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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

(AUTO)-RETRATO

Elza Chambel

 

 

 

É difícil a qualquer pessoa falar de si na medida certa, sem exageros ou subterfúgios, pois podemos estar a ver­‑nos com lentes distorcidas, mas uma vez que aceitei o desafio vou procurar levá­‑lo a bom porto.

Nasci em 1936, no Rio de Janeiro, mais precisamente em Ipanema. Os meus pais, transmontanos de Vinhais, tinham emigrado para o Brasil nos anos 1920 e desenvolvido a vida profissional e familiar em Ipanema e Copacabana, bem integrados na comunidade. Somos três irmãos (sou a mais velha) e todos frequentámos o colégio Notre Dame – Ipanema, onde entrei em março de 1941, com 5 anos e 2 meses, para o 1.º ano. O colégio, de freiras da congregação de Santa Júlia de Billiart, já nessa ocasião praticava a coeducação e era um polo de modernidade. Fui sempre aluna de Quadro de Honra e adorava o colégio, mas o meu pai faleceu inesperadamente em abril de 1945 e a minha mãe depois de fazer o inventário de menores no Rio de Janeiro, achou por bem vir pessoalmente tratar do mesmo em relação a algumas pequeníssimas propriedades localizadas no concelho de Vinhais. E no verão de 1946 fomos “transplantados” de Copacabana para uma aldeia “perdida” sem luz elétrica nem água canalizada, sem saneamento básico e cujo meio de transporte preferencial era…o burro!

Passar de um clima tropical para o inverno gélido de Trás­‑os­‑Montes não foi fácil mas creio que essa experiência foi o eixo motor da minha aprendizagem de vida, procurar transformar constrangimentos em oportunidades. No colégio tinha feito o 4.º ano, com distinção, mas a legislação portuguesa exigia­‑me que “perdesse” dois anos antes de entrar para o liceu, pois teria de fazer a 3.ª e só depois a 4.ª classe: considerámos, a minha mãe e eu, uma situação inadmissível e optámos por me preparar apenas para o exame de admissão (apoiada por uma regente escolar porque não havia professora na aldeia) que fui fazer em julho de 1947, no Liceu de Bragança, cheia de medo porque tinha sotaque…mas o meu colégio tinha­‑me dado uma base educacional muito exigente e a minha nota foi a melhor do liceu, 18 valores que deram imensa alegria à regente escolar com quem tinha feito a preparação.

Entre 1947 e 1954, frequentei o Liceu Nacional de Bragança e fui sempre do naipe dos melhores, com exceção de matemática, no 5.º ano, por ter uma relação menos boa com o professor que não admitia eu ter uma nota de 16 ou superior a todas as disciplinas e, no máximo, 14 a Matemática.

Em 1954, iniciei o curso de Direito na Universidade de Coimbra e algo que me impressionou negativamente foi o diminuto número de raparigas, apenas cerca de 10% do total das turmas do 1.º ano.

Fiz o curso de 1954 a 1960, era apenas uma aluna regular mas simultaneamente integrada em várias atividades da Associação Académica, a principal das quais o teatro, o TEUC, Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, cujo Diretor era o Professor Paulo Quintela, da Faculdade de Letras.

O TEUC foi a minha primeira escola de democracia no real, respeito por ideias diferentes, tolerância em relação ao outro, mas exigência no fazer bem feito, no cumprimento das regras aprovadas, por vezes após negociações duras e exaltadas q.b.

Foi a abertura a novos horizontes e culturas através da representação, em Portugal Continental, de clássicos portugueses como Gil Vicente e gregos como Eurípedes, mas também em Moçambique e em quatro “Delfíadas” (Festivais internacionais de teatro universitário) que decorreram em Saarbrucken (1955), Genebra (1957), Bristol (1959) e Coimbra (1961).

Terminei o curso em outubro de 1960 e comecei os estágios de Registos e Notariado, uma vez que a Carreira Diplomática ou a Magistratura, que seriam a minha primeira opção, me eram vedadas por questão de género.

Após o estágio concorri de imediato a lugares interinos e obtive a 1.ª colocação em Janeiro de 1962 como Conservadora Notária de Aljezur na Comarca de Lagos, nessa ocasião ainda sem luz elétrica (segundo os locais seria um “castigo” do Poder Central uma vez que o General Humberto Delgado aí ganhara as eleições em 1958).

