SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número32Maria José de Quevedo PessanhaMaria Helena Ferraz Trindade índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

PIONEIRAS

Justa Matilde de Carvalho e Costa

 

 

Marília Viterbo


Justa Matilde de Carvalho e Costa nasceu na freguesia da Ajuda em Lisboa, dia 20 de Agosto de 1815. Casada com Francisco António da Costa teve duas filhas, Amélia Cardia, médica e escritora e Alice Cardia, parteira que assistiu ao nascimento dos Príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel.

Amélia Cardia concluiu o Curso de Medicina em 1891, com alta classificação, e foi uma das primeiras alunas da Faculdade de Medicina. Foi também defensora dos Direitos das Mulheres, pugnando por acesso igual a profissões geralmente desempenhadas por homens.

Não sabemos o que foram os primeiros anos de vida de Justa Matilde. Sabemos apenas pelo que nos diz na Introdução do “Novo Tratado de Educação Física da Arte Racional”, obra que escreveu em 1877, que aos 23 anos se encontrava convalescente de doença grave que durou mais de dois anos.

Diz­‑nos nessa Introdução que foi um dos médicos que a tratou que lhe perguntou se não quereria seguir a vida de parteira, pelo que teria de se inscrever na Escola Médico Cirúrgica de Lisboa. Esta Escola tinha poucas alunas pelo que o governo daria facilidades a quem se inscrevesse para fazer o curso. Foi dia 7 de Outubro de 1840 que recebeu um aviso para se apresentar na Escola a fim de ser examinada.

Foi admitida e iniciou o curso sem falar com a família e os amigos. Quando todos souberam tentaram dissuadi­‑la, mas ela continuou e refere que a oposição da família foi até um estímulo.

De 22 estudantes só quatro terminaram o curso. Justa Matilde nunca faltou, nem foi repreendida. Aprendeu a vacinar, observou todas as doentes que sofriam de doenças nos órgãos genitais, assistiu a autópsias e conheceu “moléstias” cuja existência estava longe de saber que existiam.

Refere que já no segundo ano foi chamada pelo Lente para saber se tinha sido ela a aluna que tinha pedido para observar uma determinada doente. Ela respondeu que sim porque pretendia aprender todas as moléstias que poderia encontrar na vida profissional e aquela doente estava já há três meses internada com o diagnóstico de gravidez. Justa Matilde observou a doente e afirmou que não havia gravidez mas sim um tumor que era afinal “um polypo maior que um ovo”.

Ao chegar ao fim do curso, em 1842, pediu orientação ao Lente que sempre a tinha apoiado. Este respondeu­‑lhe que só o trabalho a ajudaria pelo que Justa Matilde instalou­‑se na Rua do Ferragial de Baixo em 1844, onde trabalhou 12 anos sem qualquer ajuda, e durante 30 anos exerceu a profissão em Lisboa, tendo tido muita clientela e gozado sempre de bom crédito.

Foram 34 anos de trabalho prático e teórico durante os quais escreveu duas obras, a primeira “Tratado de Partos ou Quadro Elementar obstétrico para desenvolver ideias às alunas que se dediquem à Arte Obstétrica”, publicado em 1874 e o segundo “Novo Tratado da Educação Physica do Ente Racional” em 1876.

É no Prefácio do seu primeiro livro que mostra claramente os objetivos que nortearam o seu trabalho que dedica à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, instituição que tinha sido recém­‑criada.

 

“Muito nobre e ilustre Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, eu vos saúdo e ofereço este pequeno tratado obstétrico, fruto das minhas vigílias em trinta e três anos; desculpe alguma falta, atendendo que é o primeiro feito de uma parteira da escola em Portugal. A escassez de recursos necessários tendentes a desenvolver as ideias das novas parteiras e aperfeiçoar o seu espírito se deve a opinião desfavorável que se faz de uma grande parte desta classe e de que elas não são causa, mas sim o atraso actual da escola em seu favor, pois não tem hoje nem sequer um escrito; a sua educação científica limita­‑se às preleções do digno lente… Atendendo à falta de escritos deste género no nosso idioma e à grande necessidade que as estudantes têm de compreender as doutrinas que fazem parte essencial da sua profissão, empreendi esta tarefa, com o desejo de ilustrar a classe a que pertenço, e fazer um serviço à sociedade. Os conhecimentos alcançados nesta laboriosa vida de escolhos, uma pouca de experiência e a consciência da necessidade, são a base fundamental da minha obra: com a leitura, as aspirantes a parteiras poderão cultivar a memória, familiarizarem­‑se com a linguagem da ciência antes de se apresentarem à sua matrícula e, quando completarem o curso, acharem­‑se aptas para exercerem a sua profissão com a dignidade que este cargo requer, merecendo a estima pública e a confiança dos médicos, a quem são obrigadas a respeitar, contendo­‑se nos limites que lhes são marcados por lei, depois de melhor os compreenderem. Oxalá que esta tarefa seja recebida com igual interesse pelas pessoas a quem é dedicada.”

