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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.34 Lisboa  2015

 

RETRATO

Flora Tristán "je dois vous prevenir j'ai idées avancées sur tout" (Tristan, 1980:p.134)

 

 

Ilda Soares de Abreu

Autora e heroína dos seus livros, em que as descrições romanescas se misturam com sentimentos (Pérégrinations d'une Paria)1, denunciam injustiças (Méphis)2, constituem sérias análises sociais (Promenades dans Londres)3, teses sobre as classes operárias (L'Union ouvrière)4 e experiências concretas na aplicação dessas teses (Le Tour de France, jornal 1843­‑18445, Flora Tristan (FT) está viva passados 171 anos da sua morte.

Esquecida e só recuperada pelos movimentos feministas dos finais do século XIX, lembrada como ativista dos direitos humanos, passou a objeto de monografias, conferências e outras manifestações, evidenciando leituras múltiplas, resultantes de reflexões em épocas e contextos diversos.

Estudiosos preocupados com a imagem que dela ficou, traçaram­‑lhe perfis embaraçantes. Físicamente, Jean Janin6, seu contemporâneo, deixou dito que tinha “les yeux remplis de feux de l'Orient”(Perruchot, 1961: p. 22) e ela própria confidenciou a um admirador que tinha tido “l´enorme malheur d'être jolie femme” (Tristan, 1980: p. 183). Outros, apoiados nos retratos existentes7, descrevem­‑na magra, extraordinariamente bela e desejável, de longos cabelos negros e tez de espanhola.

Todos lhe avaliam o caráter em descrições por vezes divergentes: nervosa, dominadora, brusca e colérica; frustrada pela sua falta de habilidade para encontrar o amor e virada para fantasias ideológicas; víbora; viva, espontânea e impulsiva e, depois de morta, uma santa para os operários.

Enquanto ativista em luta pela igualdade de direitos para homens e mulheres, jornais ingleses, de tendência tory, leram Promenades dans Londres e acusaram­‑na de revolucionária, jacobina e sanguinária. Para o neto, o pintor Paul Gauguin, ela foi talentosa e anarquista­‑ socialista. Em obras do século passado, ela é vista como agitadora, ardente saint­‑ simoniana, socialista, percursora de Marx, socialista cristã e, até, absolutamente nada socialista. Segundo Stéphanie Michaud (1980), ela terá declarado não ser nem saint­‑simoniana, nem fourierista, nem owenista. Em 1843, escrevia “il me samble que les pensées vitales celles d'ou dépend la prosperité génerale du pays doivent avoir pour tous également la même importance”(Tristan, 1980: p. 190).

Pregadora de “l'independence de femme, voulant qu'elle soit parfaitement libre en tout” (Tristan, 1980: p. 183), alguns movimentos feministas arrumam­‑na entre as precursoras do feminismo moderno, ao lado de Olympe de Gouges8 e Mary Wollstonecraft9; outros, como pré­‑feminista e há quem não tenha dúvidas de que foi feminista (Conner, 1998: pp. 598­‑599). E o que diz FT? “Moi, Je suis une personne a part!” (Tristan, 1980: p. 157).

Como traçar o retrato de figura tão polémica hoje como outrora?

Comecemos por uma proposta: olhar FT segundo as circunstâncias do tempo histórico em que viveu e a correspondência publicada sob título de Flora Tristan, Lettres, réunies présentées et annotées par Stéphane Michaud”.

 

“Malheureuse enfant” (Tristan, 1980: p. 46)

Flore Céléstine Thérèse Henriette Tristan Moscoso nasceu em Paris a 7 de abril de 1803. O pai, doutor D. Mariano de Tristan y Moscoso, da Ordem de Santiago, advogado e coronel dos dragões provinciais de Arequipa (Perú), foi o mais velho dos seis filhos de José Joaquim Tristán e de Dona Maria Mercedes Moscoso e neto do famoso general D. Domingo Carlos Tristan, corregedor de Arequipa e de D. Gaspar Moscoso y Zegarra, porta­‑ estandarte Real e Regedor Perpétuo daquela cidade. A família tinha fortes ligações à política e possuía considerável fortuna alicerçada na produção açucareira (Gamio, 1917: p. 6 ss).

