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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.47 Lisboa jun. 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.47.08 

Dossier

O passado como sonho em vigília: literatura testemunhal feminina

The Past as a Vigilant Dream: Female Testimonial Literature

Le passé comme rêve éveillé : la littérature féminine de témoignage

*Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos da Linguagem. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto-MG. Endereço postal: Rua Barão de Ouro Preto, 29 Antônio Dias /Ouro Preto-MG cep 35400-000. Endereço eletrônico: monica.gama@ufop.edu.br


Resumo

Este artigo propõe o estudo de três testemunhos da Shoah que foram reunidos em uma recente obra literária brasileira, O que os cegos estão sonhando?, por Noemi Jaffe (2012). O livro tem três seções: o diário de uma sobrevivente da Shoah, o relato de sua filha e um ensaio da neta da sobrevivente, discutindo a linha sucessória marcada pelo horror da Shoah. Analisa-se as diferentes estruturas narrativas que utilizam para organizar os relatos, bem como o seu encadeamento em uma linhagem feminina, matriarcal, apostando na ligação profunda familiar para fazer perdurar uma memória coletiva, histórica, o que inscreve a obra na literatura contemporânea no que ela tem de “intempestiva” (Agamben 2009).

Palavras-chave: Literatura testemunhal; diário; Noemi Jaffe; pós-memória

Abstract

This article proposes the study of three testimonies from the Shoah that were gathered in a recent Brazilian literary work, O que os cegos estão sonhando?, by Noemi Jaffe (2012). The book has three sections: the diary of a survivor of the Shoah, the narrative of her daughter, and an essay written by the survivor’s granddaughter, discussing the succession line scarred by the Shoah horror. The article examines the different narrative structures that they use to organize the stories, and analyzes how they are interlinked in a female, matriarchal lineage, investing on the deep family connection to make a collective, historical memory endure, which inscribes this work in the “untimeliness” of contemporary literature (Agamben 2009).

Keywords: Testimonial literature; diary; Noemi Jaffe; postmemory

Résumé

Cet article propose l'étude de trois témoignages de la Shoah réunis dans une œuvre littéraire récente, O que os cegos estão sonhando?, écrit par Noemi Jaffe (2012). Le livre a trois parties: le journal intime d'une rescapée de la Shoah, le récit de sa fille et un essai de la petite-fille de la rescapée, discutant la ligne de succession marquée par l'horreur de la Shoah. En analysant les différentes structures narratives qu’elles utilisent pour organiser les récits, l'article analyse leur articulation dans une lignée féminine, matriarcale, pariant sur le lien familial profond pour faire perdurer une mémoire collective, historique, ce qui inscrit l'œuvre dans la « inactualité » de la littérature contemporaine (Agamben 2009).

Mots clés: Littérature de témoignage; journal intime; Noemi Jaffe; post-mémoire

Introdução

O fato de o nazismo ter tido sua singularidade como educação de e para a extinção de humanos não o torna pior do que a bomba ou outros genocídios históricos, mas sua especificidade exige que todos prestem uma atenção diferente aos seus significados. [...] Faltam, no máximo, vinte anos para que os sobreviventes desapareçam, morram. Quando isso acontecer, outra etapa desta história vai começar e é preciso preparar-se para ela. O que serão os campos de concentração daqui a cinquenta anos? Um nome? A história deverá preparar-se para isso? A palavra Auschwitz será como a palavra Troia, a palavra Peloponeso, a palavra Manchúria?

Noemi Jaffe, O que os cegos estão sonhando? (2012, 186, grifos da autora)

O dever de lembrar impõe uma dimensão coletiva para que a Shoah não se repita. Se é inevitável que o caminho da História transforme Auschwitz em apenas uma palavra, Noemi Jaffe se pergunta se deveríamos já contar com isso e banalizar antes que o tempo o faça. A essa questão, responde assertivamente que não, pois não somos, no presente, os sujeitos do futuro:

[A]os vivos de agora cabe somente sermos o que somos agora. Falíveis em nossa necessidade de repetir e repetir, mas genuínos na necessidade de querer contar. Não somos deuses, nem antecipadores realistas do tempo. Mas formigas atrofiadas e perdidas, querendo encontrar o caminho de volta para casa. (Jaffe 2012, 186-7)

Diversas propostas literárias foram desenvolvidas a partir dessa imposição ética e vemos um esforço das gerações pós-Auschwitz para cumprir o papel do testemunho e revelar o que não foi dito, pois não pode encontrar palavras para ser dito. No Brasil, há um livro que desempenha formidavelmente essa tarefa coletiva. Trata-se de O que os cegos estão sonhando?, de Noemi Jaffe (2012)1.

O livro reúne a narrativa de três mulheres em três seções: “O diário de Lili Jaffe”, escrita íntima de uma sobrevivente de dois campos de concentração (que é a mãe de Noemi Jaffe); “O que os cegos estão sonhando?”, com as lembranças e análises de Noemi em relação ao texto da mãe, Lili Jaffe; e “Aqui, lá”, um breve ensaio da neta da sobrevivente (Leda Cartum, filha de Noemi), com suas impressões da visita a Auschwitz, momento em que avalia seu legado, enquanto herdeira do trauma, em terceira geração, da Shoah.

