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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

LEITURAS

Palla, M. A., Reis, P (2014). Viver pela Liberdade. Lisboa: Matéria­‑Prima Edições, 268 pp.

João Esteves

 

“Não é uma biografia, nem um livro de memórias. É um testemunho” [Maria Antónia Palla] saído em Outubro de 2014, com Prefácio de Inês Pedrosa, “A voz, a luz, o voo”, e dedicatória aos netos, “mais uma história”, e “Às minhas amigas e companheiras feministas com as quais trilhei os caminhos da Liberdade”. Na capa, pormenor de uma histórica fotografia de Alfredo Cunha [n. 1953], tirada 40 anos antes aquando do primeiro 1.º de Maio vivido em liberdade, onde se pode ver a protagonista e uma faixa, com a inscrição, atual, “Imprensa com censura é povo sem liberdade”, erguida pelo Sindicato dos Jornalistas.

Pela narrativa – de Patrícia Reis, conjugada com as revisitações na primeira pessoa de Maria Antónia Palla –, pelo encadeamento dos acontecimentos e protagonistas, alguns deles bem familiares a quem tenha presenciado a última metade do século XX português, pelos lugares, odores e cores que se pressentem, começa­‑se a ler Viver pela Liberdade e não mais se para, como se o leitor estivesse a habitar cada um dos momentos respigados de um passado próximo e, simultaneamente, tão distante e em risco de o irem apagando da memória coletiva.

Em Viver pela Liberdade, iniciado com o nascimento no Seixal de Maria Antónia de Assis dos Santos [Palla e Carmo] e finalizado com a concretização da Biblioteca Ana de Castro Osório, “biblioteca especializada em assuntos feministas”, inaugurada oficialmente em maio de 2013, coloram­‑se ambientes em que viveu quando criança, adolescente e adulta e cruzam­‑se visões do mundo contraditórias e antagónicas consoante a linhagem materna – católica – ou paterna – republicana e maçónica –, a(s) família(s) que quis construir, as amizades e afetos que soube preservar, o ambiente profissional, o empenho cívico e o momento político espelhado, remetendo o leitor para lugares, atmosferas, discussões e tomadas de posição que moldaram a autora num percurso vivido livremente porque baseado apenas nas suas próprias opções e decisões.

Particularmente cativante nesta obra a quatro mãos é a consciencialização da influência que os gestos, as palavras, os atos presenciados em família podem ter na estruturação das escolhas das crianças quando adultas – foi por via da avó paterna, Maria Amélia, que se tornou feminista, não por ouvir a palavra mas pelo exemplo de que só se é livre quando se é independente economicamente e que não se deve ter medo de estar sozinha; o gosto pela leitura, em parte resultante da doença pulmonar aos oito anos; e, neste rebobinar simultaneamente memorialista e reflexivo, vale a pena reter como na infância a autora coabitou entre dois mundos antagónicos representados pela liberdade, o republicanismo radical e o anticlericalismo dos avós paternos (Maria Amélia Cruz e José Xavier dos Santos) e o tradicionalismo, conservadorismo e religiosidade dos avós maternos (Rosalina e Hermenegildo de Assis), e como expõe as contradições da figura paterna que, embora republicano, maçom e oposicionista à ditadura salazarista, não deixava de ser um “tirano” em casa, sendo as restrições paternas difíceis de suportar. À falta de Liberdade que existia no país, acresciam as restrições à liberdade individual e familiar impostas pelo pai, Ítalo (em honra de Garibaldi) Ferrer (em memória do pedagogo anarquista espanhol fuzilado em 1909) dos Santos, “democrata na política, autoritário em casa”, contrastando, assim com a noção de liberdade veiculada pelos avós de Maria Antónia Palla, em cuja casa tudo era possível. Também o lugar da mulher no seio familiar é diametralmente oposta, entre uma mãe submissa, Angelina Panico Assis [dos Santos], educada “para casar e ser boa dona de casa”, e a bisavó Guilhermina e a avó Maria Amélia, “mulheres independentes e livres”. Simbolicamente, quando em abril de 2006 recebeu a Ordem da Liberdade, atribuída pelo Presidente da República Jorge Sampaio, “nesse dia fui ao nosso jazigo, no Alto de São João, e levei aos meus avós um ramo de rosas vermelhas” (Palla; Reis, 2014, p. 229).

