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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.14 

Recensões

The Gender-Sensitive University. A Contradiction in Terms?, organizado por Eileen Drew e Siobhán Canavan. London: Routledge, 2021, 208 pp.

Caynnã de Camargo Santos1  5
http://orcid.org/0000-0003-4069-1363

1Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal


Organizado por Eileen Drew e Siobhán Canavan, The Gender-Sensitive University explora os diversos desafios de ordem cultural, política e económica enfrentados por esforços que buscam promover a igualdade de género nas instituições de ensino superior. O volume parte do entendimento das Universidades enquanto organizações genderizadas [gendered organizations] (Acker 1990), isto é, instituições nas quais distinções convencionadas entre homens e mulheres, masculino e feminino, estruturam e informam os processos de distribuição interna de vantagens e desvantagens, visibilidade e invisibilidade e posições de controle e de subalternidade. Assentes neste entendimento inicial, os catorze capítulos da obra, compostos por contribuições advindas de diversos países europeus e que refletem múltiplas perspetivas disciplinares, procuram não apenas sublinhar a persistência das desigualdades de género na Academia, como também pretendem propor caminhos para a sua superação e para a construção de uma Universidade sensível ao género, apresentando e explorando lições derivadas de experiências em diferentes contextos socioculturais e institucionais.

Apesar de o volume não ser organizado explicitamente em partes ou secções temáticas, é possível identificar dois conjuntos gerais de capítulos - o primeiro, de maior cariz analítico e crítico; o segundo, de natureza propositiva -, aos quais se soma um capítulo introdutório. Rosa, Drew e Canavan apresentam no capítulo 1, a título de introdução, uma breve reconstituição cronológica do processo de emergência de políticas promotoras da igualdade de género em instituições de ensino superior no espaço europeu, enfatizando o papel vital desempenhado por programas transnacionais propostos pela Comissão Europeia. Não obstante o reconhecimento dos avanços alcançados por tais políticas nas últimas décadas, os autores sublinham - com base em dados recentes sobre dimensões como o acesso a financiamento de investigação, o grau de integração da perspetiva de género na produção académica e a presença dos sexos em diferentes níveis hierárquicos da carreira científica - que ainda há um longo caminho a ser percorrido em direção à igualdade de género na Academia.

Aquilo que podemos identificar como a primeira parte da obra é composta por oito capítulos (capítulos 2 a 9) e trata dos atuais obstáculos, barreiras e dificuldades que caracterizam as Universidades insensíveis ao género [gender-insensitive universities]. À luz de estudos recentes, Rosa e Clavero discutem, no capítulo 2, os novos desafios à igualdade de género decorrentes do estabelecimento do paradigma neoliberal enquanto forma dominante de gestão das Universidades contemporâneas. Além de sublinharem, via uma perspetiva interseccional, os impactos diferenciados que fenómenos como a crescente precarização do trabalho científico e o surgimento de novas métricas para aferição de performance geram sobre mulheres e homens, os autores também tematizam o crescente protagonismo alcançado na Academia neoliberal pelos discursos pós-feministas, explorando as confluências entre os mesmos e a racionalidade individualista e despolitizante atualmente hegemónica. No capítulo 3, Nielsen trata dos modos como processos de recrutamento em instituições de ensino superior são permeados por viés de género. Recorrendo a dados de estudos conduzidos no contexto dinamarquês, o autor argumenta que investigadoras/es interessadas/os na formulação de entendimentos mais completos sobre as dinâmicas de género em funcionamento nos processos de seleção de pessoal académico devem examinar os contextos sociais e organizacionais nos quais tais dinâmicas se desenrolam, não se restringindo à análise das idiossincrasias e preconceitos de recrutadores individuais. O quarto capítulo, de Kinahan, Dunne e Cahill, interpela a problemática da progressão na carreira científica a partir de uma perspetiva atenta às desigualdades de género, contribuindo, assim, para a extensa literatura sobre fenómenos como glass ceilings e sticky floors na Academia.6 Com base nos resultados de um estudo empírico conduzido numa instituição irlandesa, as autoras analisam os múltiplos obstáculos enfrentados por mulheres para ascensão na carreira e promoção às posições mais elevadas da hierarquia académica. No capítulo seguinte, Drew e Marshall, também assentes em dados relativos ao contexto académico irlandês, tratam das dificuldades vivenciadas por mulheres em seus esforços para conciliar trabalho e vida pessoal. Em uníssono com os resultados de estudos anteriores, o capítulo sublinha como expectativas assentes em estereótipos de género quanto ao desempenho de tarefas de cuidado familiar e responsabilidades domésticas continuam a ser importantes fontes de tensão e conflito entre vida profissional e vida pessoal para académicas. O capítulo 6 traz um importante contributo para um tema que, na esteira da grande repercussão pública e mediática de movimentos recentes, dos quais podemos destacar o movimento internacional #MeToo, tem recebido especial atenção de investigadoras/es nos últimos anos: o assédio e a violência sexual na Academia. Paoletti, Quintin, Gray-Sadran e Squarcioni abordam a necessidade de ampliar a conscientização sobre tais problemáticas, voltando-se para um estudo de caso que teve como base um campus universitário francês. Mediante uma análise detalhada, as autoras enfatizam, entre outros fatores, o importante papel desempenhado pela atuação dos movimentos feministas enquanto aceleradores de respostas institucionais de combate às diversas formas de violência sexual que tomam parte nos espaços universitários. No capítulo 7, Galligan, McMahon e Millar discutem as iniciativas avançadas por duas instituições de ensino superior (Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, e Trinity College Dublin, na República da Irlanda) dedicadas à auditoria e combate do diferencial salarial entre homens e mulheres.

