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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

ESTUDOS

Ambivalências e desenvolvimentos dos estudos de género em Portugal

Lígia Amâncio1 e João Manuel de Oliveira2

Professora catedrática de psicologia social do ISCTE-IUL lbqa@iscte.pt

Investigador integrado no CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) joao.oliveira@iscte.pt


RESUMO

Este artigo acompanha, num primeiro momento, o percurso do conceito de género nas ciências sociais procurando identificar alguns aspectos contextuais que influenciaram este percurso e referindo algumas especificidades do percurso do género no caso português. Uma segunda parte é dedicada ao contributo dos estudos de género na psicologia social para a compreensão das relações de desigualdade social baseadas no sexo e para o desenvolvimento de novas linhas de pensamento teórico e conceptual. Por último, e partindo da crítica feminista mais recente, apontam­‑se alguns desenvolvimentos futuros que resultam do debate teórico sobre o género e dos novos territórios que esta área de estudos abriu ao conhecimento.

Palavras­‑chave: género; feminismo; estudos sobre as mulheres; masculinidades; teoria queer.

 

ABSTRACT

This paper shows the trajectory of the concept of gender in the social sciences, by highlighting some of the contextual dimensions that have influenced this trajectory and by noting the specificities of the Portuguese context. In the second section the paper is focused on the contributions of gender studies in the field of social psychology to understand relations of social inequality based on sex and on the development of new conceptual and theoretical lines. To conclude, the text emphasizes recent feminist critique, pointing out to future developments derived from current debates on gender and to the new territories this research field has opened to scientific knowledge.

Keywords: gender; feminism; women's studies, masculinities, queer theory.

 

Introdução

O género está presente no discurso das ciências sociais e humanas em Portugal desde a década de 1990, apesar de ausente como área de investigação autónoma na academia3. Esta ambivalência traduz­‑se naquilo que Sofia Neves (2011) designa de hibridismo ou descaracterização, tanto no discurso do senso comum como no discurso académico.

Trazido para as ciências sociais e humanas, em pleno movimento feminista da segunda vaga, com o objectivo de combater a determinação fixa, inscrita na natureza, dos seres homem e mulher, e desenvolver o conhecimento dos processos de construção das diferenças que os separam e dos modos de ser que a sociedade lhes atribui, o conceito de género foi sendo apropriado de diversas formas, ao longo do tempo, que por vezes o distanciam do objectivo inicial e que correspondem a diferentes epistemologias e agendas políticas sobre os sexos.

Nos países anglo­‑saxónicos, onde rapidamente se expandiu a partir da obra Sexual Politics de Kate Millett (1971), o conceito de género foi objecto de fortes resistências, tanto nos meios académicos, como no contexto político. A ligação do género à identidade (gender identity) que os estudos médicos e psiquiátricos tinham salientado, ao mostrar que o sexo inscrito no corpo não correspondia necessariamente à representação de si enquanto homem ou mulher, trazia alguns riscos como o do biologismo para o qual advertia a própria Kate Millett:

 

“...for if one accepts masculine as male, feminine as female, and if one allows sociology [ou a psicologia, acrescentamos nós] to define masculine and feminine one is caught in the biological trap again...” (2003, p. 229) [...porque se aceitarmos que o masculino é o macho e o feminino a fêmea e autorizarmos a sociologia a definir o que é masculino e feminino caímos outra vez na armadilha biológica].

 

Advertência muito pertinente por parte de uma autora que dedicava boa parte da sua obra à crítica do funcionalismo prevalecente na sociologia, na psicologia e na psicanálise daquela altura e nos modelos de ser mulher e homem que as ciências e a literatura difundiam, preocupação que é partilhada por outras figuras de referência do feminismo da segunda vaga (veja­‑se a Mística Feminina de Betty Friedan, cuja edição original data de 1963). De facto, o projecto feminista de transformação social das relações entre os sexos exigia uma mudança epistemológica que combatesse o fatalismo das forças da natureza e se constituísse em conhecimento emancipatório.

A geração de mulheres que chegou à academia nos países anglo­‑saxónicos, nos anos 60 do século passado, após uma longa luta pelo acesso à educação que começara ainda no final do século XIX, trazia consigo o projecto de resgatar as mulheres do silêncio a que tinham sido votadas na ciência, enquanto sujeitos e objecto de estudo. Mas esta nova geração de mulheres investigadoras que pretendiam aprofundar o conhe­ci­mento sobre os factores sociais e políticos que contribuíam para a normalização opressiva dos ideais masculino e feminino e para a moldagem socializadora dos indivíduos sexuados, a geração pioneira dos estudos sobre as mulheres, que integrou o género na sua nova agenda de investigação, não foi bem recebida pelos meios académicos. Em revisões anteriores demos conta das resistências com que esta geração foi confrontada, no caso da psicologia (Amâncio, 2001) e das outras ciências sociais (Amâncio, 2003), para conseguir fazer a investigação que a sua consciência feminista exigia, como diz Mary Crawford:

 

“...I turned to the study of women and gender in order to make my personal and intellectual life congruent and to begin using my skills as a psychologist” (Crawford & Unger, 2004, p. 28) [...Orientei­‑me para os estudos sobre as mulheres e o género para introduzir congruência entre a minha vida pessoal e intelectual e para começar a usar as minhas competências enquanto psicóloga].

