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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.47 Lisboa June 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.47.01 

Editorial

EDITORIAL

*Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Portugal/ Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal


O quadragésimo sétimo número da ex æquo traz como temática central “Pós-memórias no feminino. Vozes e experiências na gramática do mundo”, cuja organização esteve a cargo de três colegas especialistas em Estudos Literários e Culturais, uma área que contava até agora com poucos contributos na revista. Sheila Khan, Susana Pimenta e Sandra Sousa, com filiação em diferentes universidades, ajudaram-nos a colmatar este défice, ao proporem esta temática para o dossier deste número.

As palavras-chave do conjunto de textos que compõem o dossier indicam os caminhos prosseguidos e sugeridos para a sua leitura. Entre elas encontramos recorrentemente pós-colonialismo, arquivo, reparação, subalternas, periferias, invisibilidade, neocolonialismo, resistência, trauma, testemunho, escrita reparadora, narrativas de escravos, escritoras afro-americanas, violência sexual, genocídio, literatura testemunhal, diário, autoria feminina, filme etnográfico, artivismo, arte contemporânea, feminicídio, feminismo, envelhecimento, condição feminina, narrativa portuguesa contemporânea. Elas sublinham uma ideia principal - a de que a violência e a opressão são vivenciadas sob a lógica das relações de género, por isso devem ser representadas e materializadas em formatos de memórias culturais de opressão que só podem ser tomadas como formas de 'reparação simbólica', para quem sofreu injustiças, se aquele quadro de relações delas fizer parte integrante. Sem esta ênfase, correríamos o risco de incluir propostas de estudos sem uma clara perspetiva de género, e com ênfases mais centradas nas questões dos racismos, colonialismos, imperialismos, totalitarismos e genocídios.

Assim, o conjunto de textos incluídos neste dossier sobre as “Pós-memórias no feminino” revela-se no esforço de nos trazer uma contra-memória feminista de tornar visível o invisível, de expor o viés de género das narrativas hegemónicas, isto é, de subverter a política da memória, incorporada nas leituras lineares do passado por quem nele se revê como “vencedor”. Fortemente inspirada nos trabalhos de Foucault e de Deleuze sobre a escrita da história, a contra-memória feminista realça as diferenças entre as consciências coletivas. Estes textos realçam o modo como as mulheres tendem a ser marginalizadas nas memórias que sustentam a formação das identidades e dos direitos face à comunidade, tal como originalmente proposto na introdução ao número de 2002 da Signs (28-1), dedicado ao tema Feminism and Cultural Memory, por Marianne Hirsch e Valerie Smith, um texto marcante que abriu toda uma agenda de investigação sobre as narrativas (romances, contos, peças de teatro, performances artísticas ou outras formas de expressão) por mulheres, nelas visibilizando as experiências femininas. A concetualização da pós-memória, segundo estas autoras, baseia-se na ideia de que a memória de acontecimentos traumáticos pode ser revelada por quem não viveu o passado doloroso em primeira mão através de uma estrutura de transmissão inter- ou transgeracional de conhecimentos e de experiências traumáticas.

No texto introdutório do dossier, da autoria das três organizadoras convidadas, é realçado o propósito de “dar continuidade a esses esforços de diálogo entre género e pós-memória que surgiram há duas décadas” (p. 12).

Nem só de memórias se ocupam, no entanto, os estudos aqui veiculados. É de destacar os dois primeiros textos que abrem a secção de Estudos e Ensaios, que nos trazem as vozes de mulheres que não desejam ser mães e, por isso, sofrem pressões e representações que as ferem na sua dignidade. Não quererem ser mães torna-se um problema multidimensional para estas mulheres, pela falta de compreensão e empatia de que são alvo, por parte da família, das amigas com outras opções, do contexto em geral em que se movem. No texto de Carolina Rojas-Madrigal, com o título “Entre la voluntad y el castigo: agresiones contra mujeres que deciden no ser madres”, a autora apresenta-nos uma análise que, aliando a etnografia digital e 16 entrevistas biográfico-narrativas com mulheres que decidiram não ter filhos/as, evidencia as pressões sociais e agressões sentidas pelas suas escolhas em termos de autonomia reprodutiva. Com variantes em função da idade, origem geográfica ou religião praticada, o mandato heteropatriarcal da maternidade exerce-se sem contemplações em diversas modalidades de castigo social, seja a de ameaças para o futuro, infantilização ou desvalorização. Por seu turno, Yunuen Ysela Mandujano-Salazar analisa o modo como essas experiências são retratadas na ficção no estudo sobre “La representación de las mujeres que no desean ser madres en comedias románticas mexicanas: ¿Visibilización o invalidación de la agencia femenina?”. A análise textual interpretativa de dois filmes mexicanos, que têm como personagem central uma mulher que não quer ser mãe, destaca a mensagem principal veiculada - a de que a rejeição da maternidade é afinal uma circunstância que, com a ajuda de um homem, pode ser superada, minimizando dessa maneira a agência das mulheres e reforçando a romantização da maternidade.