De modo a sublinhar o caráter relacional do género, Jeff Hearn convoca, no capítulo 8, os estudos críticos sobre os homens e as masculinidades. O autor defende que avanços em direção à construção de uma Academia sensível ao género exigem a modificação do tradicional foco exclusivo sobre as mulheres como os “problemas a serem resolvidos”, de maneira a atentar também para a relevância dos homens e das diversas formas de masculinidades na estruturação e perpetuação dos regimes de desigualdade de género que marcam as instituições científicas. No capítulo 9, Gvozdanović e Bailey convidam-nos a explorar as complexidades próprias ao campo do viés inconsciente de género e suas implicações danosas para a edificação de uma Academia verdadeiramente pautada em princípios meritocráticos.

A segunda parte do volume, composta por cinco capítulos (10 a 14), pretende desafiar a perpetuação das desigualdades de género na esfera académica e na ordem social mais ampla. Estes capítulos apresentam mecanismos para interrogar e abordar criticamente tais desigualdades, vislumbrando as possibilidades de construção de instituições sensíveis ao género. No capítulo 10, Bailey e Drew discutem a transformação da gestão das instituições como meio de promoção da igualdade de género nas Universidades. As autoras apresentam e refletem sobre um modelo para transformação institucional (SAGE Change Management Model), que foi elaborado para facilitar a implementação de planos de igualdade de género em diversas instituições de ensino superior europeias. Andrew Power discorre, no capítulo 11, sobre estilos alternativos de liderança académica, refletindo sobre aqueles mais adequados para o combate às assimetrias de género. O papel central desempenhado pelo financiamento científico na promoção da igualdade de género é explorado por Annie Doona no capítulo 12. A autora recorre a entrevistas com líderes de agências irlandesas de fomento à investigação científica para discutir as possibilidades e potencialidades de mobilização do financiamento científico tanto como instrumento de sanção (para penalizar instituições que não cumprem com metas de igualdade de género pré-estabelecidas) quanto de recompensa. No capítulo 13, Liisa Husu apresenta uma espécie de complemento às temáticas abordadas anteriormente no volume. Sem reduzir a importância das discussões sobre as formas mais visíveis de assimetrias de género que marcam a Academia, a autora chama a atenção para fenómenos subtis de discriminação que fazem parte do quotidiano das instituições científicas e não são detetados por indicadores tradicionais. Nesse sentido, Husu sublinha o potencial heurístico da noção de “não-evento” como ferramenta para visibilização das dinâmicas micropolíticas de discriminação que permeiam as vivências de académicas e caracterizam obstáculos quase impercetíveis à construção de uma Universidade sensível ao género. Por fim, o capítulo 14, da autoria de Bencivenga e Drew, sintetiza as contribuições dos diversos capítulos anteriores e reforça a posição de que a construção de instituições de ensino superior sensíveis ao género implica uma mudança cultural paradigmática e, por conseguinte, exige dos diversos atores que compõem as comunidades científicas esforços de transformação profunda em múltiplos níveis.