 

Sobre minoritárias em instituições dominadas por homens, inseridas em organizações hierarquizadas e dependentes do juízo dos seus pares para prosseguir as suas carreiras, algumas delas ofereceram o seu testemunho para denunciar, anos mais tarde, a forma como as instituições procuraram neutralizar um pensamento ameaçador à sua ortodoxia e subversivo das suas práticas. Sob a acusação de falta de objectividade e rigor, a área de estudos sobre as mulheres não deixou de se afirmar apesar da marginalização a que era votada, mas o percurso do género foi marcado por tensões académicas e políticas. Nos meios académicos, o pensamento sobre o género foi condicionado pela polarização entre o individualismo metodológico da psicologia, que transformava processos em atributos e fundia o sexo com o género, e o feminismo marxista nas outras ciências sociais que transformava as relações de género em relações de classe. No final da década de noventa, era evidente a insatisfação dos/as teóricos/as feministas com o género que, como dizia Joan Scott, tinha perdido a sua capacidade de nos “surpreender” e “provocar” (Scott, 1999, p. 12). O balanço feito por Connell, no final da década de oitenta, assinalava já a dificuldade de diálogo entre as perspectivas teóricas prevalecentes:

 

“The state of the field in the mid­‑1980s is a paradox...Current theories of gender are not converging. Rather they present incompatible accounts of the issues, sometimes by marking off separate parts of the field. To move on, it would seem, it is necessary to move back, to consider the foundations of the theories now on offer” (Connell, 1987, p. 38) [O estado da arte deste domínio a meio da década de 80 é paradoxal...As teorias dominantes sobre o género não são convergentes. Pelo contrário, apresentam relatos incompatíveis sobre as questões, levando por vezes a marcações de diferenças profundas no domínio. Para prosseguir, dir­‑se­‑ia que é necessário voltar atrás e retomar as origens das teorias que agora se nos oferecem].

 

Esta necessidade de retorno às origens assentava na constatação de uma abordagem binária, descritiva e na consequente ausência dos processos na teorização sobre as relações de género, precisamente o risco a que Millett se tinha referido anos antes. Num esforço de articulação do conhecimento produzido até então nas ciências sociais, mas separado pelas fronteiras disciplinares, a proposta de Raewyn Connell naquela obra, que será revista e aprofundada num livro publicado em 2002, visa recolocar os processos no centro da teoria, ao identificar as quatro dimensões estruturantes das relações de género: as relações de poder, presentes nas instituições (os exemplos que demos atrás são ilustrativos para o caso das instituições académicas), na opressão de um grupo sobre outro e nos discursos; as relações de produção, que se manifestam na divisão sexual do trabalho e na diferenciação entre profissões masculinas e femininas; as relações emocionais, ligadas à sexualidade e aos processos de vinculação entre seres humanos; e as relações simbólicas, dimensão ligada às práticas sociais, ancoradas em visões do mundo, também expressas nos discursos, pois quando se nomeia homem ou mulher estamos a referir­‑nos a uma entidade socialmente construída num processo de significação partilhado.

No contributo teórico de Connell estavam também presentes, para além do esforço integrador de diferentes correntes teóricas, as críticas feministas ao enclausuramento a que os estudos sobre as mulheres tinham votado as mulheres, como se não existissem desigualdades entre elas (Nogueira, 2011), e à consequente reprodução da visão binária do género, transformado em dois géneros, masculino e feminino, como os sexos, homens e mulheres. Esta visão tinha implícita uma norma dominante de heterossexualidade, ela própria geradora de outras formas de opressão que afectam tanto mulheres como homens. Desta crítica do dualismo do género emergiram os estudos sobre as várias formas de masculinidade e as formas de opressão entre homens aos quais Connell (1995) deu um importante contributo.

No plano político, não podemos ignorar a enorme transformação ideológica que ocorreu nos anos 80 com os governos Thatcher no Reino­‑Unido e Reagan nos EUA. Esta vaga conservadora foi muito para além da destruição das políticas e dos programas para a igualdade e atingiu directamente a legitimidade dos movimentos sociais ao criar um contexto que acolheu a emergência de movimentos em defesa dos homens, retomou a guerra dos sexos e difundiu um discurso individualizante que transformava as feministas em “vítimas” (como dizia a sra. Thatcher a sociedade não existia, só indivíduos e as suas famílias), numa convergência dos media com empresas ligadas ao consumo e as instituições políticas, profundamente documentada na obra da jornalista Susan Faludi (1991) para o caso dos EUA e de Dominique Frischer (1997) para o caso da França. Neste contexto, o género mantinha todo o seu significado subversivo, como ficou claro nas declarações de alguns congressistas do partido republicano norte­‑americano que se insurgiam contra o facto do programa da conferência de Pequim estar dominado por “essas feministas do género que acreditam que tudo o que consideramos natural, incluindo a maternidade, a paternidade, a heterossexualidade, o casamento e a família são meras “marcas” culturais, criadas pelos homens para oprimir as mulheres.” (Scott, 1999, p. 9).

