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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

SOBRE IVONE LEAL

Ivone Leal (1914-2013)

Maria Reynolds de Souza1

 

Na notícia da morte de Ivone Leal evocamos o “auto-retrato” que traça no 1.º número da revista de Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, iniciando o texto com esta frase: «Gostava de dizer de mim que sou alguma coisa de importante mas, de verdade, só posso dizer que sou o que fui toda a vida: uma aprendiza», terminando: «Tenho pena e não tenho de continuar aprendiza, porque assim continuo, sem vergonha, a poder aprender e ter o gosto de o fazer.»

Se é verdade que, como diz Ortega e Gasset, a vida nos é entregue «vazia», e nós temos que inventar «para a nossa existência um sentido, uma graça, um sabor», o que é «uma faina poética de dramaturgo ou novelista», podemos, sem dificuldade, verificar que a Ivone nunca deixou de aprender e exercitar essa difícil tarefa e, mais, de reflectir e comunicar a sua constante aprendizagem, o mesmo é dizer que a ensinava, sendo assim, afinal, «mestre» de todas as pessoas que com ela foram convivendo e dela continuaram a receber uma lição de vida.

Nascida em 1924 e criada em Évora, ali se preparou para frequentar a Faculdade de Letras de Lisboa, onde se licenciou em Ciências Históricas e Filosóficas com uma tese em História da Arte, área a que se dedicou durante cerca de dois anos como bolseira do Instituto para a Alta Cultura. Enquanto universitária, desenvolveu grande actividade na JUCF, de que foi presidente nacional. Ainda hoje se ouvem referências de então estudantes à clareza e alegria com que nas reuniões expunha os seus raciocínios. Então, como sempre: apreensão rápida, resposta pronta, argumento forte. Tomou parte activa na organização do célebre Congresso da Juventude Universitária Católica realizando em 1953. Mais tarde, entrou na órbita do Graal. Quer um quer outro destes movimentos católicos se dedicavam – o Graal continua – à situação das mulheres nas circunstâncias que lhes eram específicas. Aí se intensificou, certamente, o seu interesse por estas questões e se aprofundou a sua reflexão, que se traduziu em acções com repercussão em muita gente.

Já casada e com filhos pequenos, resolveu, com algumas amigas, fundar uma escola para crianças. Depois de se debruçarem sobre os melhores métodos da pedagogia e forjarem aquele que julgaram corresponder ao desejo de uma educação de excelência, abrem ‘Os Castores', que se não foi a melhor, foi uma das melhores escolas que houve em Lisboa. Que o digam os alunos e que se observem os resultados ainda hoje visíveis dos métodos seguidos.

Finda, por razões de ordem financeira esta experiência ímpar, a Ivone lança-se noutro campo em que vai aplicar noutra perspectiva o que aprendera anteriormente: ingressa na Comissão da Condição Feminina ainda em instalação. Aí se entrega, em 1975, a estudar o que imediatamente se evidenciava necessário à melhoria do estatuto das mulheres portuguesas. E toma parte nas acesas discussões das organizações não governamentais que foram o embrião do Conselho Consultivo daquela Comissão, debatendo os problemas mais prementes que era preciso considerar. É então encarregada de organizar actividades de formação destinadas a sensibilizar para os problemas do trabalho das mulheres, actividades essas oficialmente integradas no Serviço Cívico Estudantil. Diversos grupos de raparigas passaram, assim, por estágios em pequenas fábricas dos arredores da capital, orientados e acompanhados pela Ivone.

Segundo ela própria conta no citado ‘auto- retrato', ao ter um dia de definir o que são trabalhos domésticos, reparou na quantidade de tarefas «todas elas altamente especializadas» realizadas «sem horário e economicamente não contabilizadas», maioritariamente levada a cabo por mulheres, que quando questionadas sobre o que faziam respondiam «não trabalho». E desencadeia-se o seu interesse pela problemática do trabalho doméstico e do quotidiano das mulheres, «esse conjunto de trivialidades repetidas», essa «riqueza contida na estrutura e nos conteúdos do viver quotidiano que os saberes e os dizeres das mulheres incansavelmente edificam e sustentam» e que projectam «para além do bem-estar material que aparentam». Não mais deixará de aprofundar esta temática, para a qual foi, em Portugal, talvez a primeira pessoa a chamar a atenção. Desenvolveu-a em múltiplas perspectivas, e encontramo-la sempre presente em todos os seus escritos e ditos. Entre eles, o seu artigo vindo a lume nas Faces de Eva, Mulheres, Senhoras e Escravas do quotidiano doméstico – memórias do vivido de 1930 a 1990, no qual nos oferece uma reflexão muito interessante, em que alia o afecto ao conhecimento, acerca desta faceta da vida de quatro gerações que lhe são familiarmente próximas. No breve ensaio publicado nos anos 90 – Os Saberes das Mulheres na criação e transformação cultural –, conceptualiza a sua reflexão: «O quotidiano é, por excelência, o lugar do conflito entre o racional e o emocional. É no quotidiano que se põem com maior agudeza os problemas básicos da produção social dos seres humanos. Ora são as mulheres que asseguram ainda hoje o quotidiano, muito particularmente o doméstico.» (…) «Ao falar de transformação cultural não pode pois ficar esquecida a sabedoria especificamente feminina e o poder que esta lhe confere».

O seu interesse pelas questões da educação fez com que se dedicasse ao estudo da imagem feminina transmitida pelos manuais escolares e pela literatura infantil. Daí nasceram dois trabalhos ainda hoje pertinentes e amplamente citados: A Imagem Feminina nos Manuais Escolares – aí se definem conceitos e se analisam sob esta perspectiva os livros de leitura do ensino básico – e O Masculino e o Feminino em Literatura Infantil, em que é feito outro tanto em relação a obras para a infância. Nessa época, faz também parte da equipa responsável pelo Ano Internacional da Criança em Portugal.