Em conjunto, os capítulos que compõem o volume desenham um quadro abrangente e atual da (des)igualdade de género na Academia europeia. Uma importante limitação da obra, todavia, decorre exatamente do recorte geográfico (algo estreito) das suas análises. Como reconhecem Bencivenga e Drew na conclusão do capítulo final, “gender equality and gender-sensitivity are not fixed concepts but depend on context, previous experience, cultural and social traditions” (Bencivenga e Drew 2021, 181). Esforços que buscam edificar uma Universidade sensível ao género devem ter em mente os limites à generalização ou transposição “mecânica”, para outros contextos sociogeográficos, de análises, conceitos e medidas formulados com base exclusivamente em experiências próprias ao contexto académico e científico de países europeus centrais. De facto, muitas das contribuições apresentadas pelas/os autoras/es, em especial nos capítulos que compõem o momento mais propositivo do livro, podem mostrar-se como de difícil operacionalização em outros espaços sociogeográficos (nomeadamente, no Sul Global e em países europeus periféricos), marcados por particularidades históricas, políticas, económicas e culturais produtoras de desafios diferenciados à igualdade de género na Academia. Esta advertência, no entanto, em nada retira ou reduz os méritos substanciais do livro; antes, lembra-nos da importância e atualidade de uma das principais lições das epistemologias feministas - o caráter localizado e parcial do conhecimento científico (Haraway 1988).

De maneira teoricamente consistente e pautada em sólida base empírica, a obra cumpre em demonstrar que, apesar dos importantes avanços recentes, as assimetrias de género continuam a permear as dinâmicas internas às instituições académicas. Dessa forma, na contramão de discursos largamente difundidos na atualidade, caracterizados por uma celebração acrítica, empiricamente injustificada e politicamente perniciosa de uma imaginada igualdade já conquistada na Academia, o livro convida-nos a reconhecer que ainda há um longo caminho a percorrer em direção à Universidade sensível ao género.

6O fenômeno glass ceiling refere-se à presença de barreiras invisíveis que impedem a ascensão de mulheres às posições de topo na carreira (Cotter et al. 2001). O fenómeno sticky floor, por sua vez, encontra-se no extremo oposto das estruturas hierárquicas, referindo-se aos diversos fatores que mantêm as mulheres nos escalões mais baixos das hierarquias organizacionais (Carnes, Morrissey e Geller 2008).

Referências bibliográficas

Acker, Joan. 1990. “Hierarchies, Bodies, and Jobs: A Theory of Gendered Organizations.” Gender & Society 4(1): 139-158. [ Links ]

Bencivenga, Rita, e Eileen Drew. 2021. “Towards a gender-sensitive university.” In The Gender-Sensitive University. A Contradiction in Terms?, organizado por Eileen Drew, e Siobhán Canavan, 177-182. London: Routledge. [ Links ]

Carnes, Molly, Claudia Morrissey, e Stacie Geller. 2008. “Women's Health and Women's Leadership in Academic Medicine: Hitting the Same Glass Ceiling?” Journal of Women's Health 17(9): 1453-1462. DOI: http://doi.org/10.1089/jwh.2007.0688Links ]

Cotter, David et al. 2001. “The glass ceiling effect.” Social Forces 80(2): 655-681. DOI: https://doi.org/10.1353/sof.2001.0091Links ]

Haraway, Donna. 1988. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective.” Feminist Studies 14(3): 575-599. [ Links ]

5

Recensão realizada no âmbito do projeto “ENGENDER: Integração dos Estudos de Género nos curricula e práticas pedagógicas no ensino público universitário em Portugal”, financiado pela FCT (PTDC/SOC-ASO/7173/2020).

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