Essa reunião permite, portanto, três testemunhos da Shoah. No texto de apresentação do livro, Jeanne Marie Gagnebin cria uma imagem potente que bem sintetiza a obra:

Em oposição a muitas análises patéticas dos testemunhos de sobreviventes, os textos de Noemi e Leda não enveredam nem pela compaixão nem pela indignação barulhenta. Não fazem da tragédia - o real dos campos e do passado de Lili - nenhum drama vistoso que chamaria a atenção para os nobres sentimentos do comentador. Perguntam com uma honestidade assombrosa: “Como é ser depois?”. E constatam: “depois engasga”. (Gagnebin 2012, s/p)

Diário escrito depois do evento, narrativa autobiográfica centrada no outro (na mãe) e escrita em terceira pessoa, ensaio sobre a simultaneidade e a relação indireta com o sofrimento que possibilita a existência da terceira geração. São de fato três performances desse engasgo. Leda, a neta de Lili, sintetiza o dilema dos/as herdeiros/as do trauma:

É difícil dimensionar o tamanho do meu passado e a influência fundamental das coisas que aconteceram antes de eu nascer sobre aquilo que sou hoje. O passado é uma sombra que acumulamos: uma sombra que não tem peso real, mas que ainda assim desenha uma curva real nas nossas costas. [...] é ainda mais aflitivo descobrir que há um passado anterior ao meu nascimento, que de alguma forma determina a minha pessoa. (Jaffe 2012, 234)

O passado como sombra que se acumula e que tem um peso. Ser mulher e mãe, ser filha e neta, são configurações que somam complexidades a essa sombra pesada.

O ponto de partida de O que os cegos estão sonhando? é o relato de Lili Jaffe2. Ainda criança, presa pelos nazistas por um ano nos campos de Auschwitz e de Bergen-Belsen, é libertada pela Cruz Vermelha em abril de 1945, e, durante uma quarentena na Suécia, decide escrever um diário. Não se trata de um texto sobre sua percepção do presente em relação ao horror que acabara de viver: Lili inicia seu diário como se estivesse no dia anterior ao que foi levada com a família para Auschwitz, narrando sua experiência no campo de concentração e, posteriormente, sua libertação e o tempo que passa na Suécia.

A reunião dos três relatos de O que os cegos estão sonhando? pode ser compreendida como uma aposta na recepção, uma aposta de que haverá alguém que não se levanta ao ouvir sobre o horror em Auschwitz (como no pesadelo de Primo Levi), mas que fica e ouve o relato, acolhendo a dor de quem narra.

Ao ler o diário, Noemi teria perguntado à mãe o porquê do empreendimento: “Quando, no processo de criação deste livro, perguntei a ela por que ela quis tanto escrever, ela me respondeu instantaneamente: ‘Para que você lesse!’”. Esse desejo de ser lida se confirma em algumas decisões de Lili, como veremos adiante, o que se mostra por meio de uma série de outras singularidades.

1. O diário de Lili

Entre as funções do diário, a conservação da memória, fixando a história do/a autor/a no tempo, sob uma organização cronológica, é a primeira em que pensamos ao considerar um texto que testemunha o cotidiano antes, durante e após o aprisionamento em Auschwitz. Escrever um diário pressupõe uma seleção, uma triagem do vivido, a fim de narrá-lo; escrever sobre a vida é ausentar-se da ação para reencontrar-se no relato sobre a experiência. Essa espécie de edição do vivido fica muito evidente na abertura do diário de Lili, pois, sendo um texto escrito depois da libertação, a autora do diário escolhe narrar os eventos como se estivessem acontecendo em seu presente:

Szenta, 25 de abril de 1944

Todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá. Meu pai está sentado no sofá, durante a manhã toda, calado, fitando o nada. Por vezes, olha-nos e fecha os olhos tristes. Minha mãe nos consola: não acredita no mal, porém está arrumando as malas, faz doces e suspira fundo, sem que ninguém possa ver.

Meu irmão e eu observávamos e, sendo duas crianças, saímos para chorar. Ninguém nos conta nada, mas sabemos o que está acontecendo. Sabíamos que no dia seguinte, às oito horas, os alemães viriam nos buscar e nos arrancar de nosso lar. (Jaffe 2012, 13)

Essa simulação do presente é uma escolha ética e estética: libertada um ano depois, essa descrição, do dia anterior ao aprisionamento, constrói uma cena do cotidiano e da dinâmica familiar invadida pelo oficial nazista. Lili chega a simular a dificuldade de escrita em Auschwitz: “Ontem chegamos ao campo C. Como já não escrevo faz um mês, escreverei sobre o passado. No começo, eu passava fome e sofria muito” (Jaffe 2012, 18).

É notável esse desejo de registrar o processo desde o dia de definição do aprisionamento; não durante a retirada da família ou a degradante viagem de trem ou, ainda, a chegada ao campo de concentração, mas o dia anterior. Retornar, pela memória, ao refúgio do lar no momento preciso em que, reunida, a família enfrenta a proximidade da catástrofe, nos dá a dimensão da cena construída por Lili, quando estão todos olhando para o abismo.

A abertura do diário dá o tom de todo o relato: Lili descreve seu cotidiano sem demorar-se na qualificação dos eventos, como se estivesse assistindo a eles. Ainda que haja momentos em que descreve a tristeza, reina em sua narrativa esse ascetismo, como se Lili rejeitasse o diário como um lugar de desabafo da dor e afirmasse-o como espaço de autoconhecimento e resistência. A escrita pode devolver algum equilíbrio ao sujeito à medida que, ao se ver projetado no papel, é criado um corpo simbólico que está protegido - isso porque, ao nos vermos “projetados no papel, podemos nos olhar com distanciamento” (Lejeune 2008, 263). Apelo de leitura posterior, essa escrita é o vestígio de um desejo por sobrevivência.