 

Refere que iniciará a sua obra dando algumas noções de História Natural Elementar porque considera que as parteiras devem ter conhecimentos gerais pelo que inclui noções de Zoologia e História Natural, onde inclui Anatomia, Fisiologia ou Ciência da Vida. Só depois continua com as matérias científicas da ciência obstétrica, incluindo todo o saber da época nesta área científica.

De salientar a sua visão pedagógica que se verifica pela inclusão de ilustrações ao longo de toda a obra, devidamente legendadas, e que se iniciam pela apresentação do esqueleto e de todo o corpo humano incluin­do o ovo fecundado e o seu desenvolvimento ao longo dos meses e termina com o feto no momento do parto.

A autora tem assim três objetivos gerais: responder às necessidades que os estudantes têm de compreender as doutrinas da profissão, ilustrar a classe a que pertence e prestar um serviço à sociedade.

Considera as qualidades físicas da parteira também importantes; deve ter boa saúde, ser robusta e possuir mãos compridas, dedos delgados e flexíveis.

Deve também possuir boa memória, presença de espírito, ser carinhosa, ter bom coração e ser desinteressada.

Começa por recapitular as condições de matrícula das estudantes e os documentos a entregar de acordo com o que já estava consignado na legislação em vigor na época, sublinhando a importância tanto do ensino teórico como do ensino prático na enfermaria das parturientes e ainda a necessidade de fazer “Diários”, onde deverão ser registados todos os elementos relativos à parturiente e ao parto, nomeadamente a apresentação e posição do feto, a duração do parto, o sexo, o peso e o cumprimento do feto ao nascer. Considera que atenção e carinhos poderão evitar danos tanto à parturiente como ao feto.

Enuncia os deveres da parteira lembrando que para além do saber técnico ela deve ser carinhosa, procurar diminuir o sofrimento à parturiente, consolá­‑la, e tratar da mesma forma pacientes infelizes e pacientes de alto nível social e ricas. Desenvolve todas as atividades ligadas à observação da parturiente, quais os posicionamentos corretos tanto da parturiente como da parteira, enunciando todas as manobras necessárias para fazer o diagnóstico da situação e decidir se tem ou não de chamar o cirurgião.

Enumera todas as atividades ligadas à observação da parturiente, explicita os posicionamentos corretos, tanto da parturiente como da parteira, enuncia as manobras necessárias para fazer o diagnóstico da situação e forma de atuar.

Chama a atenção para o funcionamento da Escola de Parteiras de Lisboa que, funcionando há cerca de 35 anos, nem sempre tem cumprido os elementos legais na admissão das estudantes, permitindo a admissão de candidatas, muitas vezes por dó, outras por haver poucas candidatas. Solicita às autoridades competentes que evitem “abusos imperdoáveis” que podem vir a acarretar “desgraças sobre a humanidade que confia cegamente na sua perícia, ofuscando ao mesmo tempo a glória de uma corporação que deve estar superior aos preconceitos vulgares”.

Por fim congratula­‑se com a Lei de 13 de Junho de 1970 que permite que as parteiras estudem nos seus municípios e venham fazer os exames na Escola Médico­‑Cirúrgica de Lisboa, o que facilita a obtenção de diplomas a profissionais de várias regiões.

Não se esquece de referir deveres particulares, nomeadamente os religiosos, de acordo com a religião professada pela família.

Faleceu no dia 18 de Novembro de 1884.

Esteve representada na Exposição de Livros Escritos por Mulheres, organizada pelo Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, em 1947.