois lados que devem ser ouvidos, como se se tratasse de liberdade de expressão e não de discurso de ódio e violência contra grupos vulneráveis. A autora defende que é necessário combater legalmente estes espaços e promover a literacia digital para que as pessoas conheçam as plataformas e as suas formas de financiamento.

O ataque de Donald Trump aos direitos reprodutivos nas primárias do Partido Republicano é o mote para um capítulo em que a autora disseca os significados sociais e as funções de apresentar o aborto pela lente anti-escolha e pró-vida. Demonstrando como o aborto está fora da convencional esfera dos direitos civis, a autora argumenta que a sociedade - incluindo a esquerda - vê as questões dos direitos reprodutivos como desligadas da vida quotidiana da classe trabalhadora porque é um “assunto de mulheres” (p. 150). Após apresentar a trajetória histórica da legislação sobre o aborto nos Estados Unidos da América, Agostinone-Wilson defende que a perspetiva do feto como personalidade jurídica é uma ideologia com um poder discursivo muito forte que objetifica a mulher e promove a vigilância. Nesta lógica, a autora defende a militância como forma de reagir ao feroz ataque aos direitos reprodutivos das mulheres, ao invés de um compromisso numa era em que o autoritarismo e o populismo se intersectam com a religião e os discursos demagógicos dos movimentos pró-vida.

O último capítulo centra-se na ideia da rapidez da Internet e das bolhas de verdades únicas e coletivas que os algoritmos promovem. É nesta lógica que a autora defende que se cria o anti-intellectualism (p. 175), por oposição aos factos alternativos que são disseminados pelas plataformas digitais. De acordo com Faith Agostinone-Wilson, se o “anti-intelectualismo” é habitualmente uma arma de arremesso da direita, o ódio por especialistas e pela ciência sustenta-se no obscurantismo para tornar válidos argumentos de “pseudociência” (p. 179) ligados a ideais de supremacia branca. É nesta mesma lógica que as notícias falsas alcançam agora públicos muito mais vastos, para quem a verdade está num ecrã e não é questionável. Beneficiando da iliteracia mediática e de uma perspetiva demagógica promovida nos media sociais com o argumento de “ouvir os dois lados”, a extrema-direita propaga sistematicamente mentiras que são assumidas como verdade por milhões de pessoas. Estas mentiras têm a capacidade de interferir diretamente com a vida pública e política das sociedades e permitem a propagação de teorias da conspiração. A falta de pensamento crítico leva ao nacionalismo extremo, como no caso do Brasil de Jair Bolsonaro. A autora sustenta que tempos de mudança são particularmente benéficos a “charlatões” (p. 201), sublinhando que notícias falsas e teorias da conspiração fornecem narrativas convenientes para reforçar crenças políticas, mas também ideias do senso comum.

O livro Enough Already! A Socialist Feminist Response to the Re-emergence of Right Wing Populism and Fascism in Media foi escrito durante a presidência de Donald Trump e no início da campanha eleitoral de 2020. O pessimismo anunciado na introdução é explicado numa obra lúcida e clara sobre a forma como o populismo, o autoritarismo e o fascismo estão cada vez mais latentes numa era em que a informação tem uma velocidade sem precedentes. No entanto, como bem sublinha a autora, na era do digital as promessas de uma rede neutra promotora da igualdade esvaneceram-se em pós-verdades e factos alternativos criados e aproveitados por retóricas misóginas, racistas e xenófobas que se multiplicam.

1No original, “Moving beyond the construction of the white male industrial worker as a marker of authenticity”.

2No original, “Stridency without substance”.

Referências bibliográficas

Agostinone-Wilson, Faith. 2020. Enough Already! A Socialist Feminist Response to the Re-emergence of Right Wing Populism and Fascism in Media. Leiden: Brill Sense. [ Links ]


Recensões

In Plain Sight. Sexual Violence in Armed Conflicts, organizado por Gaby Zipfel, Regina Mühlhäuser e Kirsten Campbell. New Delhi: Zubaan Academic, 2019, 472 p.