O Cartório tinha pouco movimento, quatro atos notariais por mês, mas oito meses mais tarde, quando deixei o cartório por nomeação do titular efetivo, tinha­‑se já estabelecido uma relação de confiança pessoal e técnica e o número de atos notariais, alguns de valores bastante elevados, atingia os 32 por mês.

Surgiu um lugar vago no “fim do Alentejo” e embora com grande apreensão da família e dos amigos concorri e fui parar a Barrancos, terra fronteiriça da comarca de Moura (a 49km), e em que o linguajar habitual não é português nem espanhol, é barranquenho!

Em novembro de 1963, decorrente dos concursos nacionais, tomei posse como Conservadora­‑Notária efetiva do concelho de Marvão, outra terra fronteiriça, desta vez no Alto Alentejo, comarca de Castelo de Vide, em cujo tribunal terminei o estágio de advocacia (18 meses) iniciado na comarca de Lagos e prosseguido na de Moura quando colocada em Barrancos. Entretanto casara e como o meu marido estava colocado em Santarém concorri ao lugar de Conservadora­‑Notária do concelho do Entroncamento, onde estive de março de 1967 a agosto de 1969, data em que, fundamentalmente por uma questão de conciliação entre a vida profissional e a vida familiar (tinha uma filha que durante os dias úteis praticamente só via a dormir…), aceitei um lugar de chefe de secção na Caixa de Previdência e Abono de Família do Distrito de Santarém, onde fui a primeira mulher colocada em funções de chefia, só que tendo “uma parede à frente” no tocante a uma possível promoção visto que o regulamento do Ministério das Corporações, datado de 1963, tempo do ministro Gonçalves de Proença, impedia as mulheres de ascenderem na hierarquia, por razões de género!!! Não tínhamos capacidade emocional para chefiar, era a justificação apresentada!!!

Discutia­‑se então um novo estatuto dos funcionários das Instituições de Previdência e numa reunião do sindicato em fevereiro de 1970, abordei esse impedimento por questão de género, daí ter resultado passar a integrar a comissão de análise ao projeto de estatuto e apresentação de contra propostas. Foi um trabalho empenhado, exigindo moderação, pragmatismo e muita negociação, mas com a publicação do novo estatuto acabaram os impedimentos de género e a partir de agosto de 1972 fui promovida a chefe de Divisão, funções que exerci até dezembro de 1977.

Nessa data, foi publicada a Lei Orgânica da Segurança Social, LOSS, que criava a Segurança Social integrada: a mesma lei instituía as Direções Distritais de Segurança Social tendo em vista a análise da situação em cada distrito, o levantamento de recursos humanos e materiais, constrangimentos e oportunidades com o fim último de preparar o lançamento dos Centros Regionais de Segurança Social. A convite do secretário de Estado da Segurança Social, exerci as de funções diretora Distrital de Segurança Social de Santarém de dezembro de 1977 a dezembro de 1979, quando passei a presidente do Centro Regional da Segurança Social do Distrito de Santarém, lugar que ocupei até 18 de Fevereiro de 1990. De março de 1990 a janeiro de 1991, assessorei a presidente da União Internacional dos Organismos Familiares com a missão fundamental de organizar a Conferência Mundial das Famílias, que teve lugar em outubro de 1990 na cidade de Moscovo.

Em 25 de fevereiro de 1991, assinei contrato com a Organização Internacional do Trabalho para assumir durante 18 meses, em Luanda, o lugar de Conselheira Técnica Principal do Projeto ANG/90, que visava a criação e a implementação do Instituto Nacional de Segurança Social de Angola e o planeamento da organização do sistema de segurança social angolano, cuja Lei Nacional acabava de ser publicada, conjuntamente com cinco técnicos superiores da Segurança Social portuguesa, meus colaboradores de muitos anos, que efetuaram estadias de diferente duração em Angola durante esses 18 meses. Desenhou­‑se a orgânica do INSS, o organograma de cada serviço e deu­‑se a formação inicial ao pessoal existente, criando as bases de funcionamento do Sistema de Segurança Social angolano. A avaliação tripartida (OIT, PNUD, Governo de Angola) do projeto considerou que o mesmo não apenas atingira os objetivos previstos como em alguns pontos os ultrapassara, com maior eficácia e menores custos que muitos projetos homólogos.