É neste período de controvérsia teórica e tensão política que a perspectiva de género marca os trabalhos académicos de várias disciplinas das ciências sociais, ganha visibilidade em Portugal (Amâncio, 2003) e os estudos sobre as mulheres reivindicam o seu lugar nas universidades portuguesas. Esta mudança ocorre, porém, num contexto que, sendo aberto às influências internacionais, nomeadamente a vaga conservadora e anti­‑feminista dos anos 80 que teve grande impacto nos media portugueses, era caracterizado por outras especificidades nacionais.

Em primeiro lugar, e ao contrário do que acontecera com as feministas anglo­‑saxónicas, as investigadoras portuguesas não “chegam” à universidade, nem estas instituições se caracterizam pelo domínio masculino e a forte tradição já alcançados pelas suas congéneres estrangeiras, quando eclode o feminismo da segunda vaga. Em Portugal, são as ciências sociais que “chegam” às universidades com a democracia e se institucionalizam numa sociedade finalmente livre, a partir daí, com a estruturação das carreiras académicas, a codificação das novas profissões qualificadas e a normalização de novas práticas e relações hierárquicas a partir do final dos anos setenta. Neste processo de institucionalização das ciências sociais, como da ciência em geral, as mulheres participam activamente, sem que exista do lado de fora das universidades um movimento feminista forte. O seu papel na construção e expansão da ciência e do ensino superior vai ser determinante em todas as áreas científicas e o sentimento que manifestam é o de terem tido todas as portas abertas, como mostram os estudos que fizemos junto das gerações pioneiras de cientistas. Este esforço de integração institucional, por parte das mulheres, por um lado, num ambiente político hostil ao feminismo, por outro lado, explicam, sem dúvida, o desenvolvimento tardio dos estudos sobre as mulheres / de género, em Portugal e a relutância que persiste, ainda hoje, na referência a estudos feministas (Tavares & Coelho, 2011), ou mesmo no reconhecimento dos processos de discriminação baseada no sexo que se instalaram nas profissões qualificadas, inclusive na carreira académica (Amâncio, 2003) e na ciência (Amâncio, 2012), com uma surpreendente rapidez, face à lentidão que marcou o desenvolvimento do conhecimento sobre esses processos, enquanto objecto de estudo.

 

Assimetria simbólica de género

Seguindo a tradição dos estudos sobre as mulheres, numa fase inicial, o estudo sobre os processos de discriminação da mulher no trabalho, no âmbito da psicologia social (Amâncio, 1989), procurou recolher e analisar a evidência sobre estes processos, tanto mais gritantes quanto ocorriam num contexto de forte participação das mulheres no mundo do trabalho e nas profissões qualificadas em particular. No quadro desta linha de investigação temática, iniciada na década de oitenta, desenvolveu­‑se uma reflexão teórica em torno do conceito de assimetria simbólica para criticar as abordagens sobre os sexos, dominantes na psicologia social da altura. Contrariamente a uma hierarquia de valor entre o estereótipo masculino e o estereótipo feminino em que assentavam as hipóteses desses estudos, a ideia de assimetria simbólica salientava os significados simbólicos que davam sentido a estas categorias. Independentemente do valor, a questão central residia na constituição do masculino como referência universal da ideia de pessoa, ou adulto, tanto para homens como mulheres. Neste processo, as mulheres ficavam sujeitas à dupla referência do modelo universal e do modelo específico feminino (Amâncio, 1995) o que permitia compreender que a participação das mulheres no mundo do trabalho não só não era, por si só, um factor de mudança, como tornava evidente a forma como as organizações, e as próprias mulheres, cúmplices de uma ideologia amplamente difundida, contribuíam para a reprodução da desigualdade baseada no sexo na sociedade democrática. Para além disso, esta abordagem permitiu mostrar que a ideia de indivíduo se constrói em torno dos significados masculinos, enquanto as mulheres são remetidas para a alteridade (de Beauvoir, 1976) de categoria sexuada (ver Amâncio e Oliveira, 2006 para uma revisão).

Desta linha de investigação resultaram várias teses de doutoramento centradas nas profissões masculinas (Marques, 2011), na cultura organizacional (Rodrigues, 2008), na política (Santos, 2011), na ciência (Amâncio, 2005) mas também uma reflexão crítica sobre a homogeneização das categorias masculina e feminina que deu origem a vários estudos sobre as masculinidades (Amâncio, 2004), que serão abordados na secção seguinte.

Numa linha com evidentes aproximações a esta, até pela marca do conceito de género, mas que ao mesmo tempo mantem uma diferença nos referenciais teóricos invocados, bem como no tipo de abordagem epistemológica, é possível falarmos de uma crítica feminista que tem estado presente em Portugal no âmbito da psicologia, desde a tese de doutoramento de Conceição Nogueira em 1997, publicada anos mais tarde. Para além do modelo da assimetria simbólica de género, há assim uma outra linha que tem vindo a ser desenvolvida e que foi designada como psicologia feminista crítica (Oliveira, Neves, Saavedra & Nogueira, 2013), que visa proceder não só a uma crítica da psicologia, mas mantem a crítica em relação ao projeto feminista, permitindo um olhar reflexivo sobre o modo como tanto a psicologia como os feminismos apresentam determinadas assunções e pressupostos que devem ser criticados e repensados.

