SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número46Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo, de bell hooks. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2018, 320 pp. índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.17 

Recensões

Todos, presentes! Em Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo. Tradução de Miguel Romeira. Amadora: Elsinore, 2020, 480 pp.

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro


Quando em 2000 Zadie Smith, até então uma jovem escritora desconhecida, publica White Teeth, as vozes da crítica literária foram unânimes em considerar este romance uma excelente estreia no que dizia respeito à reflexão sobre a pós-colonialidade britânica. Com rigor, apoiando-me na minha memória enquanto leitora e aluna de doutoramento recentemente chegada ao Reino Unido, senti que o lugar do pensamento em torno do pós-colonial tinha largado com coragem os livros, os ensaios, tinha lançado a nossa atenção para o quotidiano, as experiências de vida com que se depararam milhares de imigrantes vindos/as quer das antigas colónias britânicas, quer de outros lugares que o desmoronamento dos impérios provocou, por um lado, e estimulou, por outro, convidando-os a embarcar num imaginário de plena integração, inclusão e de uma cidadania que, teoricamente, celebrava o respeito pela diversidade cultural (Meneses 2021; Ribeiro e Rodrigues 2022). Perceber a complexidade e as dificuldades inerentes a estes processos de construção de novas vidas foi, sem sombra de dúvida, um enorme desafio que as literaturas ditas pós-coloniais conseguiram alcançar, desmontando e desconstruindo a ilusão de uma versão de uma interação fácil e amistosa entre os europeus e os chamados sujeitos pós-coloniais. A literatura tem em si um dever de memória a partir do qual conseguimos compreender o quanto as políticas de multiculturalidade e de fraternidade entre povos falhou redondamente perante a sobrevivência de antigas lógicas de colonialidade ocidentais ainda remanescentes nas várias estruturais sociais, culturais e económicas na Europa (Khan, Can e Machado 2021; El-Enany 2020).

Em 1990, Hanif Kureishi, com The Buddha of Suburbia,8 romance irreverente, sarcástico, ousado e acutilante, lança o olhar sobre os problemas de estigmatização racial, cultural e homofóbica no espaço da multiculturalidade britânica. Teríamos de esperar vinte e nove anos para que, em 2019, Bernardine Evaristo fosse a primeira autora anglo-nigeriana a conquistar um dos mais importantes prémios literários, o Man Booker Prize, com o seu Girl, Woman, Other. Traduzido para a língua portuguesa e publicado em 2020 pela Elsinore, este livro é o grito aberto que Hanif Kureishi procurou anunciar no seu Buda dos Subúrbios.

O romance de Evaristo é um manual histórico, sociológico e profundamente humano das escolhas, dos dramas, dos desafios e das expectativas de quem não se limita, apenas, a pensar o sexo, a sexualidade, as opções de género como lugares-comuns que caem numa espécie de um estar na moda. Entrelaçando as vidas de várias mulheres, diferentes na sua origem social, geográfica, cultural e histórica, Rapariga, Mulher, Outra expõe de uma forma inteligente, sensível e inteira a relevância dos percursos de vida e de identidade e como estes se cruzam sob diferentes formas com outros modos de ser e de estar no mundo. Com minúcia e de uma forma airosa, o amor entre mulheres e entre homens é literariamente refletido de uma forma natural, como uma experiência humana tão nobre e completa como é o amor e as relações entre os outros da gramática heterossexual. Apoiada numa escrita feita de uma perspicácia humorística e criativa, as personagens maioritariamente femininas transpiram, no plano das suas vivências, paixões, fugas, conquistas, derrotas, amuos, viagens, processos de integração, de exclusão, de marginalização social e familiar, toda uma arqueologia de um saber dedicado ao legado do pensamento não apenas pós-colonial. Esta é a viragem do paradigma que este livro sinaliza: o que somos e o que sentimos quando já não basta falarmos de pós-colonialidade?

A destreza de Bernardine Evaristo vai a par de um conhecimento clarividente sobre o modo como as gerações e as estórias dentro do corpo de uma outra História (Ribeiro 2021) se interpelam, escrevendo nas suas relações perguntas, incentivando respostas que não são apenas de índole política e retórica. Bem pelo contrário, é através de um diálogo ativo de cidadania, de memória, de responsabilidade ética, cívica e histórica entre gerações, que essas estórias completam e desafiam a hegemonia:

então o que diz a bell hooks?, ripostou ela, a fazer um rápido scroll pela bibliografia aconselhada para a cadeira de Questões de Género, Raça e Classe Social

ou Kwame Anthony Appiah, Judith Butler, Aimé Césaire, Angela Davis, Simone de Beauvoir, Frantz Fanon, Julia Kristeva, Audre Lorde, Edward Said, Gayatri Spivak, Gloria Steinem, V.Y. Mudimbe e Cornel West, já para não falar nos outros todos?

o pai ficou calado

por aquela não esperava ele, que o discípulo superasse o mestre [...]

o que eu quero dizer é isto: como raio podes ser professor de Vida Moderna quando todos os teus referenciais são masculinos - e brancos, diga-se de passagem (aqui, refreou-se e não chegou a acrescentar muito embora tu não sejas). (pp. 56-57)

Podemos chamar a esta obra um romance da reparação histórica? Sem forçar o debate em torno desta questão, importa dizer que Bernardine Evaristo transfere a sua contribuição para espaços em branco, aqueles lugares onde o silêncio, a solidão e a cegueira histórica predominam, demonstrando, sem qualquer laivo analítico, a importância da interseccionalidade para um mapeamento mais amplo, detalhado e completo para, hoje, percebermos os processos de memória, de consciência histórica, da partilha de memórias entre gerações, da elevação da dignidade humana, da urgência de um redimensionamento da nossa perceção e representação do Outro dentro de tantos outros também existentes em cada um de nós. Sem desativar a importância dos mecanismos de racialização, de ostracização sob vários moldes, Rapariga, Mulher, Outra dá um passo em frente, trazendo para o seu património vozes, narrativas, energias novas, com a serenidade e a sapiência de alguém que sabe ver para além do presente e sentir o pulsar de que “é uma lástima que, no Reino Unido, as pessoas de cor continuem a ser definidas precisamente pela sua cor, outros predicados não se firmaram” (p. 431).

8A tradução portuguesa (de José Vieira de Lima) foi publicada em 2015 com o título O Buda dos Subúrbios (Lisboa: Relógio D’Água).

Referências bibliográficas

El-Enany, Nadine. 2020. Bordering Britain. Law, race and empire. Manchester: Manchester University Press. [ Links ]

Evaristo, Bernardine. 2020. Rapariga, Mulher, Outra. Tradução de Miguel Romeira. Amadora: Elsinore. [ Links ]

Khan, Sheila, Nazir Can, e Helena Machado. 2021. Racism and Racial Surveillance. Modernity Matters. London: Routledge. [ Links ]

Kureishi, Hanif. 1990. The Buddha of Suburbia. London: Faber and Faber. [ Links ]

Meneses, Paula. 2021. “Desafios à descolonização epistêmica: práticas, contextos e lutas para além das fraturas abissais.” Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCa 10(3): 1067-1097. DOI: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.10Links ]

Ribeiro, António Sousa (Org.). 2021. A cena da pós-memória. O presente do passado na Europa pós-colonial. Porto: Afrontamento. [ Links ]

Ribeiro, Margarida Calafate, e Fátima da Cruz Rodrigues. 2022. Des-Cobrir a Europa. Filhos de Impérios e pós-memórias europeias. Porto: Afrontamento. [ Links ]

Smith, Zadie. 2000. White Teeth. London: Hamish Hamilton. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.