Terminado o contrato com a OIT em princípio de setembro de 1992, assumi em outubro a Presidência da Direção da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais (CNSDP) a convite do secretário de Estado da Segurança Social.

A CNSDP passava por uma fase de articulação e colaboração com as congéneres europeias da Áustria, Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Itália, Suíça na criação do Fórum Europeu dos Riscos Profissionais e do Eurogip (sistema de informação partilhada) e foi muito interessante participar na consolidação e desenvolvimento dos projetos do Fórum, cuja presidência era anual e rotativa. Desempenhei funções até fevereiro de 1995, data em que apresentei o pedido de demissão por não concordar com procedimentos assumidos pela tutela que, quanto a mim, careciam de enquadramento legal, como se veio a provar posteriormente. Regressei ao meu lugar base, de Assessora Principal do Centro Regional de Segurança Social de Santarém, de onde saí em 28 de setembro de 1995 para integrar o Gabinete do ministro da Solidariedade e Segurança Social, Dr. Ferro Rodrigues. A partir de 2 de Janeiro de 1996, embora continuando a prestar alguma assessoria ao Gabinete, fui nomeada Comissária Regional do Sul da Luta contra a Pobreza, com a responsabilidade de gestão e acompanhamento do Plano Nacional de Luta Contra a Pobreza (PNLCP) nos distritos do continente ao sul de Coimbra e nas Regiões Autónomas dos Açores e Madeira. A partir de maio de 1998 assumi a Presidência dos Serviços Sociais do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, continuando, a título gracioso, a exercer as funções de Comissária Regional do Sul da Luta Contra a Pobreza. Em novembro de 1999, por motivo de doença grave do Comissário Regional do Norte, assumi também as suas funções. Foi um período de “muita estrada” porque gostava de ir ao terreno, sentir e acompanhar o desenvolvimento das ações, mas tive uma colaboração inexcedível das duas equipas multidisciplinares, sediadas em Lisboa e no Porto, de pequena dimensão mas de dedicação a toda a prova e total conhecimento dos projetos que a cada um competia apoiar e acompanhar.

Em dezembro de 2001, fui convidada pelo secretário de Estado da Segurança Social para integrar o Conselho Diretivo do Instituto Nacional de Segurança Social, com as funções de Administradora Regional de Lisboa e Vale do Tejo, continuando a exercer, a título gracioso, o lugar de Comissária Nacional. Não gostei da experiência no Conselho Diretivo do INSS, demasiado burocrático, com oito pessoas no Conselho Diretivo, e depois com a mudança de Governo, em Abril, as orientações passaram a ser tão diferentes das anteriores, que em julho decidi pedir a reforma, a qual me foi atribuída em 25 do mesmo mês.

Quando reflito sobre o meu percurso profissional concluo que o eixo motor foi mesmo procurar transformar os constrangimentos em oportunidades, algumas das quais foram de tal modo desafiadoras que provocaram um enorme contentamento pelo êxito alcançado.

1 – O Projeto ANG/90/012 da OIT, no qual os peritos portugueses conseguiram formar equipa com os angolanos, no meio das maiores vicissitudes. Foi em 1991, não havia nada, até o papel e os lápis levávamos de Portugal e ao fim de 18 meses até já havia alguns serviços informatizados;

2 – O Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza, cujas experiências e práticas foram ilustradas num estudo da OIT, publicado em português, francês, inglês e espanhol no âmbito do programa STEP, Estratégias e Técnicas contra a Exclusão Social e a Pobreza, em 2003;

3 – E também no PNLCP, a publicação do “Caderno 2000 – Das Palavras aos Actos”, com uma edição bilingue em inglês e francês, baseado nos testemunhos de pessoas em situação de pobreza e exclusão social. Este projeto desenvolveu­‑se, com base na mesma matriz, em vários estados­‑membros da U.E. e alguns países candidatos à adesão, inscrito no objetivo de contribuir para a construção de uma Europa mais justa no plano social, tendo as respetivas linhas de enquadramento sido definidas em articulação com a ESAN, Rede Social de Ação Social, com sede em Bruxelas.

E pronto! A partir de agosto de 2002, passava ao estatuto de “aposentada” da Administração Pública e podia ir para casa “descansar”, abrandar o ritmo, não estar sujeita a horários rígidos e reuniões, muitas vezes desnecessárias e inconclusivas… só que o meu conceito de “descansar” é ter tempo, mas também poder continuar a atuar, embora em diferente perspetiva, nas áreas que conheço e em que sou considerada eficaz.