O presente da escrita é o futuro incerto, improvável, da prisioneira; é nele que ela se reconstrói, retornando a um passado de deslocamento forçado (há um relato extenso de todo o trajeto a pé e de trem até o campo de concentração) e de sobrevivência diária em Auschwitz, para, posteriormente, narrar seu cotidiano após a libertação, sua redescoberta como mulher e até mesmo o reencontro com o olhar amoroso do outro, em um relato vibrante de uma paixão com outro sobrevivente. É no futuro, incerto e improvável para a jovem de abril de 1944, que a sobrevivente se recria e tenta alcançar os eventos e as sensações dos meses de aprisionamento.

Assim, o testemunho de Lili nessas páginas é para o outro, mas é antes para si mesma. Ao figurar uma escrita no presente, desdobra-se em outra - naquela que tem preservada a dignidade de quem pode compor-se na escrita, que pode recolher-se, em um hiato dos eventos do dia, para narrar-se.

Não se confunda essa decisão da escrita de um diário com estilo retroativo com uma fuga da jovem diante do horror que presenciou: a deliberação faz parte de uma ação de ancoragem. Como afirmou Gagnebin, a partir de Benjamin, a “rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente” (Gagnebin 2006, 12). No presente do ato da escrita, Lili precisa do retorno ao passado não só como quem lembra do que ocorreu, mas também como quem pode anotar e recolher-se no registro, revivendo pela anotação. Porém, como veremos nos comentários de sua filha, parece que essa determinação é para agir no presente de forma a libertar-se de tais memórias e não as reviver mais, numa espécie de tentativa de ponto final e apelo de felicidade.

Talvez seja no último mês antes da libertação que temos as notações com mais desespero, como vemos a seguir:

5 de abril de 1945

Não estamos nem vivos nem mortos. De cento e vinte ficamos em trinta. Estamos a cinquenta quilômetros de Bendorf. Estamos perto de Hamburgo, mas não há como viajar daqui para frente. Os aviões nos sobrevoam o tempo todo; os homens nos consolam e dizem que a libertação está próxima. Mas nós não acreditamos. Já tenho dificuldade para falar. Pedimos ao alemão que não nos torture mais; não queremos viver mais; que nos mate. (Jaffe 2012, 38)

Diante do desespero, os guardas prometem matar as crianças às três da tarde, mas voltam contentes às cinco e meia, quando elas já estão de prontidão, esperando que alguém dê fim ao sofrimento, dizendo que vão receber caminhões com pães, os quais só chegam no dia seguinte:

6 de abril

Todos os que não morreram estão dentro do vagão, e não estão bem conscientes. Eu também pareço embriagada; não enxergo; parece que tenho espuma na boca. Ao meio-dia chegaram os caminhões com o pão. [...]

25 de abril

[...] No pavilhão, novamente somos muitas numa cama. Cada uma se ajeitava como podia. Tive sorte: éramos em oito. Tínhamos sorte. (Jaffe 2012, 39-40)

A filha, Noemi Jaffe, vai, na segunda parte do livro, retornar algumas vezes a esses momentos em que a mãe avalia que teve sorte ou que foi salva pelo destino, perguntando-se sobre essa força e perseverança diante do horror. Note-se a passagem do uso verbal presente para o passado justamente nessa avaliação final desses 20 dias de fome e sofrimento: “Tive sorte: éramos em oito. Tínhamos sorte”.

A segunda parte do diário discorre sobre o processo de libertação e a volta para casa. É nesse momento que Lili se apaixona pelo jovem que recebe o diário de presente, quando se despedem. Nessa narrativa após a libertação, vemos Lili se redescobrindo mulher, retomando uma humanidade que foi violentada no campo de concentração e nos períodos de deslocamento forçado. Descrevendo como foram bem tratadas pelos dinamarqueses e suecos, com limpeza, alimentação e carinho, assim como o desconcerto com o novo mundo, o diário, depois de 10 de maio, aborda essa reconstrução de si. Assim, depois de receber o primeiro elogio de um homem, anota:

Rosega, 15 de junho

[...] Sentei sozinha na cama: os dias desfilavam diante de mim. [...]

Para mim, comida e descanso já não são tudo. Tenho dezenove anos. Fazia mais de um ano que não me via no espelho. Como pareço, para que tivesse recebido um elogio? Qual era a aparência daquele homem? Não me lembro. Sei que era alto, sei que não tive coragem de olhar para ele... O que passa por meus pensamentos? Já penso em homens? Bem... é como se conversasse consigo própria. Com os cabelos cortados, pego a minha cabeça, certamente estou feia; ele somente estava brincando (levantei da cama). Olhei no espelho. Tenho corte de cabelo masculino. [...]

Agora já sei qual é o meu aspecto. Pus o espelho de volta. Olhei diante de mim e o que vi? Encabulamento e vergonha (vergonha por quê?). Sentei, porque estava tremendo. Estava justamente pensando nele. O que aconteceria, se alguém me visse? (Jaffe 2012, 55)

O diário registra uma grande mudança na jovem: de não ser vista como um ser humano pelos nazistas a ser bem tratada pelos suecos, em um processo de re-humanização, de se ver e de ser vista por um homem que a elogia, de preocupar-se com o que outros pensam, a partir de sua reação. Quantas alterações em pouco tempo! O diário é um suporte privilegiado para essa auto-observação, permitindo que vejamos como ela pode ver-se na escrita e olhar-se no espelho, o que deixa rastros no modo de narrar-se: muito mais reflexiva, descritiva, apontando angústias e dúvidas quase ausentes anteriormente.

