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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

ENTREVISTAS

À conversa com Lídia Jorge sobre O Vale da Paixão

 

 

Lurdes Aguiar Trilho


Sei, por algumas entrevistas que tem dado, que o título O Vale da Paixão não é do seu agrado. Aliás, o título inicial era outro: Diante da Manta de Soldado. Por que é que prefere esse título, quando na minha opinião, O Vale da Paixão é um título mais apelativo, mais sintético, que até remete bastante para a interioridade, para a introspeção de que a obra se reveste?

 

Diante da Manta de Soldado remete para uma coisa que o leitor não conhece, que é o próprio processo da escrita, remete para a operação da escrita e tem a memória da génese da obra, que o leitor nunca pode conhe­cer, mas que o autor sabe. O embrião deste livro data do encontro com uma manta de soldado e essa é a questão biográfica que está na origem.

O próprio processo de escrita é uma espécie de meditação, é uma espécie de imprecação e oração em torno da manta. No fundo, o percurso da escrita neste livro é como se fosse durante uma longa noite, durante a qual há a invocação desses quarenta anos de vida da família que justifica a razão pela qual este outro eu que está dentro do livro constrói esta história e constrói, como num puzzle, a imagem dum pai que foi destruído pelos outros, embora com a ajuda de si mesmo, acabando por limpar­‑lhe o rosto e fazer dessa estátua, que estava praticamente denegrida, uma estátua clara. Portanto, Diante da Manta de Soldado tem, para mim, o eco muito importante do processo da memória que está em torno da figura da filha de Walter.

 

É o objeto que desperta a recordação, que desencadeia a escrita...

É o objeto, é o instrumento e é o processo, quer dizer, remete para um processo completo e é tão forte que a própria estrutura do livro é assim que se encaixa. É por isso que é sincopado, é feito de «flash­‑back» permanentes porque são regressos na busca das várias cavernas da memória à procura dos momentos que sobejam para a luz daquela noite presente para justificarem a figura luminosa do pai.

 

Falou há pouco que a manta é um elemento biográfico... Pegando nesse aspeto para falar da questão das marcas biográficas que se detetam neste livro, e que Lídia Jorge tem rejeitado como tal – não só a manta como referiu, mas também o pai ausente, a emigração, a Argentina que é um local onde Walter esteve emigrado assim como o seu pai – pergunto­‑lhe se continua a rejeitar a ideia que o livro contém essas marcas?

Sim, porque o facto de haver algumas marcas, algumas coincidências não significa que...

 

... seja uma biografia...

Exato. São pontos de referência, são sustentáculos reais que dizem que a história que estamos inventando não é falsa e que tem verosimilhança, que tem pontos de apoio. Mas esta personalidade é inventada, os percursos daquela família não coincidem com os percursos de nenhuma família real, também a relação desta rapariga bastarda não tem a ver com a biografia. Eu digo, e volto a dizer, do ponto de vista biográfico, o que há de comum, o que há de real, é o facto de ter havido uma manta de soldado na minha vida, que foi de facto muito importante e que é um elemento que ainda hoje guardo. A certa altura percebi que ela podia oferecer­‑me uma história, eu embrulhei uma história naquela manta.

Aliás, é muito curioso porque por exemplo, em Espanha, a expressão “manta de soldado” é algo muito forte, o que eu desconhecia, que tem uma palavra própria para ela, uma palavra arcaica, “petate” (que hoje significa mochila), que representa, para além da manta que o soldado levava às costas, fazendo com ela uma trouxa onde levava a roupa, guardava dinheiro, também aquilo que servia para se deitar, para se cobrir quando era ferido, era na própria manta que era envolvido e até era reconhecido pela manta...

Possivelmente, havia uma marca qualquer que identificava a pessoa. Esse objeto tinha também outra característica, quando morria, o soldado era embrulhado na sua própria manta. Eu desconhecia que a manta, para os espanhóis, fosse tão forte que houvesse uma palavra diferente de “cubierta” que é a palavra normal. Eles têm até essa noção de manta de soldado como o local da vida, o local também do sexo e o próprio local da doença e da morte, como se fosse uma segunda pele do ser humano.