De um lado, a psicologia mainstream com a sua fervorosa adesão aos pressupostos positivistas, do fetichismo do método e a aparentemente eterna pretensão de ser uma ciência natural que estuda (alguns) humanos, generalizando esses resultados para todos os outros humanos. A descontextualização que produz no conhecimento, o esquecimento das dimensões societais e estruturais, a aderência (até) ao neo­‑liberalismo dos quais a psicologia é um importante instrumento (Parker, 2007), tornam fundamental o exercício crítico.

Por outro lado, a teoria feminista apresenta também um profundo trabalho de crítica interna, denunciando a forma como o sujeito “mulher” obscurece determinados contextos de outras mulheres. Os trabalhos de Judith Butler (1990), Teresa de Lauretis (1987) e de Donna Haraway (1991) foram fundamentais a este respeito, ecoando as vozes das feministas negras, chicanas, lésbicas e pós­‑coloniais, na crítica ao que o conceito de mulher permite esconder de diversidade intra­‑categorial. Para deixar claro, esta crítica não constitui nenhuma tragédia para a agencialidade do feminismo, nem é sequer nova. Ela constitui sim, um incremento fundamental na diversidade interna do movimento e do grupo e funda o feminismo numa experiência de hifenização (Oliveira, 2010), transformando­‑o numa importante ferramenta de contestação política pelo potencial coligativo que passa a adquirir. A constituição de alianças de conhecimentos entre diversas áreas da intervenção política, feminismos e outros movimentos sociais (Rowbotham, Segal & Wainwright, 2013), permite construir conhecimentos muito mais complexos do ponto de vista da sua formação, intervenção e âmbito. Pensemos pois em análises feministas marcadas pela hifenização (Oliveira, 2010), como sejam feminismos pós­‑coloniais ou feminismos anti­‑racistas. Tal abertura e expansão permite que o feminismo possa ser um importante e fulcral ponto de troca, interface conceptual e ponto nodal de um rizoma de conhecimentos que visam a contestação não apenas do sexismo, mas de outras formas de investigação que com ele se intersectam, o classismo, o colonialismo, o racismo, o heterossexismo entre outros.

Esta linha de teorização é pois uma linha de ruptura do ponto de vista conceptual, até com a própria disciplinarização do conhecimento, dado que ela elide possibilidades de coligação que facilitem a contestação das restrições académicas à produção de saber. Fundamental deste ponto de vista, para a investigação, são as polifonias conceptuais, os diálogos com outras linhas do saber, como a história, a antropologia, a sociologia, os estudos literários, a filosofia, entre outras. Daí que quando pensamos em estudos de género, estamos à partida, a considerar um diálogo aberto. É certo que do ponto de vista académico, seria extremamente menos exigente, manter uma restrição disciplinar e atermo­‑nos a uma produção pautada por essas regras. Contudo, as exigências de complexidade a que este objecto de estudo obriga, impede essa tentação disciplinar. Pelo contrário, os estudos de género implicam­‑se na produção de conheci­mentos situados (Haraway, 1991), como já tínhamos afirmado noutro texto (Oliveira & Amâncio, 2006) marcados pelo contexto histórico, económico, político e ideológico, a partir dos quais os produzimos. Ora, tal exigência faz com que tenhamos que partir (das) disciplinas e produzir uma teoria e investigação indisciplinada, para usar um título do livro fundador da teoria queer em Portugal (Cascais, 2004).

É pois, partindo destas coordenadas de complexidade e indisciplina que nos propomos pensar o desenvolvimento das linhas de pesquisa em Portugal. Ilustraremos estas linhas com duas áreas específicas: as masculinidades e os trabalhos na teoria queer, dado que, no nosso entender, parece ser cada vez menos possível falar dos estudos de género em geral, dada a diversidade de propostas, quantidade de investigação e âmbitos de pesquisa e intervenção. Olhar para estes desenvolvimentos, em particular, permite uma análise que reconhece o desenvolvimento de áreas recentes neste campo de estudos. No caso específico das masculinidades, trata­‑se de um terreno que é contemporâneo com o princípio dos estudos de género em Portugal. Ou seja, enquanto noutros países, os estudos sobre a masculinidade se vão desenvolver já no quadro de uma área científica consolidada, em Portugal estes estudos começam logo a desenvolver­‑se, aquando do aparecimento destas analíticas de género nas ciências sociais portuguesas. No caso dos estudos queer, eles também surgem relativamente cedo, como damos conta nessa secção. Tais desenvolvimentos ilustram o modo como as ciências sociais em Portugal acompanharam o movimento internacional dos estudos de género, apesar de terem introduzido o conceito consideravelmente mais tarde do que outros países. Tal dinâmica permite perceber efeitos de importação e ressignificação de conceitos, aplicados a um contexto onde a não existência de uma tradição teórica feminista sólida nem sequer de uma tradição forte de ciências sociais condicionou a emergência destes estudos. Portugal torna­‑se assim um interessante estudo de caso marcado por ausências várias, mas que são compensadas pelo acompanhamento da produção de outros países, nomeadamente EUA e Reino Unido, que vai ser traduzida e hibridizada para pensar a sociedade portuguesa. Longe de constituir uma importação directa, estamos perante uma vontade de diálogo das ciências sociais (ainda a começar) com produção teórica e analítica internacional e de pensar a sociedade portuguesa a partir desses conceitos, devidamente equacionados e adaptados, o que ajuda a perceber estas dinâmicas científicas.