É o que se nota na meditação sobre o que a espera quando chegar em sua cidade natal, provavelmente sem encontrar os pais: “Quem me espera em casa? Vou como cega em direção à casa, mas não sei aonde chegarei ou se encontrarei viva alma para me sentir em casa. Estou chorando e tenho esses pensamentos e sentimentos” (Jaffe 2012, 86).

É a escrita sobre o presente, como sobrevivente, que a coloca diante de sentimentos complexos da vida em liberdade, ainda que com um futuro incerto e marcado pelo trauma:

Não preciso buscar respostas durante longo tempo, porque as tenho de imediato, já que estou escrevendo aquilo que sinto; não escolheria esse caminho.

Como sou estranha! E como sou grata ao destino, porque me fez ser tão independente. Que eu seja independente, que pense de forma realista, que ninguém influa em mim, que eu saiba comandar meus sentimentos, em qualquer companhia, eu... o que estou escrevendo? Minto! Isto não é verdade! O quê? Sei dirigir a mim mesma e aos meus sentimentos, sei me adaptar à sociedade, quando estou num grupo em que me sinto bem, e este talvez seja o meu maior erro; por isso costumo ser, na maioria dos casos, calada. [...] Porque, quanto mais penso nele, mais sinto amor por ele. Por isto, sou estranha. Porque, assim mesmo, consigo ser mais forte do que os meus sentimentos, que geralmente movem as pessoas na direção daquilo que chamamos de “perder a cabeça”. (Jaffe 2012, 78)

Uma paixão diante de um futuro tão incerto é rejeitada pela jovem, que não quer perder o controle de si mesma por causa de alguém. É a escrita sobre tais sentimentos que constrói, para Lili, um espelho para si, exibindo o papel reflexivo e intimista assumido por essa segunda parte do diário.

A última anotação do diário chama a atenção pela aposta no futuro: “estivemos muito ocupados, mas de agora em diante, teremos mais tempo”. Sem que houvesse, aparentemente, um projeto de fim para esse diário, essa frase encerra confiantemente esse percurso abismal ao discorrer sobre a nova casa:

30 de setembro de 1945

É o aniversário de Hajnal e o comemoramos juntamente com a volta à casa, porque apenas hoje conseguimos arrumar nosso novo lar. Até agora dormimos no chão, sobre os tapetes e já temos belos móveis, cada um com a sua nova cama.

Não vimos praticamente nada da cidade, além desta rua e da Vlaška, que fica ao lado da nossa e vamos ali fazer compras. Estivemos muito ocupados, mas, de agora em diante, teremos mais tempo. (Jaffe 2012, 93-4, grifos nossos)

O ciclo se fecha nessa última anotação. Na primeira, registrava-se a tristeza de serem arrancados de casa, uma vez que o tempo em família e no lar estava se esgotando: “todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. [...] sabíamos que no dia seguinte, às oito horas, os alemães viriam nos buscar e nos arrancar de nosso lar” (Jaffe 2012, 13). Agora, no encerramento do diário, sem os pais, mas vivendo com primas e tios em uma casa mobiliada aos poucos, o futuro apresenta a vida, o tempo a ser ocupado para conhecer a cidade. “Teremos mais tempo”: olhar para trás e ver os marcos de uma luta para sobreviver; inscrever no presente o restabelecimento de uma identidade; apostar no futuro que providenciará o tempo.

Essa possibilidade de escrita e de visualização do futuro está no acesso à dignidade:

Embora a maior parte do diário de Lili Jaffe retrate as violências absurdas de Auschwitz e Bergen-Belsen, bem como o sentimento amargo de vitória diante dos processos de libertação e reinserção social, os seus relatos, por incrível que pareça, se encerram com os primeiros dias de uma história de amor - se encerram, em outras palavras, com uma reconquista da dimensão da cultura, uma dimensão na qual a dignidade tende a ser mais acessível na medida em que as liberdades e condições para se narrar uma história própria tendem a ser mais vigentes. (Waki 2021, 52)

Reconquistar a condição de falar de si, de narrar sua própria experiência. As anotações do diário evidenciam sua “liberdade de narrar sua própria história - uma história que registra dentro de si mesma tanto uma restrição da sua habilidade de narrar, como são os dias nos campos de concentração, quanto uma soberania da sua habilidade de narrar, como são os dias nas zonas de recuperação” (Waki 2021, 53).

2. O que os cegos estão sonhando? O diário de leitura de Noemi Jaffe

O diário é a parte autônoma da obra, mas a segunda e a terceira partes só foram feitas em relação a esse primeiro depoimento, constituindo, então, paratextos do diário (Parisote 2016). A segunda parte do livro, como já apontamos, traz a leitura comentada do diário de Lili por sua filha, Noemi. Temos, então, outro tipo de depoimento: diante da velhice da mãe, portanto, da finitude de seu testemunho, seu diário é traduzido e agora a filha narra sua experiência como testemunha - como aquela que ouviu e viveu com uma sobrevivente - que se encontra com um texto.

