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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.11 

Recensões

A Economia XX. O épico potencial das mulheres, de Linda Scott. Tradução de Linda Caetano. Lisboa: Conjuntura Actual Editora, 2021, 392 pp.

1Professora Emérita do ISCTE-IUL, Lisboa, Portugal


Escrito pouco tempo antes das últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos e traduzido para português com uma rapidez surpreendente, o que nem sempre acontece com as obras que tratam de género e feminismo, o livro A Economia XX. O épico potencial das mulheres (no original, The Double X Economy: The Epic Potential of Women's Empowerment) constitui uma crítica da visão dominante da economia. Assente em abundante pesquisa, ao longo de 14 capítulos, é de leitura indispensável para quem trabalha nos estudos de género e feministas, mas também para economistas. A autora é professora emérita de empreendedorismo e inovação na Universidade de Oxford, investigadora e ativista da capacitação das mulheres. A sua experiência nestas áreas permite-lhe enriquecer o texto com numerosos exemplos retirados da sua colaboração com organizações não-governamentais e programas de intervenção em diferentes países do mundo para melhor ilustrar o seu argumento.

A autora defende nesta obra o que designa por uma “verdade improvável” (p. 12), a da contribuição da igualdade económica das mulheres para a prosperidade global. No capítulo 1 (“A economia XX”), a misoginia da economia, enquanto disciplina académica e enquanto área de investigação, que sustenta o domínio masculino da atividade económica, é apontada como a principal razão para o não reconhecimento dessa verdade improvável. Daí ter sentido a necessidade de denunciar estes enviesamentos apresentando os dados e os argumentos para uma visão alternativa. Segundo Linda Scott, a cegueira começa desde logo na forma como os dados (capítulo 2, “Por detrás dos grandes dados”) silenciam a situação das mulheres e as estatísticas obedecem a hierarquias de género na abordagem e apresentação dos dados sobre a desigualdade de género. Nos capítulos seguintes são abordados os principais condicionamentos que influenciam a participação das mulheres na economia: os limites legais, culturais e religiosos, consoante os países, no acesso à propriedade e à terra, que contribuem para a dependência e acentuam a pobreza das mulheres em muitas sociedades (capítulo 3, “Controladas pelas necessidades”); o discurso dominante, que recorre a um certo uso da ciência, à religião e ao conhecimento popular para naturalizar as desigualdades e o domínio masculino, acompanhado dos argumentos que permitem refutá-lo (capítulo 4, “Desculpas insuficientes, tratamento indesculpável”); a subordinação económica das mulheres e as vulnerabilidades que daí decorrem (capítulo 5, “Por amor, não por dinheiro”); o presente e o passado da situação das mulheres no mercado de trabalho, marcada pela sobre-exploração da mão-de-obra feminina em certos sectores, pela ausência de reconhecimento de qualificações profissionais e oportunidades de carreiras, numa trajetória longa de desigualdade, tão pouco reconhecida pelos movimentos operários e os sindicatos ao longo da história (capítulo 6, “Fuga da cozinha”); o impacto das desigualdades na demografia, em resultado sobretudo das desigualdades salariais e da falta de apoios à infância, no capítulo 7, apropriadamente intitulado “Punir a maternidade”; a insistência em naturalizar as diferenças entre mulheres e homens (capítulo 8, “Fanáticos do cérebro”) e a consequente ausência de racionalidade que justifique a persistência das desigualdades salariais, numa época em que as qualificações das mulheres não param de subir em todo o mundo (capítulo 9, “O fracasso da igualdade salarial”); e, finalmente, o sexismo generalizado do sector financeiro (capítulo 11, “Rufias do dinheiro”).