António Sousa Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-6552-8776

2Faculdade de Letras e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal asr@ces.uc.pt

O volume em apreço, de que saiu, entretanto, também uma versão alemã (Vor aller Augen. Sexuelle Gewalt in bewaffneten Konflikten. Hamburg: Hamburger Edition, 2021), representa a súmula de vários anos de trabalho do grupo SVAC ( Sexual Violence in Armed Conflict (www.warandgender.net). O local de nascimento deste grupo, o Instituto de Estudos Sociais de Hamburgo, elegeu, desde a fundação, o tema da violência como um dos seus tópicos de investigação estruturantes. Nos anos de 1990, o Instituto organizou a conhecida exposição sobre os crimes da Wehrmacht, que constituiu uma inflexão importante nos estudos sobre o nazismo e o Holocausto e, que, exibida em muitas cidades do espaço de língua alemã, obteve grande ressonância e esteve no centro de intensas controvérsias. Gaby Zipfel, durante 30 anos diretora da revista Mittelweg 36, órgão do Instituto, participou de perto neste projeto. Desde cedo, porém, a sua pesquisa se orientara para o tema da violência contra as mulheres e, em particular, da violência sexual.3 Longamente acalentado, o projeto de constituir um grupo de investigação internacional centrado neste tema viria a materializar-se em 2010, com a importante colaboração de Regina Mühlhäuser e o apoio do Instituto de Hamburgo. O grupo foi capaz de rapidamente se constituir numa rede internacional, reunindo muitas das investigadoras mais reputadas da área, e prossegue o seu relevante trabalho, apesar do desaparecimento prematuro de Gaby Zipfel, que, infelizmente, já não assistiria à publicação da versão alemã.

O volume resulta de um encontro internacional ( “Against Our Will ( Forty Years After: Exploring the Field of Sexual Violence in Armed Conflict” ( realizado em Hamburgo por ocasião do 40.º aniversário da publicação da obra de Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape, um estudo seminal de absoluta referência na área dos estudos da violência contra a mulher e, em particular, da violação. Não se trata, no entanto, do tradicional livro de atas, mas sim de uma obra cuidadosamente organizada, cuja estrutura, com cada capítulo dividido em duas partes ( “Intervenções” / “Reflexões” (, conduz o/a leitor/a de forma muito coerente por um conjunto de tópicos a cuja discussão a adição, nalguns casos, de pequenos textos com a função de comentário confere um carácter dialógico.

Este carácter dialógico está exemplarmente plasmado num dos dois textos que cumprem a função de introdução, “Gaps and Traps. The Politics of Generating Knowledge on Sexual Violence in Armed Conflict”, e que constitui um fórum de discussão em que participou uma parte das autoras do volume. Este fórum complementa de maneira decisiva o breve texto intitulado “Introdução”, constituindo como que uma cartografia geral do conjunto de problemas que definem o campo em análise. O mais elementar desses problemas é definido com clareza por Joanna Bourke: “Um problema que vemos na investigação sobre a guerra e o conflito armado é que muitos estudiosos não parecem pensar que a violência sexual está errada” (p. xxiv).4

Com efeito, como qualquer estudioso/a da violência deverá saber, a naturalização da violência constitui um problema basilar que, muitas vezes, dificulta e confunde a própria definição do conceito. No caso da violência contra as mulheres, em particular em contexto de guerra, essa naturalização, repercutida, como lembra Joanna Bourke, na lógica da investigação, é particularmente marcada. A associação a uma noção de masculinidade cultivada no meio militar como pressuposto para a formação de combatentes eficazes produz uma combinação letal. Por outro lado, a desnaturalização de processos de violência exige uma perspectiva crítica assente num conceito de violência suficientemente amplo para não permitir que se gerem as zonas de invisibilidade que são comuns quando se insiste num conceito demasiado restrito. Essa mesma amplitude, por outro lado, suscita, por si mesma, fatores de complexidade que exigem à investigação neste campo um nível de sofisticação acrescido.