Nós não temos a palavra, mas temos o mesmo conceito; temos o conceito na nossa cabeça e, de facto, a história nasce por essa manta, que é uma sugestão, uma oferta duma história. Isso é biográfico, parte de uma coisa real. Para construir essa figura ideal, eu tinha alguns elementos de apoio de realidade, mas não o oposto – não parto de uma história de família para a escrita – é a escrita que coincide com alguns dados.

 

Falou há pouco na filha bastarda... Há tempos disse, numa entrevista, que as nossas emoções e sentimentos devem­‑se ao facto de nos querermos amar na perfeição num mundo de relações permanentemente imperfeitas. N'O Vale da Paixão, esta frase parece muito bem ilustrada com a relação que a filha tem com o pai, também ela quer amar o pai, mas a relação que a une a ele é uma relação imperfeita, ela é a bastarda ou é a sobrinha. Também n' O Vale da Paixão está presente esta tentativa de amar na perfeição num mundo imperfeito.

É isso, sim. Isso talvez seja o tema d' O Vale da Paixão e talvez seja o tema mais abrangente de tudo aquilo que eu escrevo e que dá unidade, é esta espécie de tema obsessivo, central, que é a ideia que existe um intervalo nas relações entre os seres humanos, um intervalo que não é preenchido, que é como se corresse sempre um rio que separa as margens que, no fundo, quereriam estar juntas, mas que esse rio escuro separa, não havendo ninguém capaz de ultrapassá­‑lo por mais amor que haja, por mais diálogo e entendimento que haja. É como se fosse uma espécie de falha da espécie humana, uma espécie de “lack” que está no meio impedindo alguma coisa... a perfeição… e eu acho que, no fundo, o Génesis da Bíblia quando fala no pecado original, mostra que houve da parte de Quem criou aquela fábula a intuição dessa impossibilidade de união, uma espécie de falha que existe na realidade humana e que, por mais desejo que haja, nunca se consegue colmatar. Este facto acontece dentro do amor mais envolvente que é o amor entre os pais e os filhos, um amor onde está o próprio sangue, e que nos leva a interrogar­‑nos: «Por que é que ninguém está junto de ninguém? Por que é que as relações entre pai e filho, mãe e filha se baseiam numa necessidade de separação?» Ser inteligente numa relação humana é saber reduzir mas guardar esse intervalo, saber que há um espaço que é inultrapassável, saber que há um espaço de ser a ser que não é ultrapassado.

Eu acho que isso acontece no amor humano mas também na gestão das sociedades e é, inclusive, entre nós o próprio desejo da metafísica. É absolutamente patético que a Humanidade inteira esteja permanentemente a dizer: «Eu quero atingir o conhecimento que está para além da Física» porque não aceitamos que o mundo seja Física, queremos que seja metafísica e, no entanto, a metafísica jamais fala, jamais mandou uma palavra, jamais respondeu, quer dizer, está disfarçada para além da outra margem. O que encontra n' O Vale da Paixão é isso elevado a um expoente muito íntimo porque tudo é feito num reduzido espaço, no espaço concentrado das paixões.

 

A propósito de paixões, referiu, numa outra entrevista, gostar de colocar as personagens umas diante das outras porque lhe agrada o embate de sentimentos. Ao ler esta frase, lembrei­‑me de Custódio que é uma personagem em quem conflui uma variedade de sentimentos, em que ele se vê perante situações muito peculiares na sua vida e até somos levados a pensar se aquela personagem sente de mais ou sente de menos, se sente ou não sente, devido à confusão de sentimentos e pensamentos (em) que vive.