 

Masculinidades

A linha de estudos da masculinidade, conforme afirma Marques (2011), é devedora de uma compreensão feminista do género enquanto um devir, como um pressuposto beauvoiriano em que “não se nasce mulher, torna­‑se mulher”. Assim as propostas analíticas na área da masculinidade começam por desconstruir a ideia de que os homens sejam sujeitos universais, mas assumem­‑nos como um objecto de estudo a ser analisado, retirando­‑lhe um estatuto epistémico supra­‑ordenado e colocando­‑os numa situação de objecto de estudo enquanto tal. Por outro lado, há a preocupação de os considerar como resultado de um processo em construção.

Recuperando o conceito gramsciano de hegemonia, Raewyn Connell descreve a masculinidade hegemónica como um ethos masculinista construído socialmente para naturalizar traços associados aos homens. Trata­‑se de um conjunto de práticas sociais, um padrão normativo de práticas, que visa manter a dominação masculina sobre as mulheres e manter igualmente dominadas outras formas de masculinidade – as masculinidades subordinadas (Connell & Messerschmidt, 2005). Ligando o padrão da masculinidade hegemónica à sua teoria do género, Connell (2002) distingue igualmente entre ordem de género e regime de género, em que a ordem de género se refere a um padrão de relações entre masculinidade e feminilidade, cultural e historicamente variável de âmbito mais geral, enquanto que o regime de género consiste numa manifestação local dessa ordem. Ora, estes conceitos presumem e estão ligados a outros sistemas de dominação, assumindo versões particulares consoante as inter­‑relações com esses sistemas. Trata­‑se de uma teoria sistémica do género entendendo o género em vários níveis de análise.

O foco na masculinidade hegemónica mostra como esta é o referente de comparação numa hierarquia de masculinidades: “it embodied the currently most honored way of being a man, it required all other men to position themselves in relation to it, and it ideologically legitimated the global subordination of women to men” [representava a forma mais honrosa de ser homem naquela altura, exigia que todos os homens se posicionassem em relação a ela e legitimava ideologicamente a subordinação global das mulheres em relação aos homens] (Connell & Messerschmidt, 2005, pp. 829­‑859). A masculinidade hegemónica, para além das masculinidades subordinadas, implica a existência de masculinidades cúmplices (versões menos assentes na dominância que masculinidade hegemónica requer). As tentativas de resistência de outras formas de masculinidade, críticas da masculinidade hegemónica ficaram conhecidas como masculinidades alternativas e masculinidades “de protesto”.

No caso da investigação realizada em Portugal, é possível descor­tinar o uso da ideia de localização da masculinidade, desde o princípio. Assim, nas pesquisas de Miguel Vale de Almeida (1994), como nas que são relatadas na obra coordenada por Amâncio (Amâncio, 2004), encontramos alguns pontos em comum, que têm a ver tanto com uma filiação conceptual no pensamento de Connell, como uma preocupação na situacionalidade do conhecimento. Estas propostas, tanto a caracterização antropológica da masculinidade no seio de uma pequena povoação no Alentejo a que procede Vale de Almeida, como o conjunto de trabalhos apresentado na obra de Amâncio, preocupada em registar pesquisas sobre masculinidade e profissões, saúde, violência na escola e riscos, mostram como a investigação portuguesa acompanhou estes debates iniciados por Raewyn Connell, na relação das masculinidades com o contexto mais amplo de produção de regimes locais de género. Estes trabalhos pioneiros marcaram a investigação na área, nomeadamente em Portugal, abrindo caminho para outros trabalhos que se alicerçaram nalgumas das propostas epistemológicas avançadas por estas obras. É o caso do trabalho de António Manuel Marques (Marques, 2011), que, recorrendo de forma mais explícita a um paradigma discursivo, vai detalhar processos de constituição das masculinidades em contextos profissionais variados, recorrendo também à relação com a feminilidade para evidenciar o modo como a masculinidade se constrói por oposição.

Um outro trabalho que neste contexto ganha muita relevância é o trabalho produzido por Óscar Ribeiro (Ribeiro, Paúl & Nogueira, 2007) sobre idosos prestadores de cuidados às suas esposas e a relação entre esta prestação de cuidados e a masculinidade, evidenciando uma variedade de reacções a esta posição de sujeito que passam por uma reapreciação crítica da masculinidade, mas nalguns casos, a uma sensação de emasculação. O trabalho de Luís Santos (Santos & Nogueira, 2011), recorrendo à internet como plataforma de encontro com os participantes, que lhe permitiu estudar a intricada relação entre as masculinidades e as emoções é outro dos trabalhos que é importante considerar nesta análise.

Na sociologia têm vindo a destacar­‑se os trabalhos de Sofia Aboim (2010) que se tem dedicado a analisar processos de permanência e mudança nas masculinidades. Mais próximas de uma linha da sociologia da família e portanto relacionando a masculinidade com o lugar da paternidade, estes estudos mostram como as masculinidades em Portugal, bem como noutros contextos, não são estáticas, antes apresentam negociações e hibridizações contemporâneas com mudanças sociais em curso. Por exemplo, estes trabalhos evidenciam como certas dimensões mais agressivas ou autoritárias das masculinidades começam a perder consenso face a uma crescente demanda pela sentimentalização dos homens, concomitante com as exigências de um novo posicionamento nas relações familiares. Maria do Mar Pereira (2012), na sua etnografia da construção do género numa escola portuguesa, apresenta uma concepção performativa do género que utilizou para caracterizar a masculinidade em construção. Assim, mostra como a masculinidade recorre muitas vezes à negação da possibilidade de homossexualidade e ao seu repúdio como modalidade de constituição.