A verdade é que, como lembram as organizadoras na sua breve introdução, a visibilização da violência contra as mulheres deve-se, fundamentalmente, à ação organizada das próprias mulheres. Sobretudo após 1989, a violência contra mulheres em contexto de guerra, a partir, nomeadamente, da experiência do genocídio dos Tutsi no Ruanda ou dos conflitos que acompanharam a desagregação da Jugoslávia, entrou crescentemente no radar da atenção internacional, incluindo das organizações das Nações Unidas ou dos tribunais penais internacionais. Em 1998, a violência sexual foi declarada um ato de genocídio e, em 2001, definida como crime contra a humanidade.

Estes avanços em vários campos não escondem, no entanto, a complexidade do tema nem podem fazer esquecer todas as perguntas que continuam em aberto. O postulado fundador do grupo SVAC está em que essa complexidade só pode ser abordada com sucesso de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa, como a refletida na composição internacional do próprio grupo e no cruzamento, no próprio interior deste, entre diferentes áreas de interesse e diferentes focos nacionais. Essa mesma perspectiva está bem refletida nas diferentes contribuições, distribuídas por quatro secções, cujos títulos falam por si: “War/Power”; “Violence/Sexuality”; “Gender/Engendering”; “Visibility/Invisibility”.

Não é possível, no breve espaço desta recensão, fazer justiça em particular a cada contributo incluído no volume. Um traço comum é bem visível: a generalidade dos capítulos, para além de uma abordagem bem informada, teoricamente sofisticada, atenta às referências mais atuais, traduz, igualmente, uma atitude interventiva, consciente das profundas ressonâncias éticas e políticas de um tema que não constitui simplesmente um objeto de investigação, antes se constitui como uma interpelação permanente que não pode deixar de mobilizar uma forte dimensão afetiva ( desde logo, o sentimento de compaixão pelas vítimas de experiências traumáticas e a consciência concomitante do modo como o sofrimento dessas vítimas responsabiliza profundamente o/a investigador/a. É assim que, além da abordagem de temas e contextos muito diversos e do aprofundamento analítico a partir de estudos de caso, o volume oferece, no seu conjunto, uma proposta de investigação de grande rigor e exigência que, pode dizer-se, estabelece um paradigma teórico-metodológico que transporta a abordagem do tema para um novo patamar. Por outro lado, sendo resultado de um diálogo em curso que a bem conseguida estrutura do volume consegue espelhar de forma muito viva, as abordagens propostas, ao mesmo tempo que sistematizam as questões fundamentais em presença, não têm a pretensão de as “esgotar”, pelo contrário, acabam por formular mais perguntas do que respostas, oferecendo, assim, inúmeras pistas para investigações futuras.

Estamos, assim, perante uma ampla cartografia transnacional da complexidade de problemas situados no entrecruzamento das questões da violência, da memória, do trauma e da identidade sexual que representa, indubitavelmente, um marco na consolidação de um campo de estudos de flagrante urgência e relevância. Seja na versão inglesa, seja na alemã, substancialmente idênticas, este volume fica a constituir uma referência indispensável.

3Veja-se, por exemplo, o artigo “’Vamos lá curtir um bocado’. A relação entre identidade sexual, violência e sexualidade em conflitos armados”, publicado em 2012 na Revista Crítica de Ciências Sociais 96.

4No original, “One problem that we see in research on war and armed conflict is that many scholars do not seem to think that sexual violence is wrong”.

Referências bibliográficas

Zipfel, Gaby. 2012. “’Vamos lá curtir um bocado’. Relação entre identidade sexual, violência e sexualidade em conflitos armados.” Revista Crítica de Ciências Sociais 96: 31-46.Links ]

Zipfel, Gaby, Regina Mühlhäuser, e Kirsten Campbell (orgs.). 2019. In Plain Sight. Sexual Violence in Armed Conflicts. New Delhi: Zubaan Academic. [ Links ]


Recensões

Feminismo para os 99%. Um manifesto, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. Tradução de Eurídice Gomes. Lisboa: Objectiva, 2019, 136pp.