Custódio é o ser mais completo que está na obra. Eu acho que é legítimo pensar que ele até não sente, porque de facto ele no fundo é o perfeito, porque ele é o olhar do silêncio. Eu, quando me lembrei de lhe chamar Custódio, nem me lembrei que era o nome do anjo, a certa altura é que me lembrei e quando fui rever os nomes e decidi manter esse nome. O que é curioso é que o nome que me tenha vindo à cabeça tenha sido mesmo Custódio, e de facto ele tem qualquer coisa de angélico. Ele nunca expressa demasiado os seus sentimentos, mas a prova que ele sente é que ele está no momento exato, no lugar exato, amparando quando é necessário. Ninguém poderia ter essa conduta se não estivesse a registar com uma espécie de agulha magnética finíssima aquilo que está a acontecer na vida dos outros.

Ele tinha tido uma brecha na vida, ele era um homem com defeito e isso levou­‑me a pô­‑lo à margem dos outros. Eu gosto dessas figuras, eu tenho a ideia que a figura que tem o defeito pode colocar­‑se na margem em relação aos outros e, portanto, tem o ponto de observação sensível e ao mesmo tempo revelador daquilo que são os outros porque não está disputando o lugar central e como tal, está disponível para se aperceber dos movimentos dos outros e para viver em diferido as vidas dos outros e deixar que em si bata por completo o movimento da autoridade dos outros.

Eu gosto dessas figuras, aliás a figura da Milene é isso e de algum modo a figura de Eva Lopo n'A Costa dos Murmúrios também o é, são figuras que por uma razão qualquer se colocam à margem e podem ver o que outras figuras que, estão empenhadas no triunfo da sua posição, não podem ver. Por isso, eu gosto muito do Custódio.

 

O silêncio também é uma forma de transmitir algo...

É e do ponto de vista da criação, quando temos um grupo humano que se põe à volta da nossa secretária para entrar para dentro de um livro, aquele que não fala mas vê e sente é muito atrativo... É a mente, é a projeção de quem está a escrever, é o outro, é, no fundo, a alteridade do próprio autor, coloca­‑se onde o autor gostaria também de estar.

 

Os marginalizados são sempre figuras que a atraem, como acabou de dizer. Gosta de escrever sobre os que sabem resistir. O facto de escrever sobre estas figuras é alguma chamada de atenção para o leitor? É, como acabou de dizer, para mostrar que são aqueles que têm uma percepção diferente do homem comum... ou há algo mais?

Eu gosto dos marginalizados para a literatura, para as minhas histórias, porque eles têm o poder do olhar. Eu não faço uma escrita de um marginalizado porque socialmente é débil, eu não tenho uma visão desse ponto de vista marxista, não estou só para denunciar, seria uma perspetiva muito curta dizer que escrevo sobre os desfavorecidos... para mostrar só que existem ou para reiniciar a luta de classes. Eu não estou lá, nunca estive, não é isso, eu estou lá porque eu gosto do marginalizado porque tem um aspeto que não é marginal, que é o centro do olhar; por ser marginalizado, ele é uma figura, é um farol brilhante porque tem a capacidade de resistência, tem a capacidade e o domínio do olhar e pode, assim, face àquilo que é comédia humana, revelar cada um dos outros. É por isso que me fascinam tanto estas figuras. Walter é um marginal, no fundo, a filha é uma marginal, no caso do último livro, O Vento Assobiando nas Gruas, aquela figura aproximou­‑se tanto da minha vida exatamente por isso, porque ela [Milene], sendo selvagem e mantendo­‑se selvagem, pode chamar a atenção para os outros com a liberalidade com que o bobo o faz, com que o idiota o faz em qualquer sociedade. Ao idiota é dada carta branca para ele revelar os outros, revelar os defeitos dos outros... denunciar sem ser castigado.

 

Pretenderá demonstrar a quem lê que há mais para além daquilo que aparentam e que há algo escondido dentro de cada um de nós que tornaria o mundo mais perfeito, para falarmos na perfeição de há pouco?

Exato e a minha pergunta é esta: “Por que é que nós somos seres destinados à metafísica e no entanto só sabemos da coisa física?” e aquilo que me surpreende muito é que, sendo a única certeza que a gente tem o facto de que está no mundo onde outros são iguais a nós, porque têm exatamente os mesmos problemas que nós, por que é que vivendo em conjunto, nós não nos entendemos e por que é que nós somos lobos uns dos outros?