É esse encontro com a palavra escrita que complementa, mas que também cria hiatos, rasuras e ruídos com a experiência sensível da vivência com a mãe, que ocupará o centro do livro. Estruturalmente, Noemi retira trechos do diário, organizando-os em palavras-chave que guiam sua escrita testemunhal e ensaística.

O efeito dessa organização é peculiar: por um lado, é como se estivéssemos lendo um diário de leitura, pois a escritora anota a repercussão da leitura em sua sensibilidade; por outro lado, não temos entradas organizadas em ordem temporal, mas por verbetes, como se estivéssemos diante de uma enciclopédia: Destino; Cigana; Frio; Fome; Pedra; Raiva; Dignidade; Família; Mãe; Dinheiro; Pedra 2; Amor; Amor 2; Em Auschwitz; Raiva 2; Raiva 3; Medo; Porta-voz; Memória; Tatuagem; Humilhação; Esquecimento; Palavra; História; Terceira Pessoa; Vida; Escrita; Vontade; Memória Fixa; Desejo; Ficção e realidade; Linguagem; Histórias inventadas; Coincidências; Oração; O esquecimento é a única vingança e o único perdão.

As memórias e citações do diário da mãe são assinaladas em itálico no texto de Noemi Jaffe. Há nessa incorporação dos trechos do diário de Lili a afirmação de uma paixão de leitura, pois a citação aspira “encontrar a instantânea fulgurância da solicitação, pois é a leitura, solicitante e excitada, que produz a citação. A citação repete, ela faz permanecer a leitura na escritura” (Compagnon 1979, 27). Nessa repetição no interior de seu próprio texto, Noemi inscreve o diálogo com a mãe não apenas retomando conversas e sua vivência cotidiana com ela, mas trazendo esse documento de si, produzido na época dos eventos que marcaram definitivamente sua individualidade, ou seja, promove um encontro com a mãe que ela não conheceu. Espécie de máquina do tempo, o diário permite esse reencontro com uma outra Lili, outra personalidade, não só a mãe (ainda que apenas, essencialmente, a sua mãe), que se narra em termos que causam estranhamento e também reconhecimento por parte da filha. O diário se torna, nas mãos de Noemi, uma experiência situacionista de deriva, como a de quem usa um mapa de uma cidade para ler outra.

No entanto, se há uma paixão de leitura, há uma rasura relativa à comunicação: Noemi explica que a mãe só se lembra de algumas histórias porque ela as escreveu no diário e, metaforicamente, diz que o esquecimento da mãe é um abismo que as separa, pois a filha não consegue acessar as lembranças por meio da conversa com a mãe. Suas memórias são como “uma caixa preta que caiu no mar”. Mas se a caixa preta tem as respostas, é preciso encontrá-la, é preciso que essas palavras possam ser escutadas por quem possa compreender o sentido das palavras e seus silêncios. Como encontrar esse registro? Caída no mar, essa caixa preta é a materialidade perdida - sabemos que há um registro, mas ele não consegue ser acessado.

Há uma dupla projeção no plano de Noemi. Ela, como filha de sobrevivente, é quem tem o dever de testemunhar, de ouvir e comunicar o horror que a mãe viveu - algo de um dever histórico e ético. Porém, ela vive a incapacidade de acessar a dor da mãe, ainda que possa senti-la, pois essa distância é também constitutiva dessa relação. Ela percebe que a distância não é só dela com a capacidade narrativa da mãe, mas da sobrevivente em relação às suas próprias perdas, compreendendo que esquecer é perda, mas é também, paradoxalmente, ganho. O sentido do título do livro surge de uma cena que coloca essa dinâmica entre perda e ganho da memória:

Quais são as palavras que ela esqueceu? Um dia, ao telefone, ela, que gosta de ficar imaginando situações, perguntou à filha: “Filha, o que os cegos estão sonhando?” [...] “Sim! O que eles estão sonhando se eles não enxergam? Como podem ver imagens nos sonhos?” [...] Houve a Guerra, houve o exílio, o sofrimento, tudo. Mas esse passado, o que houve e que não é negado, mas esquecido, se mistura, em sua memória, a uma disposição perene para o presente, sem o domínio perfeito da gramática, mas como uma apropriação deslocada, em que a percepção das coisas importa mais do que as coisas mesmo. (Jaffe 2012, 183)

A disposição para o presente ganha auxílio do domínio da gramática, apropriando-se de uma linguagem que possa só se aproximar ao que quer ser dito, sem a obrigatoriedade da palavra precisa.

Essa situação limite que a mãe viveu - separação de seus familiares, abandono, fome, frio, cansaço - e, depois, a redescoberta de si e, até mesmo, o nascimento de sua sexualidade, é narrada com essa negação ao drama, pois o que vale para Lili é que ela sobreviveu e, portanto, pode esquecer. A filha, no entanto, precisa lembrar para compreendê-la, compreender-se e agir no presente, divulgando seu testemunho, em um esforço para que tais crimes não se repitam.

Noemi quer testemunhar, ser mediadora das memórias da mãe, por meio da escrita, em uma narrativa ensaística, menos completando as memórias da mãe do que narrando suas próprias memórias com ela. Contudo, sabe que ser porta-voz resulta em um roubo: portar a voz é ser guardador de uma voz para transmitir o que está naquela voz guardado, o que acaba por transmitir mais do que está na voz:

[...] ele porta o que a voz não disse e talvez nem soubesse que iria dizer, se dissesse.