A mãe, Anne­‑Pierre Laisnay10 (1772­‑1843), francesa, filha de Jean Laisnay (1732­‑?), secretário da Intendência, em Paris, e de Thérèse Catherine Ameline (1742­‑1809), era irmã de Thomaz­‑Joseph Jean Laisnay (1777­‑1849), que chegou a cavaleiro da Legião de Honra.

Os pais conheceram­‑se em Bilbau, quando D. Mariano ali era militar e Anne Laisnay se refugiara, com parentes, durante os anos conturbados da Revolução Francesa. Teriam casado religiosamente, em 1802, e a cerimónia realizada em casa, pelo padre Servais­‑Toussaint Ronceli (1748­‑1807), da Ordem de Cavalaria de Saint­‑Esprit, exilado naquela cidade. A ser verdade, a união era duplamente ilegal: D. Mariano, enquanto militar de nacionalidade espanhola, necessitava de permissão oficial do seu rei para o casamento religioso, então o único existente no país. Pelo lado de Anne, cidadã francesa, a Constituição de 1791 tinha laicisado o casamento e a união pelo registo civil era, legalmente, a única para todos os cidadãos, independentemente da confissão religiosa. Uma cláusula da lei proibia a celebração do matrimónio antes do casamento civil.

Em 1802, a amnistia para os refugiados franceses que reentrassem no país, sob condição de jurarem a Constituição, incentivou os parentes de Anne Laisnay a voltar a Paris e juntamente com eles, foi o casal Moscoso. Não dispomos de informações acerca da atividade de D. Mariano em França. No fim do Diretório, o Exército de Napoleão incorporava contingentes de estados aliados, entre os quais, Espanha. O pai de FT teria sido ali colocado? A certidão de nascimento de Flora, datada de 9 de abril de 1803, declara­‑a filha de Mariano Tristan Moscoso, coronel dos dragões ao serviço de Sua Magestade Católica e, aquando do falecimento deste, a 14 de junho de 1807, vítima de congestão cerebral, continua a ser essa a informação que o embaixador de Espanha, em Paris, enviou ao rei, acrescentado que residia nos arredores da cidade.

À morte do pai, FT vivia numa mansão ajardinada na Grand­‑Rue, 102, em Vaugirard, bairro burguês dos arredores de Paris, onde ela passara a infância. Nessa casa, receberam, por diversas vezes, o jovem Simon Bolívar (1783­‑1830), que militava por uma América do Sul independente, o que viria a conseguir entre 1813 e 1825. Era uma amizade de que FT se orgulhava.

Apesar das testemunhas apresentadas por Anne Laisnay e de documentos (oficiosos?), o casamento de seus pais não foi reconhecido. O embaixador de Espanha comunicou a morte de D. Mariano ao rei, ao irmão D. Juan Pio de Tristan y Moscoso (1773­‑1860), no Perú, aos advogados da família Tristan, em Cádis e em Madrid. A Anne Laisnay foi­‑lhe concedido o usufruto da mansão de Vaugirard, até que, legalmente, dela tomassem posse os legítimos herdeiros. Anne arrendou a mansão e foi viver, com os filhos, Flora e Mariano Pio Henrique Tristan (1807­‑1817), para a Praça du Carroucel, em Paris.

Depois das insurreições do Dos de Mayo de 1808 em Espanha e consequentes retaliações do governo napoleónico, foi ordenado o sequestro dos bens de espanhóis residentes em França. Nesse mesmo ano, D. Juan Pio (JP) herdava do irmão, em conformidade com os plenos poderes que lhe tinham sido por ele conferidos, em 1801, logo, antes da ligação com Anne Laisnay.

Entre 1810 e 1817, Anne e os filhos viveram, sucessivamente, em Paris, Val­‑de­‑Marne e Val d'Oise. Depois da morte do pequeno Mariano Pio Henrique, vendeu os bens que lhe restavam e, em 1818, residia com FT num casebre, sem lenha para se aquecerem no inverno, situado na imunda Rue Fouarre, bairro frequentado por prostitutas e vagabundos. (Bloch­‑Dano, 2005: p. 22).

