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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.13 

Recensões

Le care, théories et pratiques, de Helena Hirata. Paris: La Dispute, 2021, 208 pp.

1Instituto de História Contemporânea, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Portugal

2IN2PAST - Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, Universidade NOVA de Lisboa, Portugal


Le care, théories et pratiques, de Helena Hirata, vem questionar, de acordo com Danièle Kergoat, no posfácio, o “conforto intelectual” da argumentação e do posicionamento ideológico acerca do care2 (cuidado) a partir de práticas profissionais em três geografias tão diferentes quanto a distância entre elas: no Brasil, país onde Hirata viveu dos cinco aos 24 anos de idade; em França, onde vive há cinquenta anos; e, finalmente, no Japão onde nasceu.

O estudo comparativo que apresenta nesta obra é considerado, por Evelyn Nakano Glenn (prefácio, p. 7), pioneiro. Contudo, esta não é a primeira vez que Helena Hirata trata o tema do care.

Publicado em 2021, ainda sob os efeitos da catástrofe sanitária (2020-21) provocada pela pandemia da COVID-19, este livro vem renovar a urgência da necessidade de mudar a situação de vulnerabilidade, de precariedade e de desvalorização simbólica (e monetária) que caracteriza o trabalho de prestar cuidados, realizado maioritariamente por mulheres e que é essencial para a manutenção das sociedades.

A abordagem contém vários ingredientes que a tornam distinta de outras. Ela “convida a uma reflexão sobre a centralidade política do trabalho das mulheres e do care” (p. 26). Combina uma preocupação reflexiva e teórica, questionando os conceitos, ressituando-os na atualidade do debate político, com uma prática a partir das histórias contadas pelas protagonistas do trabalho do care, no Brasil, em França e no Japão. É o olhar de uma socióloga comprometida.

O livro está organizado em quatro capítulos. Um primeiro que desafia as definições, as teorias e a controvérsia à volta de um tema que se julgaria não ser necessário definir nem que pudesse suscitar um debate teórico. Mas é necessário e atual.

O segundo capítulo é dedicado à comparação dos três países (Brasil, França e Japão), observando as diferenças das dinâmicas sociodemográficas, de desenvolvimento económico e tecnológico muito distintas, mas cujos modelos de envelhecimento da população e da “crise do care” parecem conferir-lhes algumas semelhanças.

O terceiro capítulo, dedicado ao fenómeno da globalização, das protagonistas do care e migrações, introduz outra dimensão importante, que nos ajuda a compreender (não quer dizer aceitar) o que está por trás da desvalorização do trabalho do care e de quem o realiza. Referimo-nos à dimensão racializada deste tipo de trabalho que é particularmente visível no Brasil (migrações internas) e em França (migrações internacionais).

O quarto capítulo, o mais extenso, apresenta os resultados do trabalho de terreno nos três países e analisa as entrevistas realizadas (360). São descritas as trajetórias profissionais, as condições de trabalho, os aspetos inovadores que permitem finalmente responder à pergunta, mas afinal o que é o care? Hirata propõe a seguinte definição:

Um trabalho material, técnico e emocional que é enformado por relações sociais de sexo, de classe, de raça/etnia, entre diferentes protagonistas; quem presta o trabalho e quem dele beneficia, bem como aqueles e aquelas que o enquadram, supervisionam ou o determinam. O care não é apenas uma atitude cuidadosa, abrange um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em dar uma resposta concreta às necessidades das outras pessoas. Pode, também, definir-se o care como uma relação de serviço, de apoio e de assistência, remunerada ou não, implicando um sentido de responsabilidade perante a vida e o bem-estar de outras pessoas3. (pp. 38-39)

A fechar, a conclusão intitulada “Centralidade política do trabalho das mulheres e do care” dá conta do trabalho invisível que se tornou visível, mediático e essencial.

Ao longo dos quatro capítulos, H. Hirata vai explicitando a dimensão de interdependência, responsabilidade, mas também fragilidade, que caracteriza o trabalho profissional de prestar cuidados a outras pessoas, em especial a pessoas idosas e/ou doentes. A utilidade pública (e a necessidade) desta atividade ganhou uma notoriedade que veio interpelar-nos acerca da forma como as sociedades têm desvalorizado este trabalho e quem o realiza.

O debate acerca deste trabalho tem suscitado vários entendimentos e originado conceptualizações mais ou menos abrangentes. O care tem a ver com cuidar de pessoas doentes e/ou pessoas com autonomia, inclui cuidados de saúde, de bem-estar, de apoio às rotinas diárias e às atividades de subsistência. A diversidade de serviços que pode incluir-se no care é vasta e esses serviços podem realizar-se no domicílio ou em instituições.

A comparação que resulta da investigação feita em três países tão distintos permite compreender, por um lado, as dinâmicas demográficas e, por outro, as políticas públicas para fazer face à situação, nomeadamente de longevidade e aumento da esperança de vida por oposição a uma forte diminuição dos níveis de fecundidade.

Por exemplo, em França as políticas públicas desempenham um papel fundamental na forma como estes serviços são oferecidos, existindo vários mecanismos e/ou subsídios de apoio, em particular para as pessoas com mais de 60 anos de idade.

