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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.15 

Recensões

Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país. Igualdades que Abril abriu, de Ana Cristina Pereira. Lisboa: Bertrand Editora, 2022, 263 pp.

1Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e Centro de Psicologia da Universidade do Porto, Porto, Portugal


Ana Cristina Pereira (ACP) é jornalista do Público e lançou, no início de 2022, o livro Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país. Igualdades que Abril abriu. É autora de vários livros (e.g., Meninos de ninguém. O caso Gisberta e outras histórias, Ulisseia, 2009; Viagens Brancas, Arcádia, 2011) e, enquanto jornalista, tem escrito sobre temas, pessoas e grupos que são excluídos, oprimidos, estigmatizados. Com os seus trabalhos, ACP tem dado centralidade a quem é esquecido, negligenciado, rejeitado, a quem, muitas vezes, de outra forma, não tem voz. E é longa a lista destas pessoas ou grupos: os/as cuidadores/as informais, os/as menores institucionalizados, as pessoas com algum tipo de diversidade, as pessoas em situação de sem abrigo, os/as ciganos/as, os/as migrantes, os/as trabalhadores/as do sexo; e também extenso o rol de temas que ACP trata e que urge evidenciar: os direitos laborais, as desigualdade de género, as prisões, a violência doméstica, a pobreza, a saúde mental, o assédio sexual, o bullying, o ativismo climático, o abuso sexual, ….

Como diz a autora logo no início do seu livro, “O jornalismo é um lugar privilegiado para observar o mundo. Tenho tentado compreendê-lo pela perspetiva dos mais vulneráveis, os de baixo, os da margem” (p. 23). É isso mesmo que ACP nos dá, essa possibilidade de conhecer mundos que são distantes e que, de outra forma, só conheceríamos através de estereótipos.

Neste livro, a autora, que é madeirense, conta as histórias de 23 mulheres que vivem ou são originárias da Ilha da Madeira tomando-as como analisadores da história do país e das desigualdades de género. O livro, que em parte se apoia em trabalhos de natureza jornalística e para o qual ACP entrevistou mais de 100 pessoas, tem uma estrutura com 25 capítulos mais um posfácio da Sofia Aboim (socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa).

Há dois capítulos, um no início e um no fim, que fazem uma contextualização do livro e do seu tema central. Os restantes oferecem-nos narrativas individuais e familiares de mulheres, de gerações de mulheres, entrecortadas com aspetos históricos, políticos, sociais - desde a história da descoberta e povoação da ilha à transição para a democracia, dos problemas da agricultura de monocultura da Madeira à imigração para a Venezuela, da importância dos bordados à sindicalização deste setor de molde a conferir melhores condições e mais direitos às mulheres que aí trabalham. O livro é todo assim: articula as estórias individuais das mulheres com a história coletiva, os testemunhos subjetivos com os dados de estudos de diversas áreas. E, por isto, também é tão complexo e intrincado e importante. Porque não se limita as contar as estórias pessoais deste conjunto de mulheres por muito interessantes que sejam, mas fá-lo enquadrando essas histórias. Nós não somos independentes dos contextos histórico-temporal e cultural em que nos movemos e é a isso que ACP dá enfâse.

À medida que se avança na sua leitura, nas suas histórias de mulheres, o livro evidencia uma linha temporal, uma cronologia que acompanha a evolução social e económica de um país e de uma ilha que estão, agora, mais desenvolvidos nos costumes e na educação formal, que oferecem mais oportunidades e maior igualdade. A narrativa atravessa a história, as personagens atravessam o tempo. Melhoram as condições de vida, mudam as relações entre pais/mães e filhos/as, as mulheres têm mais acesso à educação, são independentes, a experimentação sexual feminina é (mais) normalizada, as tarefas domésticas são divididas com os maridos, o ensino foi democratizado e as mulheres estão no mercado de trabalho de forma generalizada, mas as desigualdades persistem, na Ilha, como no resto do mundo.

Um dos exemplos que o livro nos oferece é o do cuidar. As mulheres continuam a ser cuidadoras. “Sempre cuidaram dos outros. Como se fosse o seu destino” (p. 149), dentro e fora de casa, diz ACP. E a “prestação de cuidados não pagos ainda é assaz encarada como uma responsabilidade especial das mulheres” (p. 151). Há, sim, desigualdades que persistem mesmo que atenuadas. Sofia Caldeira, uma das mulheres do livro, ao ver a sua avó a cuidar de si e dos restantes netos, dizia que queria ser avó quando fosse grande, pois pensava que a avó era paga para estar com os netos em casa. Aqui, dá-se realce ao trabalho não remunerado das mulheres.