Camus dizia: “A Humanidade pode estar sozinha, mas nós temo­‑nos uns aos outros” e essa é a perspetiva também que eu tenho. Eu não sei se a Humanidade está sozinha, mas a verdade é que partindo da ideia que essa coisa grande que a gente queria que falasse não fala, pelo menos há uma coisa que a gente tem a certeza – nós somos irmãos, somos da mesma geração, somos da mesma qualidade humana – por que é que não partilhamos uns com os outros? Porquê esta luta, o arrecadar tão feroz que cada um faz para si? Isso são questões que me coloco, com a certeza absoluta de que não escrevo livros para catequizar ninguém, eu não acho que a literatura ou que os meus livros sirvam para dizer que ao mal opõe­‑se o bem.

Eu não tenho a preocupação de dizer qual é o mal e qual é a receita. Não. A literatura serve para ao mal opor a beleza, dentro da beleza eu acho que o bem é uma parte ou que a beleza é uma parte do bem, estão misturados, mas eu não sei resolver. Se eu soubesse a chave do bem, eu era política, eu não escrevia, mas eu não tenho a chave do bem, eu penso ter algumas chaves, pequenas chaves, para a beleza e então são essas que eu utilizo e quando me pergunta porquê, qual é a intenção, é esta – é para ajudar que outros se espantem comigo e que pensem sobre isso com palavras que tenham a altura suficiente para, ao mesmo tempo, os provocar e não os magoar, que pensem sobre o mal, mas ajudados por algo que lhes dê um impulso para uma elevação.

 

Já li O Vale da Paixão várias vezes, mas desde a primeira leitura que fiz, o que me despertou logo a atenção foi o facto de ser um livro com um ritmo tão veloz apesar de dar conta basicamente de sentimentos e emoções que nos levaria a pensar mais num ritmo lento, quase parado. Quase parece um diário, acompanha o dia­‑a­‑dia daquela rapariga... Estava na sua mente elaborar uma narrativa deste género ou ela foi­‑se construindo à medida que o processo de escrita ia avançando?

Ela foi­‑se construindo, porque a génese dela era um conto. Quando eu comecei a escrever, escrevi durante os três dias de Carnaval, escrevi um conto que tinha muito a ver com aquele conto que a filha de Walter em certa altura lê ao pai. Só que quando eu iniciei, percebi que aquela figura não podia ser assim, percebi que a figura não era reduzida, que estava diante de uma figura imensa e isso é o magnífico de quem escreve, é que nós temos ideia que nos entra uma figura pequenina e, a certa altura, ela começa a crescer dentro de nós e a dizer: “Olha, eu não tenho só costas, tenho rosto, tenho passado!”. A pouco e pouco vai crescendo, tem uma vida, traz a família e traz viagens... é uma coisa absolutamente deslumbrante.

O momento em que a gente abre a porta a uma personagem é um momento terrível, porque a gente sabe que ou abre para uma figura que tem um potencial magnífico ou, às vezes, pode enganar­‑se e pode ser uma figura enganadora que, no primeiro momento, entra com uma grande estatura, depois é oca, a pessoa para além dela não encontra mais nada. Todos os escritores de uma maneira ou de outra falam disto, como se fôssemos levados por falsas miragens de vez em quando. Neste caso foi o oposto, eu pensei que tinha um ser pequenino embrulhado naquela manta e de repente percebi que não. Eu não estava diante do “Soldadinho Fornicador”, mas estava diante de uma figura que era imensa, que começava a crescer, a ter um rosto complexo e nessa altura estava diante de uma família, estava diante de quarenta anos.