O porta-voz é um ladrão da pior espécie. O dono da voz o autoriza a roubar; mas ele rouba mais do que ele permitiu, porque ele ficou mudo. Está sem voz. O dono da voz é obrigado a ouvir o que o porta-voz diz e aceitar que aquilo é o que ele mesmo diria. Ou pior, aquilo que ele mesmo não seria capaz de dizer. (Jaffe 2012, 163)

A palavra esquecida, ou mesmo não formulada, é restituída pelo porta-voz, mas o sobrevivente nem a quer mais. Diga-se, conte-se por intermédio dele, mas não o force a relembrar, uma vez que esse esquecimento é o que pode mantê-lo vivo diante das irrupções das lembranças:

Deus pode eventualmente esquecer. O homem precisa lembrar-se de esquecer, lembrar-se para esquecer. [...] A melhor palavra para denotar o esquecimento da vítima de tortura deve ser letargia. Esse esquecimento é um tipo de morte, não um tipo de alisamento nem de perdão. [...] Sem essa morte da memória, a vítima não pode viver, ou só poderá viver da lembrança infinita da dor. Será então uma nova vítima; vítima da lembrança. Como o torturado pode lembrar sem ser uma nova vítima? Será que só o temor lhe permite isso? (Jaffe 2012, 168)

Testemunhar essa batalha pelo esquecimento faz dos filhos de sobreviventes portadores de uma massa pesada, constantemente presente, mas que se oculta e não se quer. Sentem a dor de seus pais, mas também sentem suas próprias dores, menosprezadas diante do horror vivido pelos sobreviventes, e que são sempre vistas em perspectiva, como se não houvesse o direito de existirem, sendo lidas, portanto, pelo crivo do evento dizimador, reatualizando a Shoah.

Ser filho de sobrevivente contém, em algum lugar remoto e inóspito da memória, a tentação de ter estado no lugar do sobrevivente. Não permitir que ela vivesse tudo aquilo [...]. Furar o tempo e a regulamentação do campo e salvar a mãe. Uma mãe que sofreu é uma falha histórica, uma inversão torta, que deixa nos filhos uma pequena culpa, uma pequena falta, um sonho ou um pesadelo que se carrega durante o dia, que impede e ao mesmo tempo estimula a vida. O desejo de salvar a mãe é o desejo de extirpar da memória o sofrimento da mãe para que se possa libertar-se dele, para que se possa viver sem a pedra. (Jaffe 2012, 115)

Lili, a matriarca, a sobrevivente, recorre ao diário, texto pessoal, íntimo, para discorrer sobre o que viveu, inscrevendo um eu e apostando na criação de cenas, criando ritmos e, estrategicamente, organizando suas memórias em torno de signos da sobrevivência. Recriando-se, como vimos, por meio do diário, pode seguir em frente. A filha, Noemi, também participa dessa dinâmica de “lembrar-se de esquecer, lembrar-se para esquecer” e aposta na escrita. Noemi, porém, rejeita a primeira pessoa e não é narrativa como a mãe, não tem o ordenamento dos dias ou a construção de cenas em narrativas costuradas.

Na chamada literatura do trauma é comum vermos a apresentação da fragmentação do discurso, o que também podemos observar nas escolhas de Noemi. Sua narrativa testemunhal, como já apontamos, tem a estrutura de verbetes, resultando em uma enciclopédia do trauma. A enciclopédia, forma distanciada e fragmentada de chegar a um conhecimento, exige que saibamos qual a palavra a ser buscada, assim como a ordem que permite que ela seja encontrada no conjunto dos verbetes. A ação de classificar, ordenar e catalogar trabalha para o ordenamento que pode ajudar o sujeito a interagir com o desconhecido, a fim de libertar-se do caos da multiplicidade que existe em torno do horror e que o sujeita, por ser a massa amorfa de um mal que, localizado na História, no passado, é presente em sua corporeidade e nas lembranças.

Seu texto, espécie de diário de leitura de um texto-tempo (lê-se não só o diário, mas o tempo vivido com a mãe), rejeita o drama e confirma a tragédia na linguagem ao não se enunciar em primeira pessoa: impossível dizer eu quando o foco é o outro, quando o eu é o outro, quando esse si esvazia-se. Quase ao fim, um dos verbetes, intitulado “Terceira Pessoa”, tematiza a escolha, explicando que não sabe bem o porquê de ter feito assim, mas, porque não foi com ela que as coisas aconteceram, não deve usar o eu, “ela é uma voz e só quer ser uma voz”, “quer desaparecer”:

Aqui, nessa história, é claro que ela não alcança este poder supremo e inestimável do desaparecimento, mas se aproxima mais dele do que se fosse a primeira pessoa. Aqui, da forma abstrusa como ela aparece, pode até ser que seja uma primeira pessoa disfarçada de terceira, mas é o máximo que a autora-não-autora conseguiu fazer. Ser terceira de si e, principalmente, da mãe, que é primeira pessoa.

Não é à toa que a gramática deu ao “eu” o nome de primeira pessoa. Cada pessoa, se não tiver a si mesma como primeira pessoa, não é capaz de articular a linguagem, portanto nem o pensamento. Tudo, para cada pessoa e inevitavelmente, por causa da forma como a linguagem ocidental é construída, partindo e acabando no eu. O que, felizmente, nem roça a verdade. O mundo não existe para o eu. O mundo não existe para nada. Ele existe para continuar existindo. (Jaffe 2012, 188, grifos nossos)

O mundo, que existe para além do eu, dimensiona a pequenez do indivíduo, que o compreende a partir de sua perspectiva, que quer inscrever o eu como determinante para o agenciamento de sentidos. A redução que a Shoah faz é abismal: o mundo continua existindo para além da dor que impossibilita o seu testemunho.