3Universidade Lusófona do Porto, Porto, Portugal

O volume em apreço, de que saiu, entretanto, também uma versão alemã (Vor aller Augen. Sexuelle Gewalt in bewaffneten Konflikten. Hamburg: Hamburger Edition, 2021), representa a súmula de vários anos de trabalho do grupo SVAC ( Sexual Violence in Armed Conflict (www.warandgender.net). O local de nascimento deste grupo, o Instituto de Estudos Sociais de Hamburgo, elegeu, desde a fundação, o tema da violência como um dos seus tópicos de investigação estruturantes. Nos anos de 1990, o Instituto organizou a conhecida exposição sobre os crimes da Wehrmacht, que constituiu uma inflexão importante nos estudos sobre o nazismo e o Holocausto e, que, exibida em muitas cidades do espaço de língua alemã, obteve grande ressonância e esteve no centro de intensas controvérsias. Gaby Zipfel, durante 30 anos diretora da revista Mittelweg 36, órgão do Instituto, participou de perto neste projeto. Desde cedo, porém, a sua pesquisa se orientara para o tema da violência contra as mulheres e, em particular, da violência sexual.3 Longamente acalentado, o projeto de constituir um grupo de investigação internacional centrado neste tema viria a materializar-se em 2010, com a importante colaboração de Regina Mühlhäuser e o apoio do Instituto de Hamburgo. O grupo foi capaz de rapidamente se constituir numa rede internacional, reunindo muitas das investigadoras mais reputadas da área, e prossegue o seu relevante trabalho, apesar do desaparecimento prematuro de Gaby Zipfel, que, infelizmente, já não assistiria à publicação da versão alemã.

O volume resulta de um encontro internacional ( “Against Our Will ( Forty Years After: Exploring the Field of Sexual Violence in Armed Conflict” ( realizado em Hamburgo por ocasião do 40.º aniversário da publicação da obra de Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape, um estudo seminal de absoluta referência na área dos estudos da violência contra a mulher e, em particular, da violação. Não se trata, no entanto, do tradicional livro de atas, mas sim de uma obra cuidadosamente organizada, cuja estrutura, com cada capítulo dividido em duas partes ( “Intervenções” / “Reflexões” (, conduz o/a leitor/a de forma muito coerente por um conjunto de tópicos a cuja discussão a adição, nalguns casos, de pequenos textos com a função de comentário confere um carácter dialógico.

Este carácter dialógico está exemplarmente plasmado num dos dois textos que cumprem a função de introdução, “Gaps and Traps. The Politics of Generating Knowledge on Sexual Violence in Armed Conflict”, e que constitui um fórum de discussão em que participou uma parte das autoras do volume. Este fórum complementa de maneira decisiva o breve texto intitulado “Introdução”, constituindo como que uma cartografia geral do conjunto de problemas que definem o campo em análise. O mais elementar desses problemas é definido com clareza por Joanna Bourke: “Um problema que vemos na investigação sobre a guerra e o conflito armado é que muitos estudiosos não parecem pensar que a violência sexual está errada” (p. xxiv).4

Com efeito, como qualquer estudioso/a da violência deverá saber, a naturalização da violência constitui um problema basilar que, muitas vezes, dificulta e confunde a própria definição do conceito. No caso da violência contra as mulheres, em particular em contexto de guerra, essa naturalização, repercutida, como lembra Joanna Bourke, na lógica da investigação, é particularmente marcada. A associação a uma noção de masculinidade cultivada no meio militar como pressuposto para a formação de combatentes eficazes produz uma combinação letal. Por outro lado, a desnaturalização de processos de violência exige uma perspectiva crítica assente num conceito de violência suficientemente amplo para não permitir que se gerem as zonas de invisibilidade que são comuns quando se insiste num conceito demasiado restrito. Essa mesma amplitude, por outro lado, suscita, por si mesma, fatores de complexidade que exigem à investigação neste campo um nível de sofisticação acrescido.