O que acontece é que esse ritmo é o de uma narrativa rápida como o conto, porque o conto, aliás a génese da palavra é muito curiosa porque “conto” significa a ponta do remo, da vara que mergulha na água, (há filólogos que atribuem outro significado mas este é o significado que parece mais correto), “conto” vem daí, vem da ponta do remo que é o suficiente para avançar, só se mete na água o suficiente para avançar. O conto, em geral, não precisa de grandes dissertações, precisa que a dissertação seja reduzida ao mínimo para poder avançar; isso é que faz o ritmo do conto. Este livro nasce com esse ritmo, porém é uma história que, ao mesmo tempo, caminhou sobre dois campos – o campo da introspeção, isto é, dos sentimentos interiores e ao mesmo tempo a parte histórica em que decorre que é longa – e, portanto, tinha que escolher os momentos absolutamente fundamentais dentro dessa história longa porque, caso contrário, não se suportaria. Quando nós estamos a escrever, nós temos a noção daquilo, porque nós próprios antes de termos o livro para o outro ler, temos um livro que estamos a escrever e lendo ao mesmo tempo. Não se suportaria só o prolongamento de cenas que tinham como finalidade alguma coisa que estava ali ao alcance da mão, então tinha de ser rápido, escolhendo, dentro da linha da história, apenas aquilo que era absolutamente essencial e é por isso que tem essa ideia de um ritmo rápido e forte, apesar de ser sobre sentimentos.

Eu aprendi imenso com esse livro, sobre a própria escrita. Olhando para trás, olho para outros livros e vejo que outros têm algum desperdício em relação àquilo que eu gostava de fazer. Eu gostei imenso de ter escrito esse livro sob esse impulso veloz. Aprendi imenso com esse livro, aliás foi talvez o livro em que eu escrevi mais páginas que não reescrevi, foi um livro que tem muitas páginas onde eu reconheço que as escrevi definitivamente à primeira.

 

Essa ideia do conto que se transforma em romance faz­‑me pensar em “A Instrumentalina”. Eu li o conto muito depois de conhecer O Vale da Paixão e achei­‑o tão idêntico que me perguntei se o romance seria uma ampliação do conto, se na altura em que escreveu “A Instrumentalina” ficou com uma sensação de coisa incompleta, e sentiu necessidade de ampliar, surgindo, assim, O Vale da Paixão. Eu encontrei tantas afinidades quer na personagem masculina quer na feminina quer nos objetos de estimação que um parece a ampliação do outro...

Sabe, há pessoas que têm feito essa associação. Se me disser isso eu penso que tem toda a razão, só que eu não o senti assim e eu penso de uma outra maneira. Penso que em quase todos os meus livros existe um núcleo, que é o de uma rapariga jovem à busca do amor e eu acho que isso está em quase todos os meus livros, desde O Dia dos Prodígios passando pel'O Cais das Merendas (onde isso talvez esteja menos é n' A Costa dos Murmúrios). É muito curioso porque quero às vezes sair desse esquema mas eu acho que esse é um esquema central, só se eu escavasse na memória primitiva poderia talvez encontrar a razão, mas recuso­‑me a fazer isso. Acho que estar a escavar no que cá existe não vale a pena, o melhor é continuar a escrever. É, decerto, uma imagem que me seduz e que é a origem que me desencadeia a escrita – a ideia de uma rapariga que sabe coisas que outros não sabem. A menina d' “A Instrumentalina” também sabe, ela própria é que desencadeia a história, sabe uma coisa mas não tem a força real dentro do núcleo para se impor. Ela sabe com um poder subversivo atrás para poder desencadear coisas e, no seu percurso de relação, existe uma figura amorosa que ela ama à distância e dentro dessa ligação existe algo que, sendo distanciado natural e organicamente, ela pode ensaiar, algo semelhante àquilo que é o amor puro, o amor sem querer nada em troca e, portanto, o amor completo.