As palavras-chave ou verbetes também são uma forma de marcar esse distanciamento. A própria autora conclui, ao final desse verbete, que “A filha tem medo de dizer eu. É sua maneira de dizê-lo”. O medo, negado por Lili, modo de vida assumido pelas filhas - é preciso nunca ter medo - é confirmado em sua mais potente forma: dizer eu é a revelação do medo.

A rejeição do eu é também a confirmação de que se sabe que há uma diferença crucial entre o drama e a tragédia:

o drama do dramático é que ele não viveu a tragédia. Ele é um segundo, um secundário, um atrás, uma sombra, um porém. O dramático escreve sobre o trágico, porque o trágico não é nem escrito, ele é só um espelho das coisas que acontecem; não, ele é a própria coisa acontecendo. O dramático do dramático é que ele escreve, ele é depois. Como é ser depois? O depois engasga, não entende, ele só quer entender, sempre muito mais do que o trágico foi capaz. (Jaffe 2012, 143)

Juntar as três narrativas em um livro, rejeitar o eu e apresentar os verbetes em um diário de leitura expressa esse engasgo. A língua ordenada do campo de concentração e os hábitos de organização nazistas, que deixaram tantos rastros dos crimes, atuam para a morte. A língua da literatura, no entanto, subverte, exige que essa ordem promova a desordem da relação, do viver junto, de uma comunidade que, desestabilizada, é capaz de sentir.

Conclusão

Quase ao fim de suas notas de leitura, Noemi conclui que o uso do presente no diário da mãe poderia ser resultado de um desejo de proximidade ou de distanciamento, como se sentisse os fatos muito próximos ou como se os visse como em um “cinema perdido na memória”. Nesse último caso, seria como “uma terceira pessoa de si mesma, assim como a filha está fazendo neste livro, neste pós-relato espoliado” (Jaffe 2012, 192). O uso do presente é um desvio com a língua, uma forma de subversão. A filha também faz uma escolha desviante para testemunhar sua relação com a mãe e com o trauma histórico ao rejeitar a primeira pessoa. Essa narrativa da filha, constrangida entre a postura de uma porta-voz e de alguém que também viveu o trauma ao carregar o pesadelo durante o dia que “impede e ao mesmo tempo estimula a vida” (Jaffe 2012, 115), coloca em dúvida o próprio papel do livro:

A sensação é que o próprio livro que ela escreve é desnecessário, mais uma construção fabular para transformar tudo em narrativa, para que a filha possa ser mais personagem do que pessoa. Afinal, o conforto da mãe em se bastar com os fatos e com o presente, pode ser também o conforto da filha em fazer o inverso e nunca se satisfazer com os limites inexpugnáveis das coisas e sempre abocanhar histórias. (Jaffe 2012, 203)

A terceira pessoa de si mesma, como percebe em relação ao desvio temporal a que a mãe lança mão para narrar sua experiência, é também a forma encontrada por Noemi para encontrar-se nessa narrativa que é sua e que é de tantos outros. Transforma-se, assim, em personagem, mas mantém-se como herdeira direta de um trauma com o tempo - se a mãe quer manter-se firme no presente, tempo no qual não se lembra nada além do que anotou no diário, a filha recorre à narrativa, às idas e vindas ao texto da mãe - movimentação que é espacial e temporal - para compor-se e recompor uma narrativa histórica:

O passado é uma espécie de sonho em vigília, de futuro às avessas, em que as hipóteses parecerem ser mais verossímeis, porque carregadas de comprovações e testemunhos.

Mas é claro que o passado sempre contém ficção e não há como separar, nele, a invenção e o fato. Nem uma fotografia do passado está livre de conteúdo ficcional. (Jaffe 2012, 204)

Noemi dá vazão a esse conteúdo explicitamente ficcional ao fim de sua seção, quando compõe um registro sobre duas outras mulheres aprisionadas em Auschwitz. A uma delas, com nome que “remete a uma avó coletiva de todos os judeus filhos ou netos de sobreviventes” (Jaffe 2012, 223), inventa fatos que depois descobre que se aproximam da realidade e que são semelhantes às experiências da mãe, o que a assusta:

Que outras filhas se responsabilizem pelas narrativas, diários e horrores de outras mães. Que a carga histórica, social e coletiva desta narrativa não seja excessiva e simbólica, mas apenas uma descarga necessária e individual de uma filha e uma mãe. Uma filha que só quer lembrar, mas também esquecer o que a mãe esqueceu. Ela não quer lembrar histórias de outros sobreviventes e não quer que coincidências desabem sobre sua cabeça. (Jaffe 2012, 224)

O desejo de lembrança coincide com o desejo de esquecimento. O livro, objeto da vigília, reúne as três gerações e publiciza para outras filhas e netas essa sobreposição paradoxal de forças vitais.

