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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.48 Lisboa Dec. 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.48.01 

Editorial

EDITORIAL


A temática central do quadragésimo oitavo número da ex æquo apresenta-se sob o título “Discurso de ódio misógino: representações, impactos e intervenções”, num dossier que foi organizado por três colegas da área das Ciências da Comunicação: Rita Basílio e Inês Amaral da Universidade de Coimbra, juntamente com Sonia Nunez Puente da Universidad Rey Juan Carlos de Madrid. Propõe-se, nele, aprofundar diferentes formas de expressão, de leitura e de combate ao ódio sexista online por perspetivas feministas de diferentes contextos internacionais.

A pertinência de trabalhar este tema para a ex aequo não podia ser maior já que, nos últimos anos, a escala e a intensidade da misoginia online se tornaram motivo de séria preocupação, não apenas para qualquer mulher que expresse opiniões ou exerça influência em espaços digitais, mas também entre coletivos e ativistas feministas.

Há muito de novo, mas também uma forte continuidade, nos processos subjacentes a estas formas de violência experienciadas pelas mulheres em contextos digitais e nas suas ramificações para o mundo offline. Utilizando o trabalho de Silvia Federici sobre a caça às bruxas da Idade Média, Eugenia Siapera, por exemplo, no texto de 2019 intitulado “Online Misogyny as Witch Hunt: Primitive Accumulation in the Age of Techno-capitalism”, argumentou que a misoginia tem sido usada historicamente como uma estratégia política consciente para domesticar as mulheres, para controlar a sexualidade feminina e para quebrar a solidariedade feminina. O tempo presente traz novas formas de exercer a mesma violência. O ambiente online, em particular, tornou-se o lugar onde as mulheres podem ser (também) abusadas verbalmente, doxadas e/ou receber mensagens com ameaças de violação e morte, perseguidas ciberneticamente ou ver imagens suas transformadas em pornografia. Tal deve levar-nos, desde logo, a repensar a própria misoginia, não apenas como um sentimento, atitude ou comportamento em relação às mulheres, mas antes, como argumenta Siapera, como um método ou conjunto de métodos que são usados - deliberadamente ou inconscientemente - para manter as mulheres “no seu canto”. A misoginia online - um dos vários termos que têm sido usados para designar estas múltiplas agressões facilitadas pela tecnologia pelas quais as mulheres passam pelo simples facto de serem mulheres - é, pois, um tema que urge aprofundamento para o qual este dossier certamente contribui através da reflexão sobre o que as coordenadoras designam por “discurso de ódio misógino”.

Estas práticas discursivas violentas conferem novas roupagens aos perigos para a consolidação da democracia, em especial em países que encetaram mais recentemente os seus processos de transição democrática, como é o caso de Portugal e de outros países da Europa do Sul, mas também da América Latina (para nos limitarmos à esfera ocidental). O número 50 da ex æquo , a publicar no final de 2024, convocará os 25 anos da revista, mas também os 50 anos da Revolução dos Cravos, do 25 de abril de 1974. Teremos oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre os processos de transição para a democracia que nos trouxeram até hoje, em Portugal e noutros países.

Como é hábito, também este número da ex æquo não é monotemático . Na Secção de Estudos e Ensaios, encontramos uma diversidade assinalável de temas: desde a amizade masculina e a criatividade na universidade à prática desportiva das mulheres nas artes marciais mistas. Apresentando brevemente cada um deles, Fernando Herranz Velázquez, no texto intitulado “La amistad masculina y la fratría. Una mirada histórica al origen de la modernidad“, argumenta que os traços misóginos e homofóbicos da amizade masculina, definida pela preferência por manter vínculos sociais com outros homens, mas na ausência de desejo sexual, servem de moderador da tensão entre o desejo de criar laços com a fratria e a defesa da heteronormatividade. Segundo o autor, a valorização da homosociabilidade veio com a transição para a sociedade moderna, na qual as relações interpessoais substituem as relações familiares. Marina Porto, Maria de Fátima Morais e Jessica Cabrera Cuevas investigaram o estímulo à criatividade de estudantes universitários, estudo do qual nos dão conta no texto sobre “Criatividade e diferenças de género na universidade: uma investigação exploratória com estudantes portugueses/as”. Com base em entrevistas e respetiva análise de conteúdo, as autoras puderam concluir que existem diferentes perceções do desenvolvimento da criatividade e que as mulheres são sujeitas a maior inibição. Serão as mulheres as mais seguidoras acríticas do mito de que a criatividade é inerente às expressões artísticas. Nos resultados deste estudo, podemos, assim, registar uma alarmante lacuna quanto à formação para a criatividade e a metacognição criativa na universidade. O terceiro, e último estudo, desta secção remete-nos para as dificuldades e particularidades da integração feminina nas Artes Marciais Mistas. Grasiela Oliveira Santana da Silva, Angelita Alice Jaeger e Paula Silva debruçaram-se sobre as “MMA and Cultural Industry: A look at the trajectory and training of female fighters” e mostram como a popularização desta modalidade desportiva, através da sua espetacularização, criou exigências aos corpos das atletas, sexualizados e treinados para corresponderem às expectativas de quem é atraído para os espetáculos. O estudo aqui apresentado vem reforçar conclusões que encontramos em outras modalidades desportivas. São bem conhecidas as imposições de vestuário às tenistas ou às jogadoras de voleibol, por exemplo.

Na secção das Recensões examinamos três publicações que chamaram a nossa atenção. Foram publicadas em países diferentes e abordam temáticas bastante distintas. Flávia Nogueira Gomes apresenta-nos uma leitura da obra intitulada Diálogos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo, editada por Márcia Santana Tavares e Ângela Maria Freire de Lima e Souza, e que conta com os contributos de investigadoras e investigadores com alguma ligação ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), da Universidade Federal da Bahia, uma instituição sobressaliente nesta área de estudos no panorama do Brasil. Os vários capítulos abordam as temáticas em maior evidência nos trabalhos desenvolvidos no âmbito daquele programa, como sejam, entre outras, a reflexão sobre a natureza interdisciplinar dos estudos feministas ou as várias vertentes da violência contra as mulheres. A segunda recensão é assinada por Mercedes Alcañiz e incide sobre El retrato de casada , de Maggie O’Farrell, que nos demonstra como estavam indefesas as mulheres na época do Renascimento, deste modo questionando a noção muito difundida que a condição das mulheres era mais favorável nas sociedades pré-capitalistas. O foco nas vivências (e morte) de Lucrecia de Médici, enquanto membro de uma família que marcou indelevelmente a história europeia, está no centro do interesse atual desta obra. Lucrécia terá acabado morta pelo seu marido, algo que na época do Renascimento não gerava qualquer sanção ao assassino. De violência, ainda frequentemente impune, nos fala a Ana Oliveira, no seu livro sobre Assédio. Aproximações sócio jurídicas à sexualidade, aqui lido de maneira muito pessoal por Teresa Joaquim. Leitura inquieta em torno de um texto que se afirma desassossegado sobre “o assédio e as formas de governamentalização do sexo”.

Fica o convite para a imersão em temas deveras difíceis…

Referências bibliográficas

Siapera, Eugenia. 2019. “Online Misogyny as Witch Hunt: Primitive Accumulation in the Age of Techno-capitalism.” In Gender Hate Online, editado por Debbie Ging e Eugenia Siapera, 21-43. Cham: Palgrave Macmillan. DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-319-96226-9_2Links ]

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