A pesquisa de Teresa Furtado (2009) sobre as personae masculinas na videoarte de mulheres encerra este périplo pelas ciências sociais e humanas em Portugal com um foco dirigido à masculinidade. O seu trabalho analisa o modo como mulheres artistas recorrem à impersonation da masculinidade e se apropriam da mesma para a sua criação. Este trabalho analisa o modo como a própria teoria feminista de 2.ª vaga, a certo momento não acompanha este processo de drag e falhou na sua consideração, enquanto que as mulheres artistas continuaram a fazer as suas apropriações da masculinidade.

Estas pesquisas, aqui abordadas de forma muito sumária, dado estarmos a usá­‑las como modo de enunciação da originalidade das linhas de investigação e para destacar as mudanças de ordem conceptual, mostram as preocupações com a contextualização, as mudanças e permanências nos regimes de género e com a construção de um conhecimento que se concretiza nos contextos.

Recorrendo à investigação realizada em Portugal, e apenas tomando esse contexto como exemplo, denota­‑se como as linhas analíticas da masculinidade se revestem de interesse para a teoria feminista e estudos de género, por não só manterem actualidade mas sobretudo por evidenciarem estas trocas entre a teoria feminista e os estudos de género. Estas linhas de pensamento têm vindo a ocupar um lugar importante na produção teórica dentro dos estudos de género. Tornou­‑se impossível deixar de olhar para este tipo de exercícios teóricos que permitem englobar uma diversidade de grupos e de pessoas, muito para lá dos pressupostos iniciais do género e da própria teoria feminista. O cruzamento com as preocupações queer encontra também um interessante ponto de sustentação de novas propostas teóricas sobre o género e que possibilitam a construção de saberes, outrora subjugados, mas que agora fazem parte de uma gramática epistemológica mas também política que é comum.

 

Teoria queer: os estudos críticos da sexualidade

Já no plano da sexualidade, estes estudos têm tido em Portugal um considerável crescimento nos últimos anos. Iremos focar uma série de números especiais de revistas científicas ou antologias de textos, ou seja publicações coletivas, em vez de privilegiar a publicação por artigos ou teses4. A opção por tal corpus teórico e analítico tem como objectivo mapear a produção e ao mesmo tempo, observar a mobilização da comunidade científica das ciências sociais em termos deste objecto de estudo. Iremos focar uma série de trabalhos que foram sendo desenvolvidos em Portugal ao longo dos anos 2000, nomeadamente os que foram desenvolvidos a partir da teoria queer, espaço conceptual que tem vindo a questionar a cadeia de equivalências entre género, identidade e desejo.

Não é simples definir os entendimentos polissémicos de queer. A palavra refere­‑se à estranheza, ao esquisito, ao anormal, mas também é utilizada quer para insultar pessoas que não se apresentam conformes às normas de género e à heterossexualidade hegemónica, sendo que a partir dos anos 80, e a partir de movimentos de protesto como o Queer Nation passou a ser visto como uma forma possível de designação. Assim, como mostra Butler (1992), ressignificou­‑se uma injúria que se transforma numa política de questionamentos das políticas baseadas na identidade LGBT. queer é um termo que desafia a fixidez identitária, tratando­‑a como uma forma de ficção política. A teoria queer começou por ser desenvolvida nos E.U.A. durante os anos 90 com a preocupação de encontrar uma analítica não essencialista da experiência da dissidência sexual e que questionasse as políticas de identidade e a normatividade das categorias que estas políticas introduzem (Oliveira, 2010). Estes trabalhos desenvolvidos ao longo da década de 90, herdeiros da concepção foucaultiana, permitiram demonstrar o carácter socialmente construído das sexualidades e o modo como a ciência moderna recorreu às categorias – depois transformadas em identidades – como forma de administração biopolítica. Em Portugal, a teoria queer começou a desenvolver­‑se a partir dos anos 2000.

O trabalho pioneiro de António Fernando Cascais (2004) implicou a transposição da teoria queer para Portugal, alargando o âmbito da teorização sobre sexualidades apresentada até então em Portugal. No entanto, não deixa de fora uma série de pesquisas mais ligadas aos estudos LGBT. Nesse âmbito, esta publicação é antecedida por uma outra, publicada nos Estados Unidos da América sobre género e sexualidade no mundo lusófono (Quinlan & Arenas, 2002), que integra uma série de contributos, mais ligados aos estudos culturais, artísticos e literários, que permite as primeiras alusões às propostas da teoria queer no espaço lusófono. Para Portugal, seria preciso esperar algum tempo para que a obra de Fernando Cascais fosse dada à estampa em 2004. O seu capítulo inicial mantem ainda hoje actualidade. Trata­‑se de um texto que procede à abertura de um campo, traçando as tendências da literatura internacional até à data e permitindo às investigações em curso, na época, para efeitos de obtenção de teses de mestrado ou de doutoramento, um ponto de ancoragem na literatura. Neste trabalho, convergem investigadores/as das mais variadas disciplinas, em 15 capítulos, que abrem perspectivas múltiplas para esta área de estudo.