No Japão, cuidar das pessoas mais idosas tem sido assumida como uma responsabilidade da família e, sem surpresa, das mulheres, pelo que não é de estranhar que a prestação de cuidados informal não remunerada seja mais comum. Nos últimos anos, tem vindo a verificar-se um reconhecimento da importância da institucionalização do care com o financiamento público e a criação de mecanismos financeiros que cubram as despesas dos serviços prestados no domicílio ou nas instituições especializadas.

No Brasil, não existem políticas públicas para a prestação de cuidados a pessoas idosas, do mesmo modo que em França ou no Japão. Aqui as redes familiares e de vizinhança parecem substituir os inexistentes mecanismos formais de apoio. Nas famílias de maiores recursos, a contratação de mulheres para as tarefas domésticas e para cuidar de pessoas idosas tem sido a solução encontrada. Segundo H. Hirata, nos últimos tempos a situação parece agravar-se com a recusa de regulamentação da profissão de cuidadora e da não priorização, por parte dos poderes públicos, das despesas na área social.

Este olhar comparado permite concluir que, embora estejamos em presença de três realidades muito distintas, há vários aspetos comuns, nomeadamente as más condições de trabalho e as remunerações, em geral bastante mais baixas do que em outras profissões. Muitas das mulheres entrevistadas referiram ter deixado o trabalho quando casaram e engravidaram. A remuneração do marido passou a ser o único rendimento da família. E no Japão, único dos três países onde foram entrevistados mais homens a trabalhar em instituições de prestação de cuidados, alguns referiram não poder casar e constituir família com a remuneração que recebiam.

Uma outra dimensão associada ao care é a migração internacional e nacional que, desde meados da década de 1990, origina importantes fluxos migratórios, em especial de mulheres da Ásia, África e América Latina, para os Estados Unidos da América, Canadá, Europa ocidental e Japão.

Esta globalização do care tem um impacto na divisão internacional do trabalho reprodutivo, segundo Hirata, citando R. Parreñas, ao suscitar fluxos migratórios, em especial de mulheres com poucas ou nenhumas qualificações formais para trabalho doméstico, facilitando desse modo às mulheres das classes médias e altas trabalhar fora de casa e terem uma carreira. A globalização criou empregos para as mulheres, mas eles “são mais precários e mais vulneráveis” (p. 81). Os estudos de acompanhamento do impacto da pandemia de COVID-19 no mundo do trabalho4 contêm descrições de trabalhadoras domésticas internas estrangeiras que foram despedidas, tendo ficado sem remuneração, sem casa e muitas vezes em situação irregular no país, uma vez que a sua autorização de residência estava condicionada ao emprego. Com o fecho das fronteiras, muitas mulheres migrantes ficaram sem poder regressar aos países de origem.

No último capítulo, dedicado às trajetórias profissionais e pessoais das cuidadoras e de alguns cuidadores, a partir da investigação realizada, H. Hirata conclui que, em França (Île de France), este tipo de trabalho tem a marca da migração e da desqualificação, no Brasil (São Paulo), a marca da informalidade e acumulação de múltiplos empregos, e no Japão (Tóquio e Gunma), caracteriza-se por carreiras estáveis para as mulheres e desemprego e reconversão profissional para os homens. Mais uma vez, os resultados confirmam que este trabalho é pouco valorizado, os salários são baixos e sem qualquer reconhecimento social.

Se é certo que este tema não é novo, nem as questões que levanta face à forma como as sociedades se organizam para responder ao desafio demográfico, o que é certo, e a autora sublinha-o ao longo do livro, é que, por um lado, o estado excecional vivido nestes últimos dois anos e, por outro, o facto de afetar as famílias das classes médias, contribuíram para que se tornasse uma questão de emergência pública favorecida pelo mediatismo dos media e das redes sociais.

Se parece existir por parte das protagonistas deste trabalho a consciência da desvalorização do seu trabalho, o facto de serem mulheres, de classes sociais desfavorecidas e de diferentes etnias/origens deve mobilizá-las para a tomada de consciência dos processos de exploração, opressão e de dominação. A sua emancipação depende da tomada de consciência.

No final ficam várias mensagens políticas comprometidas com uma visão de sociedade que defende um maior controle e poder de decisão por parte das mulheres que realizam este tipo de trabalho que não é um “qualquer trabalho”.

2Manteremos o termo care ao longo da recensão.

3No original: “Un travail matériel, technique et émotionnel qui est façonné par des rapports sociaux de sexe, de classe, de «race» /ethnie, entre différents protagonistes: les pourvoyeur-se-s et les bénéficiaires du care, ainsi que tou-te-s ceux et celles qui encadrent, supervisent ou prescrivent le travail. Le care n´est pas seulement une attitude attentionnée, il recouvre un ensemble d´activités matérielles et de relations consistant à apporter une réponse concrète aux besoins des autres. On peut aussi le définir comme un rapport de service, de soutien et d´assistance, rémunéré ou non, impliquant un sens de responsabilité vis-à-vis de la vie et du bien-être d´autrui”.

4Veja-se, a título de exemplo, os seguintes documentos da OIT: Proteção social dos trabalhadores migrantes: uma resposta necessária à crise da COVID-19 (disponível em https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/documents/publication/wcms_758712.pdf) e COVID-19 and care workers providing home or institution-based care (disponível em https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_dialogue/---sector/documents/briefingnote/wcms_758345.pdf).

Referências bibliográficas

Hirata, Helena. 2021. Le care, théories et pratiques. Prefácio de Evelyn Nakano Glenn e posfácio de Danièle Kergoat. Paris: La Dispute. [ Links ]

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