Após o ensino primário feito em casa por motivos de saúde, sobrevém a liberdade (re)descoberta e preservada durante a frequência do Liceu Francês Charles Lepierre/École Française (1943/1951), escola laica e mista situada no Pátio do Tejolo, ao Príncipe Real, e continuada na Faculdade de Letras, onde cursou Ciências Histórico­‑Filosóficas, com as amizades que perduram, as leituras, as discussões, os debates, o convívio, a influência de (poucos) professores e um quotidiano que, pouco a pouco, contribui para a emancipação relativamente à família e desemboca num primeiro casamento em Setembro de 1953, aos 20 anos, ainda menor e por isso dependendo de autorização paterna, com Orlando da Costa [02/07/1929­‑27/01/2006], seu colega de Letras. Sem nunca esquecer os ensinamentos de Maria Lamas, com quem travou amizade aos 18 anos e que perdurou até ao seu desaparecimento físico e com quem “aprendi o que era a condição feminina” e “o feminismo” (Palla, Reis, 2014, p. 61), de que “o amor não liberta ninguém” e “Faz o que quiseres. Mas sê discreta” (Palla; Reis, 2014, p. 62).

Simultaneamente com apontamentos mais pessoais e íntimos, como a fraterna relação com o irmão Jorge, seis anos mais novo, a construção da sua própria família, primeiro enquanto jovem casada na década de 50, depois com Vítor Palla [13/03/1922­‑28/04/2006] a partir de 1962 e, por fim, após a revolução, já numa “relação de adultos” (Palla; Reis, 2014, p. 152) com Manuel Pedroso Marques, um dos militares que interveio no assalto ao quartel de Beja e exilado, sobretudo no Brasil, até 1974, mantendo “boas relações com os meus ex­‑maridos” (Palla, Reis, 2014, p. 152), o nascimento da filha Isabel – precocemente desaparecida, vítima aos três anos de um evitável acidente da carrinha da escola infantil que frequentava –, do filho António (“Entre a Dor e o Amor”, pp. 73­‑75) e, posteriormente, dos netos Pedro e Catarina, é evidenciado o ambiente cultural e oposicionista até 1974, as vivências do MUD Juvenil, a campanha presidencial do general Humberto Delgado, a crise académica de 1962, os diferentes empregos, a realização pessoal e profissional e a difícil conciliação entre “ser mulher e jornalista”. Aliás, entre ser mulher, esposa, mãe, avó e jornalista.

Se quando cursou Letras o objetivo não era procurar uma profissão mas sim aprender mais, estudar e partilhar o saber, com o fim do primeiro casamento e a vivência do segundo, trabalhar tornou­‑se premente, passando por vários empregos (sete num só ano) antes de se fixar no jornalismo, onde eram inexistentes as mulheres nas redações dos jornais, havendo apenas colaboradoras das páginas literárias. Trabalhou no Diário Popular, onde em 1968 integrou a redação na sequência de um concurso a que concorreram três mulheres, tendo todas sido aceites; O Século Ilustrado, onde permaneceu até ao encerramento da empresa d'O Século; Vida Mundial; A Luta; A Capital; RTP, onde foi responsável, com Antónia de Sousa, do programa Nome: Mulher (1974­‑1976); ANOP; e, por fim, foi chefe de redação da revista Máxima, onde esteve oito anos e que contou com Elina Guimarães entre as colaboradoras. Até porque as mulheres não veem o mundo da mesma maneira que os homens, a sua passagem pelo jornalismo, escrito ou televisivo, revelou­‑se marcante com as reportagens “Brasil, olha que coisa mais linda” e o inquérito aos escritores brasileiros; o acompanhamento, em França, dos efeitos do maio de 1968 um ano depois; as entrevistas a Jacques Brel, Vinícius de Moraes, José Rodrigues Miguéis e Maria Lamas, esta para a RTP logo a seguir à revolução de abril; e a autoria do programa “O Aborto não é Crime”, tema incómodo abordado em 1976 e que fez com que fosse incriminada, vivendo então momentos de tensão até à absolvição em 1979. A par do jornalismo, pertenceu ao Conselho de Imprensa, integrou o associativismo de classe enquanto dirigente do Sindicato dos Jornalistas durante uma década, até 1984, e foi Presidente da Caixa de Previdência dos Jornalistas 12 anos até ser extinta pela governação de José Sócrates, apesar de “uma gestão exemplar”.