 

“La concorde entre époux, ne peut résulter que de rapports d'égalité” (Tristan, 1980: p. 74).

Aos 17 anos, Flora trabalhava num atelier de gravação e litografia, como colorista. André François Chazal (1796­‑1860), pintor, gravador e litógrafo, dono do atelier, apaixonou­‑se por ela. Foi um namoro atribulado. Chazal assustava­‑se com as ideias “filosóficas” de FT. Um mês antes do casamento, ela prometia “je veux [...] être philosophe, mais d'une manière si doux si aimable que tous les hommes désireront une femme philosophe” (Tristan, 1980: p. 43). Era não só a afirmação de que continuaria a expôr as suas ideias, como a extensão dessa liberdade a todas as mulheres.

Casaram, civilmente, a 3 de fevereiro e instalaram­‑se, confortavelmente, na rua Fossis Saint­‑Germain (atualmente, rua da Ancienne Comédie), frente ao café Procope, num bairro de estudantes e livreiros. Do casamento nasceram Alexandre (1822), Ernest Camille Tristan Chazal (1824­‑1832) e Aline Marie Tristan Chazal (1825­‑1867), que viria a ser mãe do célebre pintor Paul Gauguin (1848­‑1903). Chazal queria adaptar Flora a uma vida rotineira, de obediência passiva e de dona de casa conformada. Começaram as discórdias.

Aquando da epidemia de cólera e febre tifóide, em 1832, Flora refugiou­‑se, com o filho já doente, na casa materna, rua Copeau, (atual rua Lecépéde), junto ao Jardin des Plantes, onde ele podia beneficiar de melhores ares. Era, também, o abandono do lar. Chazal, inconformado, tentaria, obstinadamente, refazer o casamento, usando de artimanhas, perseguições, cenas de violência e raptos dos filhos. Naquele ano, Chazal comprometia­‑se, perante a lei, a facilitar a separação de corpos, que a Constituição vigente previa, e a aceitar o divórcio, quando fosse restabelecido. Hipóteses longínquas. Durante a Restauração, a lei de 8 de maio de 1816 tinha abolido o divórcio (Fiaux, 1880: pp. 117 ss.). Quanto à separação de corpos, a lei admitia a supressão da vida conjugal, mas os deveres recíprocos de fidelidade e assistência persistiam. A mulher que faltava ao dever de fidelidade expunha­‑se à perseguição por delito de adultério, onde quer que estivesse. Embora o título VI da Constituição previsse, como passíveis de separação, os excessos, sevícias e injúrias, os processos judiciais eram morosos e caros e só em 1838, quando Flora dispunha de meios para contratar um advogado, conseguiu legalizar a situação. Então , confidenciou a uma amiga Enfin je suis libre – mais malade triste et désolée de 1 acte de courage que je vien de faire”(Tristan, 1980: p. 82). Chazal, em retaliação, tentou assassiná­‑la. Pela tentativa de crime, foi condenado a 20 anos de trabalhos forçados. FT continuaria a insistir no restabelecimento do divórcio, invocando leis anteriores ao Código de Napoleão, através de petições à câmara dos deputados, em que recordava situações de outras mulheres em iguais circunstâncias (Tristan, 1980: p. 76).

 

Pérégrinations d'une Paria

Sem apoios económicos para sustentar os filhos, FT tentou diversos empregos, entre os quais o de dama de companhia de senhoras inglesas com quem viajou pela Suiça, Itália, Espanha e Inglaterra. Em 1829, no regresso de Londres, conheceu Zacarias Chabrié, capitão de um navio de carreira para a América do Sul, que lhe deu animosas referências da família Tristan, no Perú. Aventurou uma carta para o tio Juan Pio, recontando todo o drama familiar e social de que era vítima e pedindo o reconhecimemto da sua filiação, como constava na certidão de batismo que juntava (Tristan, 1980: pp. 44­‑46). As muitas tentativas de Anne Laisney nesse sentido, nem tinham merecido resposta.