Num número especial da Revista Crítica de Ciências Sociais, 2 anos depois, organizado por Ana Cristina Santos (Santos, 2006), os estudosqueer são agora assumidos como área primacial de pesquisa, alicerçados na crítica à disciplinaridade e às identidades tão centrais nos estudos LGBT. Os trabalhos de Nuno Santos Carneiro e Isabel Menezes, Miguel Vale de Almeida, Gabriela Moita, Ana Cristina Santos e António Fernando Cascais são apresentados neste número (como o tinham sido no livro de Fernando Cascais) e complementados por artigos de Sasha Roseneil e Michael O'Rourke. Este trabalho que claramente se posiciona numa perspectiva queer, apresenta igualmente uma série de contributos que demarcam o terreno dos estudos queer em relação aos estudos LGBT.

Em 2009, Conceição Nogueira e João Manuel de Oliveira organizam uma secção temática da revista Ex­‑Aequo (Nogueira & Oliveira, 2009), reforçando a ligação já iniciada por Ana Cristina Santos, de relacionar matricialmente feminismo, estudos de género e teoria queer. No contexto dessa revista científica, especializada em estudos sobre as mulheres, estudos de género e feministas são apresentados os contributos de João Manuel de Oliveira, Ana Cristina Santos, Salomé Coelho, Francesca Rayner, Teresa Furtado, Ana Brandão, Maria do Mar Pereira, para além de Victoria Clarke e Elizabeth Peel. Partindo explicitamente de uma abordagem performativa do género cruzada com uma perspectiva queer, este volume integra contributos variados que complexificam as abordagens tradicionais dos estudos de género com a literatura queer. No ano seguinte e partindo de um estudo financiado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Conceição Nogueira e J. M. de Oliveira editam uma obra coletiva, na qual é reportada a maior investigação extensiva em Portugal até à data sobre a população LGBT (Nogueira & Oliveira, 2010), suas imagens sociais e as suas próprias representações da discriminação e da desigualdade. Tal estudo apresenta uma contextualização histórica e sociológica de M. V. de Almeida, já referida, e um capítulo de contextualização conceptual de J. M. de Oliveira, para além dos outros capítulos de análise empírica com os resultados analisados em termos das perspecti­vas feministas críticas.

Estes trabalhos colectivos mostram, antes de mais, um interesse científico e teórico nestas temáticas, problematizando, no nosso entender, a noção de que Portugal é um país ainda em atraso em relação a estas matérias, quando pelo contrário, o retrato que aqui se apresenta é marcado pelo dinamismo, pela inovação conceptual e pela capacidade afirmativa numa comunidade científica que ainda apresenta problemas em relação ao próprio conceito de género do qual muita desta investigação partiu. Contudo o desenvolvimento da pesquisa nesta área mostra bem que, embora tenha começado ligeiramente mais tarde, como aconteceu nos outros países, a teoria queer já começa a ter alguma sustentação em termos de publicações (note­‑se que só referimos no texto alguma da produção, nomeadamente a publicação colectiva em livros e números especiais de revistas).

Igualmente não se pode deixar de referir a internacionalização destas linhas de pesquisa com a publicação de artigos em revistas científicas de destaque indexadas na Thompson Reuters ou no sistema SCOPUS como o Journal of Homosexuality (Carneiro & Menezes, 2007; Oliveira, Costa & Nogueira, 2013), Journal of Gender Studies (Santos, 2013), Feminism and Psychology (Oliveira, Pena & Nogueira, 2011), Social Movement Studies (Santos, 2012), Sexualities (Brandão & Machado, 2012), Ciência e Saúde Coletiva (Marques, Oliveira & Nogueira, 2013)e/ou Psicologia e Sociedade (Carneiro, 2013), entre outras. Nestas linhas de investigação, Ana Cristina Santos e Sofia Aboim foram premiadas com uma research grant do Conselho Europeu de Investigação (ERC), para além de já existirem projectos de investigação financiados pela FCT, criados a partir destes quadros teóricos5. Ou seja, tratam­‑se de áreas de investigação recentes, mas que já conseguiram atrair financiamento (sem contar com bolsas de pós­‑doutoramento e de doutoramento que também existem), que mobilizam um conjunto de investigadores/as que têm publicado nacional e internacionalmente, com presença em congressos e seminários a convite de universidades nacionais e estrangeiras e que colaboram activamente nos estudos de género e feministas.

 

Presente e Futuros

Este texto analisou de uma perspectiva sincrónica e diacrónica os trabalhos realizados no âmbito dos estudos de género e feministas, nomeadamente na psicologia social, na sua primeira parte. Desta análise ressaltam as dificuldades e as oportunidades na implantação dos estudos de género em Portugal mas também a capacidade afirmativa desta área no seio da comunidade científica portuguesa. Este esforço sistemático de tentativa de produzir trabalho de investigação é, a nosso ver, já não uma promessa para o futuro, mas antes uma realidade no presente que operou a partir das dificuldades e do esforço realizado no passado.