É sobre mulheres, mas também sobre a ilha da Madeira: a sua história, as suas tradições, a sua geografia, a sua gastronomia, a agricultura; cruza as estórias individuais com a história da Madeira e do país; cruza camadas individuais com camadas sociais e políticas. Para enquadrar o problema da desigualdade salarial, por exemplo, a propósito das bordadeiras e da história de Guida, ACP recua até ao século XIX, passa pelo Estado Novo e chega até ao 1.º de maio de 1975 e à luta do Sindicato Livre dos Trabalhadores da Indústria de Bordados liderado por esta mulher durante 26 anos.

Outra camada que o livro nos apresenta é a da resistência: a condição de género que impedia as mulheres de ir à escola, de ter emprego, de serem independentes, é contrariada por mulheres com força e determinação para lutarem contra o seu destino. E são vários os exemplos de mulheres que conseguiram fugir a essa condição, sendo resistentes e resilientes, como Josefina Mendonça, cuja necessidade de sobrevivência a impedia de progredir na escola além do 4.º ano (“Tu tens que ir buscar lenha, tu tens de ir apanhar erva ao gado, tu tens de ir lavar roupa para a ribeira, tu tens de ajudar plantar batatas, tu tens de fazer o comer…” [p. 98]), mas que, contra a vontade do pai e com a conivência da mãe, a trabalhar de dia e a estudar de noite, concluiu o 12.º ano. O livro é feito de mulheres normais, comuns, mas que têm algo de especial e que, como quaisquer outras, sabem e sentem o que são as desigualdades de género.

Um dos capítulos que mais impressiona é o primeiro, intitulado “A revolução dentro de casa” (pp. 15-26), cuja personagem central é Maria Angelina (n. 1944), a mãe da autora. Este capítulo começa com uma descrição de uma ceia de Natal em que ACP vê, “sobre a melhor toalha, uma metáfora da desigualdade de género. No prato do meu pai, uma coxa de galo (…). No prato da minha mãe, um pescoço, uma asa” (p. 15). E, a partir daí, reflete sobre as desigualdades, guia-nos em conversas em que a mãe, que só fez a 3.ª classe e não sabe o que é uma feminista, diz que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres com “unhas e dentes” (p. 17). Nesse capítulo, ACP (n. 1975) traça a história de várias gerações, desde a avó (n. 1913) até à sobrinha (n. 2015), refletindo sobre o que mudou e o que se mantém e tentando projetar o futuro da sobrinha. Este capítulo é comovente e corajoso (por expor um pouco da sua história pessoal), mas também reflexivo, pedagógico e informativo.

Outro dos aspetos importantes do livro reside na sua abordagem interseccional. A interseccionalidade (Crenshaw 1989) é um quadro de leitura que tem em conta os diversos aspetos identitários de uma pessoa para analisar as discriminações e os privilégios a que está sujeita. Entre categorias de vantagem e de desvantagem estão o género, a classe, o sexo, a raça, a etnia, a sexualidade, a deficiência, a orientação sexual e a identidade e expressão de género. Estas categorias, que se intersectam e se sobrepõem, tanto podem ser opressoras, como empoderadoras. Neste livro, também há mulheres originárias de famílias com conforto económico, que fazem mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos, que estudam no estrangeiro, que são linguistas, investigadoras e diretoras regionais de organismos estatais, mas que, embora com mais privilégio, sentem as desigualdades de género e os fatores stressores associados ao facto de serem mulheres, tais como a pressão para ter filhos e ser mãe.

O Portugal de hoje não é o mesmo do século XIX ou do Estado Novo: os direitos das mulheres estão garantidos - as mulheres já não precisam de autorização dos progenitores ou dos cônjuges para se ausentarem do país; fazer um aborto já não é crime sob certas condições; a violência doméstica é crime público; os direitos das pessoas LGBTI+ estão mais assegurados por leis como a da identidade de género ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Há, tal como o subtítulo deste livro nos diz, “muitas liberdades que abril abriu”.

É um livro sobre desigualdade de género, é um livro feminista, um livro que procura homenagear as mulheres que fazem a sua resistência diária. Estamos agora melhor do que antes e esta obra demonstra-o claramente. A igualdade de género plena ainda está longe, mas já percorremos um longo caminho até aqui.

Se Maria Lamas (1948), nos anos 40 do século XX, traçou um retrato das mulheres deste país, ACP traça uma evolução das mulheres da Madeira e deste país nos últimos 80 anos. E embora não baste “adicionar um novo elenco de heroínas ao velho elenco de heróis” para incluir as mulheres na história, como diz ACP a citar a historiadora Bonnie Smith, há que adotar uma perspetiva de género; é importante que se dê visibilidade às mulheres, que se lhes dê voz e protagonismo. É isso que faz ACP neste livro, e faz muito bem. A nossa história, a história das mulheres e do feminismo, tem agora um novo contributo para se tornar mais rica.

Referências bibliográficas

Crenshaw, Kimberlé. 1989. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics.” University of Chicago Legal Forum 1989(1): 139-167. [ Links ]

Lamas, Maria. 1948. As Mulheres do Meu País. Lisboa: Actuália Lda. [ Links ]

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