Regressa por uns anos à investigação e foca o seu trabalho sobre a história das mulheres, estudando os papéis sociais que desempenharam ou que é esperado que desempenhem. Integra-se nos novos métodos e caminhos que a ciência entretanto fora abrindo e proporciona-nos diversos estudos que apresenta sob a forma de comunicação em seminários ou dando-os à estampa. Estudos como A mulher e o amor no século XVI: afectividade, sexualidade, casamento – uma abordagem do tema, em que, para o efeito, compara três fontes: O livro das Três Virtudes, de Cristina de Pisano, O Leal Conselheiro, de D. Duarte, e o Espelho de Casados, do dr. João de Barros, salientando-se o que evolui e o que permanece; noutra ocasião oferece-nos As Mulheres criadoras e transmissoras da Identidade Cultural, no qual fundamenta a importância do que se aprende nos primeiros anos de vida em família. No seu livro Um Século de Periódicos Femininos: Arrolamento de periódicos entre 1807 e 1926 (1992), inventaria este tipo de jornais e revistas, mas também aprofunda os conteúdos dos títulos mais relevantes, desvendando as correntes dominantes e as ideologias que orientaram tantas gerações femininas que nos antecederam e condicionaram. Coordena a identificação das Fontes para a História das Mulheres (1994) e procede ao Arrolamento Cronológico dos Manuais de Civilidade Impressos em Portugal existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, desde o século XVI aos nossos dias. Também aqui foi pioneira na pesquisa e na exposição dos seus resultados.

De volta à Comissão, ao tempo já denominada ‘Para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres', recorre-se da sua revisita da História e das suas renovadas relações com o mundo académico. Alia então o seu saber e o seu entusiasmo no estímulo dos estudos sobre as mulheres que então davam os seus primeiros passos em Portugal, através da proposta de temas de estudo, da edição de publicações, da realização de numerosos seminários e conferências, através dos quais a Comissão quis chamar a atenção para este vasto campo de investigação, ao tempo por explorar. Seja realçado o contributo que deu à preparação do Congresso O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, realizado durante as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e para o qual trabalhou com o empenho que lhe era peculiar, até à sua aposentação, que o antecedeu poucos meses. Lembramos a propósito a Exposição fotográfica Os Trabalhos e os Dias – onde é evidenciado o quotidiano das mulheres – por ela gizada e dinamizada, patente nos átrios da Fundação Calouste Gulbenkian durante esse congresso. Vem depois a lume o seu estudo Cristina de Pisano e todo o universo das mulheres, em que se põe em foco a figura daquela que foi pioneira «no Ocidente europeu» que «fez da escrita a sua profissão», obra onde nos é apresentado o Espelho de Cristina «um livro pedagógico sobre comportamentos sociais», segundo as palavras da autora.

Deve ainda sublinhar-se a sua maneira de expor e de escrever, a forma clara, colorida e rica com que comunicava, sem descurar o rigor da análise e o brilho da conclusão, tornando a leitura da sua prosa um prazer. Autêntica cortesia para com quem a consulta.

De lembrar ainda o seu trabalho na Comissão de Ética para as Ciências da Vida, onde representou a CIDM no início da sua actuação; na verdade, a sua formação filosófica, o conhecimento da problemática das mulheres, a seriedade do seu trabalho, faziam dela a pessoa mais indicada para defender a ‘causa' das mulheres. Tarefa que lhe exigiu um estudo aturado das questões em apreço, esforço que realizou com exemplar dedicação.

Não podemos deixar de referir também o impulso dado à criação da APEM – Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres –, despendendo tempo e trabalho na sua fundamentação, sem desdenhar ocupar-se de todos os desinteressantes processos administrativos. Mais tarde, abraça com entusiasmo a fundação da Associação Portuguesa de Investigadoras sobre História das Mulheres, APIHM. Encontramo-la de novo integrando desde o início o grupo de investigadoras das Faces de Eva. E continua a sua contribuição para a história das mulheres colaborando no Dicionário no Feminino, iluminando a história de tantas mulheres em que vale a pena reparar.

E porque a Ivone Leal nos fez olhar de outro modo para o quotidiano das mulheres, não pode ficar na sombra o seu quotidiano. Este, sempre presente, reflectivo e reanimado, com inteligência e, não raro, humor. Não se pense que era sisuda, que o diga quem ouviu as suas sonoras risadas!

Casada durante mais de meio século, que sabedoria isso implica!

Mãe de seis filhos, uma vida irreversivelmente entrelaçada em outros tantos desígnios!

Avó de dez netos, a transmissão cultural interpela-a!

As amizades fortes que foi sabiamente cultivando!

As limitações próprias de uma vida longa!

Quem com ela conviveu poderia, porventura, adivinhar as asperezas com que a vida a surpreendeu. Lutadora sempre, guerreira, dardejando furiosa contra a adversidade – sem, contudo, se dar por vencida, porque também aqui a interiorização do aprendido, a cultura adquirida, assimilada, desenvolvida, foram fazendo maturar sentimentos, pensamentos, saberes, atitudes.

A reinvenção da vida, o sal, a graça e o sabor com que aprendeu a temperar, acabavam sempre por levar a melhor, conservando a sua identidade, a sua personalidade.

Por ter sido sempre aprendiza, fica-nos a memória de uma grande mestra – dos estudos e da vida – de «todo o universo de mulheres»…

 

Nota

1Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Assessora da então Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.