Veja­‑se o panorama das revistas científicas da área onde se encontra a Faces de Eva e a Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, a Ex­‑Aequo. A existência destas revistas com produção contínua ao longo do tempo é prova suficiente da quantidade de investigação produzida, sendo que bastante desta produção encontra publicação no estrangeiro em revistas internacionais.

Trata­‑se, sem dúvida, de uma das maiores conquistas do feminismo: a criação de áreas de estudo, investigação e reflexão crítica que têm vindo a fomentar não só as actividades propriamente académicas, mas a existência de espaços onde o conhecimento feminista continua a ser difundido e problematizado, como é exemplo a recente iniciativa da Universidade Feminista, com um conjunto de instituições e investigadoras/es em parceria, para traduzir esse conhecimento para um público mais alargado que o habitual público universitário.

Veja­‑se igualmente a existência de programas doutorais em funcionamento, como é exemplo, o de Estudos Feministas na Universidade de Coimbra, ou a existência de possibilidades de pós­‑graduadas/os realizarem estudos de género dentro da formação disciplinar de origem, aliás a situação mais comum. Os programas de mestrado em Estudos sobre as Mulheres (existente tanto na Universidade Aberta, onde se iniciou este tipo de formação, mas também na Universidade Nova de Lisboa) que têm formado jovens investigadoras/es nesta área, têm tido um importante contributo na difusão desta área de pesquisa.

Como mostra Maria do Mar Pereira (2012), na análise detalhada que produziu no âmbito do seu doutoramento, sobre a negociação do estatuto epistémico dos estudos sobre as mulheres, feministas e de género em Portugal, trata­‑se de um reconhecimento rejeitante (dismissive recognition), em que parte destes conhecimentos são aproveitados e valorizados e outros rejeitados como estando abaixo do limiar de reconhecimento do estatuto epistémico. Esta ambivalência é também interessante para pensar o posicionamento dos estudos de género na academia, enquanto instituição. Com a diversidade de temas estudados, a grande quantidade de produção e a obtenção de financiamento, os estudos de género apresentam­‑se atractivos para as universidades, que mantêm igualmente esta postura de reconhecimento rejeitante como alega Pereira.

Este esforço quer formativo, quer de investigação é no entanto en­som­brado pela dificuldade em aceder quer a posições académicas, quer em termos do seu reconhecimento institucional fora das disciplinas. Não temos ainda departamentos nas universidades dedicados exclusivamente aos estudos de género, o que constitui um problema à institucionalização deste ramo do saber. Igualmente, a recente política de redução dos finan­ciamentos quer à investigação, quer ao Ensino Superior, tem vindo a contribuir para este tipo de bloqueios e para dificultar a instituciona­lização de qualquer área científica.

Parece­‑nos que será no quadro destas ambivalências que se jogam estes futuros. Com o desenvolvimento de linhas de pensamento cada vez mais interseccionais, em que o género se cruza com as sexualidades, com a ‘raça', com o colonialismo, com as restantes estruturas de opressão para nos permitir construir conhecimentos mais hifenizados que abordem a complexidade. Por outro lado, espera­‑se que áreas mais tradicionais como o trabalho e o emprego, a economia do género, entre outras, continuem a atrair investigadoras/es e que constituam e construam com as restantes áreas, a polifonia e a diversidade desta área do saber.

 

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Notas

1Professora catedrática de psicologia social do ISCTE­‑IUL e actualmente directora do CIS­‑IUL, Centro de Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa. Tendo iniciado a investigação nos estudos de género com a sua tese de doutoramento em 1989, que deu origem ao livro Masculino e Feminino. A construção social da diferença, publicado em 1994 (1ª edição), foi também editora do livro Aprender a ser homem. Construindo masculinidades, publicado em 2004. Os seus interesses de investigação centram­‑se na integração das mulheres nas profissões qualificadas, em particular, na ciência.

2Investigador integrado no CIS­‑IUL, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE­‑IUL). Presentemente coordena a linha de investigação Género, Sexualidades e Interseccionalidades deste centro de investigação. É bolseiro de pós­‑doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Tem publicado em Portugal e internacionalmente nos seus interesses de pesquisa: teoria do género, teoria queer, cidadania sexual, homonormatividade e teorias feministas. É doutorado em Psicologia Social pelo ISCTE­‑IUL e é Visiting Fellow do Birkbeck Institute for Social Research da Universidade de Londres.

3Em 2012, foi criado o Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa, indicador de uma tentativa de autonomização dos estudos de género.

4Tal trabalho de recolha e anotação bibliográfica até 2010 encontra­‑se em Miguel Vale de Almeida, O contexto LGBT (Lésbicas, Gay, Bissexuais e Trans) em Portugal, In Conceição Nogueira e João Manuel de Oliveira (coord.), Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género, Lisboa, CIG, 2010.

5 Os projectos de investigação referidos são o projecto “Cidadania Sexual das lésbi­cas em Portugal: experiência de discriminação e possibilidades de mudança com o website: https://sites.google.com/site/cidadaniasexual/ – coordenado por Conceição Nogueira e com participação de João Manuel de Oliveira – e o projecto “Intimidade e deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal” – coordenado por Ana Cristina Santos com o website:http://www.ces.uc.pt/projectos/intimidade/pages/pt/projeto/apresentacao.php