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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

LEITURAS

Vicente, F. L. (2012). A arte sem história. Mulheres e cultura artística (Séculos XVI­‑XX). Lisboa: Babel, 286 pp.

Rita Mira

 

Como nos dá a compreender Delfim Sardo no prefácio, esta obra de Filipa Lowndes Vicente, representa uma enorme e desafiante busca, centrada na análise e no questionamento do processo de exclusão e de invisibilidade de que as mulheres artistas foram (e ainda são) sujeitas ao longo da História da Arte, dirigindo­‑se a “um apagamento, levantando as suas razões e as suas causas, estabelecendo parâmetros de comparação e usando metodologias analíticas que ainda não estão suficientemente estabilizadas na História da Arte em Portugal” (Lisboa: 16).

A Arte sem história constitui uma obra pioneira que enriquece a produção dos Estudos sobre as Mulheres e Feministas e, em particular, a “história da História da Arte” (p. 10) que durante muito tempo não incorporou (e ainda não incorpora plenamente) os olhares feministas no processo de produção de conhecimento sobre as matérias a que se dedica.

É um livro enformado por uma profunda consciência feminista assumida pela autora logo no início: “Este é um livro que não só é escrito por uma feminista, como é também um livro feminista” (p. 10), adoptando as abordagens feministas como lente fundamental de análise e comprometendo­‑se com a construção de um mundo mais justo para mulheres e homens.

Não pretendendo enunciar exaustivamente as mulheres artistas que produziram trabalho artístico ao longo do tempo, esta obra é sobretudo uma reflexão sobre a forma como a História da Arte, sobretudo na Europa entre os séculos XVI e XX, estudou e abordou as obras artísticas produzidas por mulheres e como também as silenciou e as ignorou à luz da “falácia da qualidade(p. 229).

O título do livro – A Arte sem história – tem, assim, tanto de inquietante, uma vez que denuncia “uma das mais vexatórias características do mundo artístico” (p. 15), como de incisivo acerca do seu conteúdo central: uma análise sobre a forma como os critérios de valoração desta área de saber, baseados na qualidade, serviram para desclassificar e desprezar a obra produzida por mulheres artistas.

Homens e mulheres podem ser excluídos/as do cânone da História da Arte à luz dos seus referenciais valorativos, mas a autora denuncia que só a apreciação da obra de mulheres artistas está condicionada pelo simples facto de serem mulheres, sendo esta pertença sexual um factor de exclusão generalizado na História da Arte. Esta obra contribui para a consciencialização dos processos ideológicos, culturais e sociais que enformam as várias disciplinas académicas, incluindo a História da Arte, em que a ideologia de género dominante – praticada e reforçada por diversos mecanismos e instituições, tais como a academia, as instituições de produção e divulgação artísticas, as práticas museológicas – é um factor de segregação de género.

A autora destaca duas formas de marginalização das práticas artísticas femininas: “as condicionantes socioculturais que afectaram, especificamente, cada mulher artista (…)” e “as posteriores exclusões da própria construção histórica, sobretudo durante os séculos XIX e XX” (p. 20). As mulheres foram, assim, sujeitas “a um duplo processo de exclusão – o da história vivida e o da história construída”, tornando­‑se num “objecto arqueológico” que só muito recentemente começou a ser “escavado”(p. 20).

Nesta árdua tarefa de resgatar uma arte que assim não foi considerada pela História, a autora refere a dificuldade de encontrar documentos, escritos ou visuais, sobre o trabalho de mulheres artistas, permanecendo muitas “páginas em branco” (p. 19) sobre a sua obra. A este respeito, as perspectivas feministas afirmam que dar voz plena às mulheres silenciadas é mesmo uma tarefa impossível, restando a emergência de questionar criticamente os mecanismos (re)produtores destes silêncios e a forma como o conhecimento é elaborado, validado e instituído pela História, reconhecendo as suas inúmeras “fissuras” (p. 18).

Sendo constituída por oito capítulos, esta obra tem como ponto de partida as várias “interrogações” levantadas pelas perspectivas feministas nos anos 1970 e 1980 – o “momento cronológico em que a história começa a estudar a arte feita por mulheres” (p. 23), contribuindo para que passasse a ser “uma arte com história” (p. 11).

Através de vozes e textos como os de Linda Nochlin e de Griselda Pollock, estas abordagens feministas contribuíram decisivamente para uma consciência crítica dos mecanismos ideológicos de inscrição que norteiam a História da Arte e para a necessidade de questionamento dos processos de segregação de género na produção artística, tão bem ilustrada pelo poster do grupo feminista Guerrilla Girls: “Terão as mulheres que estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos artistas expostos na secção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”(p. 184).

Permitindo a perspectiva feminista “descobrir novos objectos de estudo que até então tinham permanecido invisíveis” (p. 20), colocar “perguntas diferentes” para obter respostas diferentes, que “também incluam o feminino” (p. 66), é uma abordagem que analisa criticamente, não somente a ideia de que “as mulheres artistas desconhecidas do passado não existem” (p. 18), questionando a naturalização dos processos de construção da memória histórica, como também reflecte sobre os diferentes mecanismos, cada vez menos óbvios, de (re)produção das discriminações de género, ao nível de oportunidades de acesso ao universo, à carreira e ao cânone artísticos por parte das mulheres artistas.

Tendo como marco histórico inicial a exposição pioneira realizada em Los Angeles em 1976 – Women Artists: 1550­‑1950 – este livro é, igualmente, um contributo à História da Arte Feminista a partir da década de 1970, em que a construção artística incorpora ideias feministas e em que se equaciona os múltiplos processos através dos quais os registos do trabalho das mulheres artistas “foram sendo submersos pela própria história”(p. 37).

Apesar da coexistência de distintas perspectivas feministas, estas são consensuais em relação à necessidade de construir um olhar crítico sobre a produção de saberes pelas várias disciplinas académicas como um processo que não é isento de factores ideológicos (também de género) de um certo contexto histórico.

A consolidação da História da Arte como área do saber no século XIX, com raízes em textos como os de Giorgio Vasari do século XVI (p. 67), definiu “aquilo que se considera digno de ser valorizado” (p. 22), com base em conceitos explícitos de qualidade, originalidade, genialidade, mas também em conceitos implícitos, como o de masculinidade – “tão presente que não precisa de ser nomeado” (p. 22), deixando as mulheres à margem do cânone artístico. O feminismo permitiu colocar novas perguntas à disciplina, deixando de ser uma área de saber que decide a qualidade das produções artísticas, mas que analisa os processos que definem os pressupostos do seu valor artístico.

Nos capítulos seguintes, a historiadora segue uma ordem cronológica, do século XVI ao século XX, analisando a forma como a História da Arte estudou o trabalho de mulheres artistas europeias, as oportunidades e obstáculos à sua produção artística, as condições institucionais e sociais, as possibilidades de escolha dos motivos representados e os espaços de aprendizagem e de trabalho, fortemente condicionados pela condição de ser mulher,pautada pela clausura do espaço privado, “alheio a um contexto artístico mais alargado e público” (p. 83) e pelo pudor e discrição que impediam, por exemplo, o acesso das mulheres artistas ao modelo nu (p. 141).

Esta obra é concluída “a pensar o presente” (p. 229), as múltiplas barreiras – cada vez mais invisíveis e subtis – à igualdade de género e ao desenvolvimento da prática artística feminina, denunciando a permanência do patriarcado no campo artístico como em muitas outras áreas da sociedade e contribuindo para que, na actualidade, faça sentido “não ter medo dos feminismos”.