Uma vez caracterizado o enviesamento da visão económica dominante, com todas as suas consequências sociais e económicas que convocam os argumentos a favor da igualdade de género na economia, são abordadas algumas fontes possíveis de mudança. Uma delas, ao alcance das próprias mulheres desde que conscientes das desigualdades, dada a sua posição como consumidoras, é a alteração dos padrões de consumo (capítulo 10, “O Natal a 80%”), de que é exemplo o comércio justo; o aumento do empreendedorismo e da participação das mulheres na criação de empresas (capítulo 12, “Dominar a situação”) e o contributo que podem dar para a sua integração na economia global (capítulo 13, “Aderir ao mercado global”) seriam outras fontes de mudança para as quais participa o movimento para a capacitação das mulheres que a autora defende. Mudanças que deveriam convergir, como afirma, para um “movimento global concertado para pôr fim aos constrangimentos sistémicos aplicados às mulheres” (capítulo 14, “O caminho para a redenção”, p. 326).

O livro encerra com um conjunto de recomendações e medidas específicas (Epílogo - próximos passos) dirigidas ao governo dos Estados Unidos, ao Mundo e aos indivíduos (Ações Individuais). A escolha dos EUA, país onde o PIB produzido pelas mulheres já praticamente é igual ao dos homens, é justificada pela proximidade das eleições presidenciais, depois de uma presidência catastrófica e com efeitos devastadores para os direitos das mulheres, mas também pela influência das suas políticas no resto do mundo, o Mundo, porque na governação global das grandes organizações internacionais (G7 e G20, Banco Mundial, OMC, APEC, entre outras) as mulheres quase não têm voz e, finalmente, as ações individuais, algumas já abordadas anteriormente, ao nível do consumo e da participação no mundo empresarial, mas também do discurso, da consciencialização e das doações de beneficência para as organizações que trabalham na área da capacitação e do empoderamento das mulheres.

Apesar da enorme variedade e riqueza de informação, maior em alguns capítulos do que noutros, este livro denso torna-se de fácil leitura, pela forma como são apresentados os dados, mas também porque muitos capítulos começam com um exemplo, um caso pessoal, uma pessoa que tem nome e lugar para, a partir daí, se tecer um contexto envolvente que serve de pretexto ao desenvolvimento do argumento central. O biologismo do título, talvez com o propósito de tornar o livro chamativo, não deixa de refletir o olhar binário de género que atravessa a obra, apesar das intersecções com a classe, a cor da pele, a religião e a cultura e da integração de outras disciplinas das ciências sociais como a história, a antropologia e a psicologia.

No entanto, a maior lacuna do livro é a ausência do feminismo, ou melhor do contributo dos movimentos das mulheres para a transformação da sua condição coletiva. Embora surjam algumas referências a movimentos de mulheres noutros capítulos, é no capítulo 6 que encontramos mais referências ao combate organizado contra a discriminação e a ideologia dominante com o exemplo dos movimentos dos anos de 1960 nos EUA. Nesse contexto, é referida a dicotomia que o movimento feminista supostamente gerou entre trabalho e família porque, como diz, sendo o principal foco da segunda vaga do movimento feminista o acesso ao emprego, as donas-de-casa ter-se-ão sentido excluídas, o que sendo verdade reflete apenas um lado da história1. Falta, portanto, nesta abordagem dos movimentos dos anos de 1960 a análise da emergência da reação e dos movimentos antifeministas que, eles sim, acentuaram a dicotomia entre trabalho e família ao envolver algumas mulheres, para as usar como exemplos do eterno feminino, a preservar e a servir de modelo para todas as mulheres. Como ainda hoje acontece com a inalterada exaltação da maternidade e do chamado papel tradicional, mesmo que eles coexistam com a atividade profissional.

1Exemplo paradigmático é o episódio que marcou decisivamente o futuro político de Hillary Clinton quando disse a um jornalista, na primeira campanha do marido, que podia ter ficado em casa a fazer chá e bolinhos, mas que antes escolhera uma carreira profissional. Esta declaração valeu-lhe o ódio dos setores conservadores e de direita, até aos dias de hoje, que citam constantemente a frase para a descrever como uma mulher excessivamente ambiciosa - algo que só uma mulher pode ser, obviamente - e que odeia as outras mulheres, em suma, uma figura detestável.

Referências bibliográficas

Scott, Linda. 2021. A Economia XX. O épico potencial das mulheres. Tradução de Linda Caetano. Lisboa: Conjuntura Actual Editora. [ Links ]

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