JP tinha feito carreira no Exército como marechal de campo das tropas fiéis ao rei de Espanha e tinha sido, por algum tempo, vice­‑rei da colónia. Por estes anos, já se tinha aliado aos patriotas e reconhecido a independência do Perú. Em carta datada de 6 de outubro de 1830, informava­‑a de que os documentos por ela enviados tinham sido considerados nulos e, como tal, não poderia ser reconhecida filha legítima, nem sequer filha natural, o que, perante a lei vigente naquele país, lhe daria direito à quinta parte dos bens paternos. No entanto, assegurava­‑lhe a sua afeição e enviava­‑lhe uma letra de câmbio no valor de 2500 francos, via Filipe Beretra (1807­‑1844), seu advogado em Bordéus e 3000 piastras legadas pela avó paterna11. FT deslocou­‑se a Bordéus para receber a oferta, onde foi recebida por Pedro Mariano Goyeneche12, parente do pai e amigo de Beretra.

Goyeneche, profundamente comovido com o drama de Flora, que se fez passar por menina solteira e desvalida, hospedeou­‑a por algum tempo e incentivou­‑a a viajar para o Perú, assegurando­‑lhe apoio familiar em Arequipa. Assim, FT cabou por partir, num navio comandado por Chabrié, e chegou a Lima em novembro desse ano. O seu tio era, então, figura destacada do regime, chegando a presidente provisório do estado do sul do Perú.

Em Lima e Arequipa, Flora frequentou o meio burguês, relacionou­‑se com figuras da cultura, do poder e da política, militares e aventureiros envolvidos na revolução que tinha rebentado em Lima em 1834. Aproximou­‑se de mulheres emancipadas e mal vistas pela família Moscoso. Regressou com uma pequena pensão atribuída pelo tio.

 

Hardiesses qui me font sortir de la monotonie du goût académicien (Tristan, 1980: p. 69)

Quando regressou do Perú, em janeiro de 1835, Flora instalou­‑se na rua Cherche­‑Midi, 32, depois no 42, donde passou para a rua do Bac, 101. O conhecimento público dos processos de separação de Chazal e a luta pelo divórcio tinham­‑na tornado admirada por figuras da sociedade parisiense, entre as quais Georges Sand (1804­‑1876), que, por esses anos, colaborava na revista Le Monde e era próxima dos socialistas utópicos. Passou, então, a ser convidada para as reuniões organizadas pela Gazette des femmes13, onde se cruzava com Eugène Niboyet14, para as festas de Olympe Chodzko15 e para os salões burgueses onde, entre chá e bolinhos, era moda lamentar­‑se a vida miserável dos operários e levantar­‑se a voz mais contra a organização social, do que para a defesa da classe operária (Levasseur, 1867: t. II, p. 87).

Flora aproveitou a corrente de simpatia e introduziu­‑se na imprensa. Entre 1836 e 1838, publicava “Les femmes de Lima” e “Les couvents d'Arequipa” e “Lettres à un architecte anglais”na Revue de Paris, colaborava em L'Artiste e Le Voleur16e assinou em Le Journal du Peuple, “Abolition de la peine de mort”, cujo texto enviou à Câmara dos Deputados. FT adquiria a reputação de escritora, apesar das incorreções linguísticas que ela considerava “sair da monotomia do gosto académico” (Tristan, 1980: p. 69). Em 1838, escrevia Mephis, romance autobiográfico e de crítica social. Nesse mesmo ano, publicava Les Pérégrinations d'une paria, referentes à sua estadia no Perú, entre 1833 e 1834, nas quais denunciava a marginalização por parte da família peruana e fazia uma crítica mordaz a republicanos, figuras da Igreja e a colonos que enriqueciam à custa do traba­lho escravo. Êxito em França. No Perú, os republicanos reagiram às acusações interditando­‑lhe a venda e a reprodução da obra. Queimaram FT, em efígie, em Lima e em Arequipa. Segundo informaram, o auto­‑de­‑fé foi muito festejado, até por mulheres (Tristan, 1980: pp. 87­‑89). O tio retirou­‑lhe a pensão.