A verdade é que, como lembram as organizadoras na sua breve introdução, a visibilização da violência contra as mulheres deve-se, fundamentalmente, à ação organizada das próprias mulheres. Sobretudo após 1989, a violência contra mulheres em contexto de guerra, a partir, nomeadamente, da experiência do genocídio dos Tutsi no Ruanda ou dos conflitos que acompanharam a desagregação da Jugoslávia, entrou crescentemente no radar da atenção internacional, incluindo das organizações das Nações Unidas ou dos tribunais penais internacionais. Em 1998, a violência sexual foi declarada um ato de genocídio e, em 2001, definida como crime contra a humanidade.

Estes avanços em vários campos não escondem, no entanto, a complexidade do tema nem podem fazer esquecer todas as perguntas que continuam em aberto. O postulado fundador do grupo SVAC está em que essa complexidade só pode ser abordada com sucesso de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa, como a refletida na composição internacional do próprio grupo e no cruzamento, no próprio interior deste, entre diferentes áreas de interesse e diferentes focos nacionais. Essa mesma perspectiva está bem refletida nas diferentes contribuições, distribuídas por quatro secções, cujos títulos falam por si: “War/Power”; “Violence/Sexuality”; “Gender/Engendering”; “Visibility/Invisibility”.

Não é possível, no breve espaço desta recensão, fazer justiça em particular a cada contributo incluído no volume. Um traço comum é bem visível: a generalidade dos capítulos, para além de uma abordagem bem informada, teoricamente sofisticada, atenta às referências mais atuais, traduz, igualmente, uma atitude interventiva, consciente das profundas ressonâncias éticas e políticas de um tema que não constitui simplesmente um objeto de investigação, antes se constitui como uma interpelação permanente que não pode deixar de mobilizar uma forte dimensão afetiva ( desde logo, o sentimento de compaixão pelas vítimas de experiências traumáticas e a consciência concomitante do modo como o sofrimento dessas vítimas responsabiliza profundamente o/a investigador/a. É assim que, além da abordagem de temas e contextos muito diversos e do aprofundamento analítico a partir de estudos de caso, o volume oferece, no seu conjunto, uma proposta de investigação de grande rigor e exigência que, pode dizer-se, estabelece um paradigma teórico-metodológico que transporta a abordagem do tema para um novo patamar. Por outro lado, sendo resultado de um diálogo em curso que a bem conseguida estrutura do volume consegue espelhar de forma muito viva, as abordagens propostas, ao mesmo tempo que sistematizam as questões fundamentais em presença, não têm a pretensão de as “esgotar”, pelo contrário, acabam por formular mais perguntas do que respostas, oferecendo, assim, inúmeras pistas para investigações futuras.

Estamos, assim, perante uma ampla cartografia transnacional da complexidade de problemas situados no entrecruzamento das questões da violência, da memória, do trauma e da identidade sexual que representa, indubitavelmente, um marco na consolidação de um campo de estudos de flagrante urgência e relevância. Seja na versão inglesa, seja na alemã, substancialmente idênticas, este volume fica a constituir uma referência indispensável.

3Veja-se, por exemplo, o artigo “’Vamos lá curtir um bocado’. A relação entre identidade sexual, violência e sexualidade em conflitos armados”, publicado em 2012 na Revista Crítica de Ciências Sociais 96.

4No original, “One problem that we see in research on war and armed conflict is that many scholars do not seem to think that sexual violence is wrong”.

Referências bibliográficas

Zipfel, Gaby. 2012. “’Vamos lá curtir um bocado’. Relação entre identidade sexual, violência e sexualidade em conflitos armados.” Revista Crítica de Ciências Sociais 96: 31-46.Links ]

Zipfel, Gaby, Regina Mühlhäuser, e Kirsten Campbell (orgs.). 2019. In Plain Sight. Sexual Violence in Armed Conflicts. New Delhi: Zubaan Academic. [ Links ]

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