Estes dois estudos, cada um à sua maneira, constituem elementos de atualização da centralidade que a maternidade continua a ter na vida das mulheres - ou porque são mães ou porque não são. A maternidade parece continuar a ser a condição ‘prático-inerte’ que transforma as mulheres em série, no sentido que lhe foi conferido por Iris Marion Young, ao retomar a distinção original entre série e grupo social de Sarte.

Em sentido oposto, a condição de mãe é o critério de elegibilidade das mulheres participantes no estudo apresentado por Marina Dias de Faria e Sílvia Portugal no texto que intitularam “Migração, gênero e maternidade: narrativas autobiográficas de mulheres que emigraram do Brasil” e em que as autoras dão conta da centralidade dos/as filhos/as nos processos de migração feminina. Frequentemente, a principal motivação para a migração é facultar uma vida, uma educação, um futuro melhor para a sua descendência.

A fechar esta secção da ex æquo, encontramos um texto de revisão em torno de análises sobre o impacto do #MeToo, suscitada pela leitura de The New Sex Wars de Brenda Cossman. É da autoria de Ana Oliveira e tem o título “Twitter, chá e biscoitos: recensão ensaística de The New Sex Wars de Brenda Cossman”. Ao fazer a apresentação da obra, este texto problematiza-a do ponto de vista substantivo, questionando as posições de Brenda Cossman sobre a regulação normativa da sexualidade, e epistemológico, confrontando-a com o seu americocentrismo e a sua autorreferencialidade.

Na secção das Recensões, encontramos ainda leituras interessantes sobre obras a merecerem atenção, pelos mais variados motivos. Juliana Inez Luiz de Souza chama a atenção para a importante obra organizada por Mieke Verloo sobre Varieties of Opposition to Gender Equality in Europe, que beneficia da larga experiência da organizadora em projetos de estudo e de intervenção de promoção da igualdade de género a nível europeu desde há duas décadas. À medida que estas se aprofundam, enfrentam questionamento e oposição, em face de um contexto em que se disseminam movimentos e políticas conservadoras e de retrocesso. Uma sugestão de leitura muito importante nos tempos que correm.

As duas recensões seguintes sintonizam-se com a temática do dossier sobre “Pós-memórias no feminino”. Sandra Sousa sublinha a importância da obra Between Starshine and Clay: Conversations from the African Diaspora, de Sarah Ladipo Manyika, como ilustração de como o biográfico pode ser usado ao nível da descolonização da academia, e Vítor de Sousa propõe que leiamos Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo, como a demonstração do exercício da liberdade. Em sintonia também com a temática do dossier está a chamada de atenção de Héloïse Elisabeth Ducatteau para as Modalidades de memoria y archivos afectivos: Cine de mujeres en Centroamérica, de Ileana Rodríguez.

Por fim, Susana Ramalho Marques alerta-nos para um bom exemplo de visibilização do trabalho desenvolvido em programas de pós-graduação. Trata-se de Families, Children and Youth in Global Contexts, organizado por Maria das Dores Guerreiro, Justus Twesigye, Ingrid Höjer, Staffan Höjer e Elizabeth Enoksen, a partir das dissertações elaboradas por estudantes do Mestrado MFamily (Erasmus Mundus in Social Work with Families and Children).

Penso que concordarão que a ex æquo conseguiu mais uma vez trazer-nos boas leituras.

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