Em 1835, 1836 e 1839, voltaria a Inglaterra, em circunstâncias que desconhecemos. Desde os finais do século anterior que mulheres viajavam sozinhas, para o estrangeiro, em missões diversas, entre as quais o intercâmbio de ideias político­‑sociais. Foram particularmente ativas as partidárias do ideário saint­‑simoniano, que se deslocavam a outros países, entre as quais Susanne Voilquin, que deixou dessa experiência a obra Mémoire d'une Sain­‑Simonienne en Russie (1839­‑1846)17.

Ela, que abominava o chá, o frio, o vento e a chuva afetavam­‑lhe a saúde, piorando das dores18, e que mal sabia inglês 19, que fazia em Londres? Em 1838, afirmava “j'ai en ce moment à Londres des amis dévouées et zélés partisans de mes doctrines” (Tristan, 1980: p. 81). Entre esses amigos estaria Owen. Em 1839, escrevia a Olympe Chodzko “cette ville est un monstre (...) Laissez­‑moi vous formuler mes idées dans un bon livre – il y a un à faire et je le ferai”(Tristan, 1980: p. 102). Referia­‑se a Promenades dans Londres, no qual relatava a miséria em que viviam operários, mulheres e crianças, que trabalhavam na indústria têxtil e nas minas, em condições sub­‑humanas e com salários miseráveis. Passou a ser, para alguma imprensa londrina, “une espèce de monstre femelle qui ose se réclamer de l'égalité des droits pour l'homme comme pour la femme” (Tristan, 1980: p. 105).. Pelo estilo e novidade na abordagem dos temas das obras, FT foi considerada entre as pioneiras do romance social, escrito por mulheres (Hoock­‑Demarle, 1994: p. 192).

Quando quis divulgar a obra em Portugal, referiu que os assuntos deviam excitar um vivo interesse entre o mundo político português20.

 

Union ouvrière - “Frères, unissons­‑nous! – soeurs, unissons­‑nous”21

O artigo 7.º da Carta de 1830 previa a liberdade de expressão, associação e imprensa, dando lugar a novas organizações profissionais e à difusão de publicações de variados géneros. Em 1834 e 1835, novas leis limitavam aquelas liberdades e proibiam a propaganda republicana.

Assim, em 1835, FT reunia na Rue du Bac, 101, quase clandestina­mente, ex­‑saint­‑simonianos, fourieristas, operários e socialistas utópicos. Participavam nestes encontros, alemães emigrados que defendiam o internacionalismo operário. Tratava­‑se de encontrar aliados para o projeto de unir associações de doutrinas diversas num pensamento comum com o fim de realizar uma obra comum, no sentido de constituir uma classe operária internacional22, consciente dos seus direitos e com força representativa junto dos poderes (Tristan, 1980: p. 150). Desse modo, “nos statuts (de l'Union) doivent être uns pour tous les unionistes du monde”(Tristan, 1980: p. 210). Escreveria, em 1840, aos “Socialistas da Grã­‑Bretanha Reunidos em Congresso”, em que afirmava desejos ardentes de estabelecer relações diretas entre os socialistas da França e Inglaterra (Tristan, 1980: pp. 121­‑122).

Munida das teorias disponíveis na época, elaborou uma doutrina eclética, em que propunha uma revolução, sem luta de classes, que seria a continuadora da obra de Cristo (Tristan, 1980: p. 74). O projeto previa a igualdade absoluta entre homens e mulheres23.

A Union ouvrière (UO) seria a publicação que viabilizava aquela ideia e que seria elaborada por operários, desde a recolha de informações até a divulgação da obra. Para o financiamento da edição e propaganda da mesma, escreveu dezenas de cartas a associações e pessoas singulares24.