Assim, além de continuar a fazer voluntariado, participei em missões de consultoria internacional no âmbito de Programas de Organismos das Nações Unidas (OIT, PNUD, UNICEF) em Angola e Cabo Verde, de 2003 a 2008; do Departamento de Cooperação do Ministério do Emprego e Solidariedade em Angola e Timor, em 2002 e 2003; do SENAC (Serviço de Educação Nacional direcionado para o 3.º Setor) de São Paulo, Brasil, em 2002; e da Comissão Europeia e Prefeitura de São Paulo, Brasil, em dezembro de 2009.

Desde outubro de 2006 que presido ao Conselho Nacional para Promoção do Voluntariado, em regime de comissão gratuita de serviço por três anos, entretanto renovada por duas vezes, e nesta qualidade tive a honra de ser Coordenadora Nacional do AEV–2011, Ano Europeu do Voluntariado, representar o país na U.E. e mostrar o que os voluntários fazem em Portugal. O slogan europeu era “Sê Voluntário, faz a diferença!” e os voluntários portugueses durante o AEV­‑2011 mostraram mesmo essa diferença, tendo o nosso Programa sido considerado pela task force da Comissão Europeia como um caso de sucesso e Portugal convidado a apresentá­‑lo na Conferência de Encerramento do AEV­‑2011, que se realizou em Varsóvia em 1 e 2 de dezembro de 2011.

Decorrente das experiências do AEV­‑2011, de novembro de 2012 a dezembro de 2013, participei a convite da Região de Perm, Rússia, no projeto “Voluntariado – Avenida para a Inovação e o Desenvolvimento Social”, cofinanciado pelo Gabinete dos Assuntos Culturais e Sociais da UNESCO, com sede em Genebra.

Esse projeto do Centro de Voluntariado de Perm tem uma parceria local bem estruturada e forte, com a autarquia local, os serviços públicos regionais, as Organizações Não Governamentais, as diferentes religiões (ortodoxa, católica, judia e muçulmana) e pretende divulgar e reforçar o valor do voluntariado dos seus jovens, contando para tal com grande apoio dos respetivos estabelecimentos de ensino.

Tive oportunidade de nas três conferências em que participei, dezembro de 2012 em Perm, maio 2013 em Genebra e novembro de 2013 em Perm, apresentar vários projetos portugueses de acordo com o tema de cada conferência: organização e qualificação do voluntariado, voluntariado de proximidade, voluntariado cultural, voluntariado através da internet.

Foi uma experiência emocionante, primeiro trabalhar com os projetos portugueses na preparação dos respetivos PowerPoint em inglês, depois apresentá­‑los nas conferências e sentir o interesse de participantes de mais de vinte países diferentes, a maior parte fora da U.E. na nossa realidade.

A minha vida profissional não teria sido a mesma sem o apoio das diversas equipas com que trabalhei ao longo dos anos e que me ajudaram a crescer.

TECENDO A MANHÔ, do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, faz­‑me sempre pensar no trabalho em equipa:

“Um galo sozinho não tece uma manhã:

Ele precisará sempre de outros galos.

De um galo que apanhe um grito que ele

E o lance a outro; de um outro galo

Que apanhe o grito de um galo antes

E o lance a outro; e de outros galos

Que com muitos outros galos cruzem

Os fios de sol de seus gritos de galo,

Para que a manhã desde uma teia ténue

Se vá tecendo, entre todos os galos.”

 

A minha vida profissional tem sido assim, sozinha não teria feito a décima parte do que as minhas equipas e eu, em conjunto, fizemos e posso afirmar com toda a convicção que valeu a pena e que aprendi, ao longo da vida, com todos aqueles com quem trabalhei.

 

 

In Memoriam

Elza Chambel (1936-2015), “a senhora solidariedade”, deixou-nos a 19 de maio, após prolongada doença, que encarou com exemplar coragem.

Da sua vida profissional, onde em muitos aspetos foi pioneira, e da sua intervenção cívica falou-nos no autorretrato que aceitou escrever para a nossa revista. Para quem teve o privilégio de a conhecer fica a recordação de uma mulher de aparência frágil, mas de uma enorme força interior, cuja inteligência, afabilidade, otimismo e sentido de humor nos marcarão para sempre.