Esse ensaio do amor completo que a jovem faz é alguma coisa que me faz escrever, aliás, há uma história pequenina, muito pequenina (por acaso estou a lembrar­‑me disto agora pela primeira vez), numa das primeiras revistas Ler. Pediram­‑me um depoimento qualquer e eu escrevi um texto sobre uma memória da minha vida, que Vergílio Ferreira adorou e que é a história de uma menina pequena que se perde na multidão onde há um homem que a põe ao colo e anda entre as pessoas a perguntar de quem é aquela menina. Essa foi uma história pessoal vivida por mim quando era pequena. É um facto que eu tive um pai frágil, o meu pai era um ser maravilhoso mas foi uma presença muito frágil e eu vivi muito com a minha mãe e quando eu era pequena, deveria ter uns três anos, uma vez em Loulé sucedeu que estávamos numa esplanada de noite e eu fugi da minha mãe. Alguém me apanhou (foi um homem) e ninguém sabia quem eu era e esse homem (lembro­‑me perfeitamente porque ele contava muitas vezes essa história), subiu­‑me para os seus braços e andou entre as pessoas a perguntar de quem era a menina e a menina não era de ninguém. Quando a minha mãe apareceu, eu não queria ir com ela, eu queria aquele homem, no fundo eu gostei imenso daquela apresentação que aquele homem fez e das pessoas, foi uma espécie de reconhecimento da minha existência, é o batizado de que eu me lembro – foi ao colo daquele homem. Quando eu escrevi essa pequena história, Vergílio Ferreira adorou e disse: “Você acaba de escrever uma coisa sobre o São Cristóvão!”. Claro que eu não tinha pensado nada disso, mas foi muito curioso: a imagem do São Cristóvão a atravessar o ribeiro com o Menino Jesus. Ele disse: “Não é nada erótico que está aqui, o que está aqui é a criança que quer ser levada pela mão poderosa e misteriosa”.

E eu, muitas vezes, penso, no fundo nós nunca sabemos o que é que na nossa vida nos faz escrever, nos faz conduzir de determinada maneira, são coisas misteriosas da nossa vida. A verdade é que há um eixo onde eu me apoio para a escrita, porque na escrita tudo é um desconhecimento, nós partimos para a escrita e tudo é revelado, mas é bom apoiarmo­‑nos em alguma coisa que seja conhecida para não nos sentirmos completamente desapoiados. É assim também quando escrevemos sobre uma coisa que é aterrorizante, nunca podemos escrever só sobre o terror, o terror só por si não é matéria literária, nem a guerra, nem a violência só por si o são, não são matéria artística. Tem que ter alguma coisa de mistura que seja profundamente atrativo, que dê um balanço das coisas.

 

Outro dos atrativos d'O Vale da Paixão é o facto de ser muito intenso a tratar as relações humanas diversas, chegando a tocar em relações proibidas. Encara o relacionamento humano como algo que deve ser vivido tão intensamente que até é legítimo que entre por caminhos proibidos?

Não deve, a realidade é que é essa. Eu acho que a casa humana é uma casa cheia de paixões fortíssimas, como Eduardo Lourenço disse há tempos, e eu estou plenamente de acordo, dentro da família as paixões humanas estão todas em síntese e há, de facto, uma espécie de ensaio de tudo o que é o amor violento, a repulsa enorme, o ódio, o desejo de abater, tudo está concentrado dentro da família. Depende do grau de cultura das pessoas e depende das circunstâncias, depende da qualidade humana que cada um traz dentro de si, a gestão desses sentimentos porque no fundo são seres humanos que estão próximos uns dos outros. É por isso que a questão do marido que bate na mulher é alguma coisa que não tem possibilidade de se resolver a não ser os casos gritantes, porque a violência é uma componente do próprio amor. Quando ela passa para uma situação de barbárie, para uma situação de violência que é o do forte sobre o fraco, ultrapassa aquilo que é a componente violenta natural para passar a ser alguma coisa de criminoso. Essa barreira é difícil de gerir. Uma coisa é o discurso de quem pune e diz: «É horrível a violência doméstica» e é, tem de haver leis, polícia, organizações, sítios de compaixão pelas pessoas que são espancadas. Mas há um aspeto que as pessoas têm de saber, é que a barreira entre aquilo que é o amor, o que é a violência, o que são as relações domésticas que separam o amor e o ódio são finíssimas.