E quanto às reformas políticas?25 “Je crois que les réformes politiques telles grandes quelles soit, ne sont pas que des moyens pour arriver au but – qui est la réforme sociale(Tristan, 1980: p. 158). Proudhon (1809­‑1865) dizia que os Jacobinos proferiam este aforismo: “a revolução social é o fim: a revolução política é o meio” (Louis, 1946: p. 114).

Em 1844, partiu em campanha pelo “Tour de France”26, levando milhares de exemplares de UO. Em Lyon, foi alvo da desconfiança do procurador do rei junto do Tribunal Civil, que lhe invadiu a casa onde se hospedava, levou documentos e, no relato para o procurador da corte, referia que as doutrinas dela reproduziam a quimera do comunismo e da reabilitação da mulher (Tristan, 1980: p. 196).

Durante o “Tour”, conseguiu alguns “apóstolos”, homens e mulheres, teve desilusões e incompreensões: “J'ai presque tous le monde contre moi – les hommes, parce que je demande l'emancipation de la femme les propriétaires parce que je réclame l'emancipation des salariés” (Tristan, 1980: p. 195).

Doente, socumbiu em Bordéus, a 12 de novembro de 1844. Em 1848, os trabalhadores erigiram, naquela cidade, um monumento em memória daquela que afirmava: “j'aime l'humanité, je la sert cela me suffit” (Tristan, 1980: p. 157).

 

Referências bibliográficas

Bloch­‑Dano, E. (2005). Maisons d'Écrivans: Le Paris de Flora Triatan. Le Magazine Litéraire, 443, 22.         [ Links ]

Conner, S. F. (1998), Tristan, Flora 1803­‑1844. In Eleanor B. Amico (Ed.), Reader's Guide to Woman's Studies (pp. 598­‑599). Chicago and London: Fitzroy Dearborn Publishers.         [ Links ]

Hoock­‑Durmale, M. C. (1994). Ler e escrever na Alemanha: Expressões da escrita. In De Geneviève Fraise e Michelle Perrot (Dir.), História das Mulheres no Ocidente – O século XIX. Vol. IV (pp. 171­‑197). Lisboa: Círculo dos Leitores.

Fiaux, L. (1880). La femme, le mariage et le divorce. Paris: Librairie Germer Bailliere et C.ie.

Gamio, P. (1917). Arzopispo Goyeneche y Apuentes para la Historia del Perú. Roma: Imprenta Políglota Vaticana.

E. (1866). Bibliographie historique et critique de la Press Périodique française. Paris: Librairie de Firmin Didot Frères, Fils et C.ie.

Levasseur, E. 1867). Histoire des classes ouvrières en France depuis 1789 jusqu'a nos jours, T. I et II. Paris: Librairie de L. Hachette et C.ie.

Louis, Paul (1946). Histoire du Socialisme en France, Paris: Librairie Marcel Rivière, 4e Édition.

Michaud, S. (1980). Introduction. In F. Tristan. Lettres réunies, presentées et annotées par Stéphane Michaud (pp. 9­‑24)Paris: Seuil.

Perruchot, H. (1961). La vie de Gauguin, Paris: Librairie Hachette.

Tristan, F. (1980). Lettres réunies, presentées et annotées par Stéphane Michaud. Paris: Seuil.

 

Notas

1 Paris, Arthus – Bertrand, 1838, 2 vols.

2 Paris, Ladvocat, 1838, 2 vols.

3Paris, H.­‑L. Delloye, éditeur, e Londres, W. Jeffs libraire, 1840.

4[4] Paris, 1843 (1.ª ed).

5Não localizámos a edição da época, mas apenas a reedição: Paris, Éditions Tête de Feuilles, 1973.

6Jean Janin, escritor e jornalista que escrevia no L'Artiste, em 1840.

7Um dos retratistas foi Jules Laure, discípulo de Ingres, e que é, também, autor de um retrato de Georges Sand. (Perruchot, 1961: pp. 26­‑27). O outro, com quem F. T. manteve correspondência, foi Charles – Joseph Traviès, que a teria retratado para a capa da edição de Périgrinations d'une Paria, a quem ela recomendava que fizesse sobressair uma fisionamia de “femme née Andalouse, condamnée par la Société a passer sa jeunesse dans les larmes et sans amour!” (Tristan, 1980: p. 102).