O 25 de abril apanhou­‑a a trabalhar em O Século Ilustrado e os acontecimentos subsequentes confirmaram uma Maria Antónia Palla ativa enquanto jornalista, defensora da liberdade de imprensa e dos direitos das mulheres e interveniente muito crítica de sucessivos acontecimentos sociais, profissionais e políticos, tendo aderido posteriormente ao Partido Socialista para onde procurou levar a militância das causas das mulheres, nem sempre com a compreensão desejada, entendendo a problemática feminina como transversal na sociedade portuguesa e daí a necessidade de se fazerem pontes com outras sensibilidades (Palla; Rei, 2014, p. 43). As implicações da revolução e as vicissitudes do PREC (Processo Revolucionário em Curso) na imprensa, bem como a questão angolana merecem particular atenção de Maria Antónia Palla, com uma visão própria de quem viveu os acontecimentos, tomou posição e forjou novas e duradouras amizades.

“Viver pela Liberdade” – liberdade na vida pública e liberdade na vida privada –, transformou­‑se no lema da cidadã, da feminista e da jornalista Maria Antónia Palla: “Nunca passei fome. Nunca me faltou nada. Mas tive sempre fome de Liberdade”. Pelas 268 páginas, entrecortadas por 21 fotografias de uma vida de mais de oito décadas e finalizadas com a transcrição de três reportagens suas [Só depois de Morto se é Poeta (entrevista a Brel), Morte na madrugada: suicídio ou crime?, O Caso Sogantal – diário de uma revolução], perpassa a Mulher que militou e continua a militar em causas, “sem esperar retribuições” e “sem dever a obediência a ninguém” para além da sua consciência (Palla, Reis, 2014, p. 43), que assenta a vida em três pilares indissociáveis – Liberdade, Jornalismo, Direitos das Mulheres – e para quem a Liberdade só existe quando não há medo de enfrentar os poderes, os diversos poderes [no entanto, hoje, 41 anos decorridos sobre o dia em que pela primeira vez escreveu em Liberdade, quantos jornalistas e demais cidadãos podem exercê­‑la e desfrutá­‑la assim tão frontal e conscientemente sem incorrer, novamente, em medos e represálias?].

Enquanto testemunho de oito décadas de uma vida intensamente vivida, das opções tomadas consoante os diferentes contextos – políticos, sociais, familiares, pessoais, profissionais, económicos – e das transmutações de uma Mulher que, muitas vezes considerada pelos amigos uma “menina mimada”, soube tornar­‑se independente, construir o seu próprio percurso e impor­‑se por si, Viver pela Liberdade merece leitura e reflexão atentas pelo que revisita, mesmo que o leitor possa ter interpretações discordantes deste ou daquele acontecimento.

Heterodoxa, livre mesmo quando comprometida, independente e empenhada, não foi ou é uma heroína, como a própria refere, mas alguém que muito cedo começou a fazer as suas opções e que trabalhou pelas mulheres portuguesas. Nem que seja “só” por isto, este livro tem de ser lido e constar das bibliotecas dos estudiosos e estudiosas do século XX e daqueles e daquelas que partilham os Estudos Sobre as Mulheres.