A simultaneidade - o sonho em vigília - é o mote da última seção do livro, “Aqui, lá”, assinado pela neta de Lili, a também escritora Leda Cartum. Segundo ela, é a visita a Auschwitz que desperta uma angústia que a constitui desde antes: a simultaneidade dos eventos; enquanto a avó estava sofrendo em um campo de concentração, outras pessoas estavam vivendo felizes e tranquilas; enquanto ela estava em sua infância alheia a seu passado familiar, a mãe e a avó carregavam as cicatrizes do trauma. Percebe, por fim, que há uma simultaneidade temporal: o que a avó viveu é simultâneo a ela, Leda, pois vive nela, é uma continuação em sua própria existência.

O milagre da simultaneidade acontece também dentro de mim: sempre tive espaços internos que não consigo alcançar; como se fossem poços verticais e muito fundos, que sei que existem e que guardam muita coisa, mas aos quais nem sempre tenho acesso. Histórias que fazem parte necessária daquilo que sou e da maneira como me comporto, mas que não vivi nem conheço. (Jaffe 2012, 234)

O relato de Leda Cartum é muito breve. A testemunha de terceira geração confirma a dificuldade em dimensionar o tamanho de seu passado, uma “sombra que acumulamos” (Jaffe 2012, 233). O “que foi crime e proximidade de morte” para seus avós, “que foi identidade constitutiva” para seus pais, para ela “subsiste e se mantém sempre um pouco deslocado em relação às outras coisas”, pois não a marginaliza ou exclui, é uma presença que precisa “sustentar para que continue firme enquanto afirmação do passado da minha família, e por isso da minha própria história”, passando a ser uma marca “interna” e “implícita” em si (Jaffe 2012, 234-235).

A terceira geração está em crise quanto ao testemunho do passado familiar. A coletânea de testemunhos de Noemi, porém, explora a ideia de que a experiência, o trauma, é o fundo, mas que não se afirma um eu para que não se crie um drama que narre o horror. Unir as três vozes, encadeá-las em uma linhagem feminina, matriarcal, apostando na ligação profunda familiar para fazer perdurar uma memória coletiva, histórica, inscreve a obra na literatura contemporânea no que ela tem de intempestiva (Agamben 2009): se para quem experimenta a contemporaneidade todos os tempos são obscuros, quem encara esse abismo, essa obscuridade, “mergulhando a pena nas trevas do presente”, divulga o quanto essa escuridão lhe e nos diz respeito, e, por isso, devemos interpelá-lo. Em síntese, “contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (Agamben 2009, 64).

As três mulheres de O que os cegos estão sonhando?, Lili, Noemi e Leda, encaram as trevas, retomam o passado em atitude de quem sabe que há um impacto nas sombras do presente. É preciso falar sobre esse passado familiar e histórico, particular e coletivo, correntemente ultrapassado pelo desejo de viver de quem precisou esquecer e presentemente reativado pela rememoração de quem sobreviveu e de quem só viveu porque houve essa sobrevivência.

O penúltimo verbete de Noemi Jaffe, na segunda seção do livro, traz uma oração:

Oração

Que o passado não seja uma cebola. Que as mulheres que assavam doces enquanto esperavam a chegada dos nazistas possam permanecer ali, no lugar e no tempo em que elas fizeram isso, e que não as perturbemos com nossa entrada teimosa em sua vida, já tão saturada de fatos. Será que elas ainda precisam que as mulheres do futuro as venham sobrecarregar ainda mais? [...] que nós, as mulheres de agora, lembremos delas como se faz uma carícia, sem invadir suas tarefas, seu pesar. Que guardemos conosco a tinta destas canetas, o perfume dos doces que assavam e possamos usá-los em nossas cartas, nosso fogão, sem com isso trazermos essas mulheres de novo para a vida, sem ressuscitarmos nada. Que possamos deixar a morte lá, sozinha, no lugar que ela ocupou. Que a morte não venha do passado para assustar a vida de agora. Que o agora respire só o fumo do passado e que esse ar o irrigue como uma brisa. Que as avós fiquem sossegadas. (Jaffe 2012, 226)

A oração, enquanto pedido por aquilo difícil de ser alcançado com ação e disposição, inscreve a relutância do presente que tende a se sobrepor a esse passado doloroso. Se é preciso falar sobre o que aconteceu, é preciso também manter a morte “no lugar que ela ocupou”. A união dos três testemunhos, em três tempos, em três vivências da feminilidade, é o uso possível desse passado enquanto carícia para essa avó que merece sossego.

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Gagnebin, Jeanne Marie. 2012. s/t [orelha do livro]. In O que os cegos estão sonhando?: com o diário de Lili Jaffe (1944‑1945) e texto final de Leda Cartum. São Paulo: Ed. 34. [ Links ]

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Parisote, Amanda Dal'Zotto. 2016. “Entre autoras, diário e memórias: a linguagem da barbárie em O que os cegos estão sonhando?” WebMosaica - Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall 8(1): 28-41. [ Links ]

Waki, Fábio. 2021. “A voz da dignidade em O que os cegos estão sonhando? de Noemi Jaffe.” Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas 32, 38-56. DOI: https://doi.org/10.24261/2183-816x0332Links ]

1A obra foi publicada em Portugal pela editora Relógio d’Água (Lisboa, 2016).

2O diário original está no Museu do Holocausto em Israel e foi traduzido do sérvio.

Recebido: 23 de Novembro de 2022; Aceito: 27 de Fevereiro de 2023

Conflito de interesses

A autora declara não ter qualquer conflito de interesses.

Mônica Gama.

Professora de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Pós-Doutoranda na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo com a tese “‘Plástico e contraditório rascunho’: a autorrepresentação de Guimarães Rosa”.

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