8Autora de La Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791). Tal como ela, FT, militava pelos direitos iguais para homens e muiheres, abolição da escravatura e da pena de morte.

9Autora da obra A Vindication of the Rights of Woman (1792).

10Nome que consta na certidão de batismo de Flora Tristan, conforme nota de S. Michaud (Tristan, 1980: p. 47).

11Transcrição de Pérégrinations d'une Paria, tomo I, por S. Michaud, em nota 12 das páginas 46­‑48 de Lettres.

12Pedro Mariano Goyeneche (Arequipa, 1772­‑Bordéus, 1844), foi doutor em jurisprudência, advogado da Real Audiência da Capital, em 1798, e Assessor do Tribunal. Depois da independência do Perú exilou­‑se em Bordéus, onde gozava de uma situação muito confortável (Gamio, 1917, p. 95).

13Gazette des Femmes (1836­‑1837), jornal de legislação e de jurisprudência, literário, teatral, etc., dirigido por uma sociedade de mulheres e de homens de letras (Hatin, 1866: p 394).

14Éugènie Mauchon (1796­‑1883), Niboyet pelo casamento com um advogado oriundo da alta burguesia lionesa. Saint­‑simoniana, (até 1831) e, depois, fourierista, redatora do jornal La Tribune des Femmes (1832­‑1834) e fundadora de cooperativas de operários lioneses.

15Olympe Chodzko (1797­‑1889), casada com o historiador e patriota polaco Léonard Chodzko (1800­‑1871) e amiga íntima de F.T (Tristan, 1968: p. 225).

16Le Voleur, publicação de interesse político e literário, fundado por Camile Girardin (1806­‑1881), em 1829, dirigido à classe média (Hatin, 1866: p. 363).

17Não foi localizada a 1.ª edição, conhecendo­‑se: Paris, Editions des Femmes, 1977.

18Antes do casamento já se queixava de dores terríveis sobretudo quando andava, como escrevia a Chazal em carta datada de 12 de janeiro de 1821. Teria piorado depois da tentativa de assassinato, porque as balas não lhe foram retiradas.

19Segundo afirmou, estava hospedada na casa de uma mulher bêbeda e com problemas conjugais, que lhe ensinava rudimentos de inglês (Tristan, 1980: p. 105).

20Carta enviada a Rey, conselheiro da corte em Genebra e que ela refere como tendo um irmão livreiro em Lisboa, e bons relacionamentos na imprensa portuguesa que possibilitavam a divulgação da obra (Tristan, 1980: pp. 124­‑125).

21Título do hino para a Union ouvrière, cuja música encomendara a Alphonse Lamartine (Tristan, 1980: p. 144).

22A ideia da união operária teria sido já pensada por Fourier (1772­‑1837), no Traité de l'unité universelle em 1821 (Louis, 1946, p. 67).

23Segundo Fourier: «os dois sexos devem cooperar igualmente na vida da coletividade e no processo de produção», cit. em Louis, 1946: p. 67.

24Michaud, em nota da pagina 182, de Lettres, refere que Flora Tristan teria convidado George Sand para sua apóstola a pregar a Union ouvrière, a que esta se negou considerando a tarefa de FT como ridícula.

25Carta a Pierre Moreau (1811­‑1872), operário serralheiro que tinha feito o Tour de France, em 1833, pertencia à Sociedade da União ajudou F. T. no contato com as organizações operárias. (Tristan, 1980: 241).

26As localidades do “Tour de France”, onde havia maior concentração de operários eram Paris, Auxerre, Chalon­‑su­‑Saône, Lion, Clermont­‑Ferrand, Avignon, Marseille, Nîmes, Béziers, Montpellier, Toulouse, Bordeaux, La Rochelle, Angoulême, Nantes, Angers, Saumur, e Tours e Orléans (Levasseur, I, 1867: p. 364). Flora Tristan só chegou até Bordeaux, onde faleceu.