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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

HOMENAGEM A MARIA BARROSO

Maria Barroso - Liberdade no coração

Guilherme D’Oliveira Martins*

*Centro Nacional de Cultura, Lisboa, Portugal.


 

Maria Barroso tinha a liberdade no coração. Testemunhei-o sempre e em especial nos últimos encontros. Falávamos longamente e recebi sempre de Maria de Jesus a expressão de uma genuína generosidade. Até ao fim teve sempre uma notável energia, queria estar presente ao lado dos seus amigos e onde sabia que era querida, mas também onde, mesmo com sacrifício pessoal, achava que era seu dever estar. Este texto de homenagem e saudade poderia chamar-se “Carta aos Amigos Mortos”. De facto, no fim de maio de 2015, havendo que homenagear Sophia de Mello Breyner nos setenta anos do Centro Nacional de Cultura, Maria Barroso manifestou grande entusiasmo em participar. A melhor maneira de evocar a memória da Amiga e antiga Presidente do Centro seria através da poesia. Depois de diversas combinações telefónicas, fui visitá-la à Estrela, na sede da Fundação Pro Dignitate, como acontecia muitas vezes. Encontrei-a a subir no elevador elétrico, pois tinha sofrido uma pequena queda poucos dias antes, queixando-se de problemas de equilíbrio. Mal sabíamos nós que seria talvez por causa dessas vertigens que teria o acidente que seria fatal. Com a elegância de sempre, pediu desculpa pelo incómodo e pelo atraso. Conversámos animadamente na subida da escada – um pouco de tudo, dos últimos acontecimentos políticos, das virtualidades dos elevadores eletrónicos, da memória da querida Sophia. Daí a poucos minutos, já no seu gabinete, estava tudo combinado. Far-se-ia uma gravação em vídeo de dois poemas de Sophia para passar no Museu do Oriente na festa do CNC, ainda que Maria de Jesus preferisse dizê-los de viva voz, o que só não aconteceria por um pequeno desencontro, que daria lugar a diversos telefonemas no dia seguinte, que permitiram podermos falar de outras coisas… De qualquer modo, o importante seria homenagear a poesia e as extraordinárias palavras da autora de Mar Novo. O primeiro poema escolhido foi o belíssimo Porque, a melhor homenagem a Francisco Sousa Tavares, a quem o CNC deveu tudo e por cujo impulso Sophia foi presidente, atraindo uma plêiade notável de jovens poetas e escritores. Essas palavras fortes, claras, serenas ultrapassam os umbrais de qualquer momento – ficam como letras de ouro e marca indelével de liberdade e da coragem: “Porque os outros se mascaram, mas tu não / (…) Porque os outros vão à sombra dos abrigos / E tu vais de mãos dadas com os perigos / Porque os outros calculam mas tu não” (1958). Todos nos recordamos das inolvidáveis imagens, poucos dias depois de 25 de abril de 1974, de Francisco e Sophia às portas de Caxias a abraçarem o Nuno Teotónio Pereira. E não podemos esquecer o martelar sincopado das sílabas: Porque os outros se mascaram, mas tu não. Por mais que os dias e os anos passem, ficará para sempre a associação forte entre um poema e a vitória da liberdade… A voz de Maria de Jesus Barroso deu a esse poema a sua força heroica, como só ela sabia fazer. E ficou-nos ainda na lembrança a imagem de Francisco no cimo da guarita do Largo do Carmo, no dia 25 de abril, a fazer o primeiro discurso de um civil naquele dia único. Era o dia mais importante depois do 1.º de dezembro de 1640. Francisco gostava dos gestos largos e teatrais, mas no essencial do que tratava ali era do reconhecimento de que a dignidade humana exigia o pleno exercício da liberdade. A segunda escolha foi da própria Maria Jesus Barroso, e quando hoje voltamos a ouvir a sua expressão nítida e firme sentimos como que um frémito. Essa gravação derradeira tornou-se premonitória e simbólica. Tudo se passa agora como se assistíssemos a um estranho mas inexorável passar de um lado para o outro de um espelho. É separação entre o ficar e o partir. Maria Barroso dirige-se na leitura a quantos foi agora reencontrar – a começar por Sophia… Em Carta aos Amigos Mortos, Sophia disse-nos tudo o que pode ser dito num momento como este. Não só lembra quantos nos deixaram, mas também compreende a fantástica força libertadora da poesia. E não é de mais lembrar esse apelo ao pleno exercício da liberdade de consciência. “Eis que morrestes – agora já não bate / O vosso coração cujo bater / Dava ritmo e esperança a meu viver / Agora estais perdidos para mim

/ – O olhar não atravessa esta distância – / Nem irei procurar-vos pois não sou / Orpheu tendo escolhido para mim / Estar presente aqui onde estou viva / Eu vos desejo a paz nesse caminho / Fora do mundo que respiro e vejo…” (Livro Sexto, 1962).

Quando nos deixa alguém próximo, como agora aconteceu, não há palavras. Mas tudo estava dito, quando ouvimos: “E eu vos peço por este amor cortado / Que vos lembreis de mim lá onde o amor / Já não pode morrer nem ser quebrado / Que o vosso coração já não bate / O tempo denso de sangue e de saudade / Mas vive a perfeição da claridade / Se compadeça de mim e do meu pranto / Se compadeça de mim e do meu canto”. A escolha foi premonitória. Esse diálogo com Sophia significa o encontro do espírito, da lembrança e da liberdade.

Quando nos fomos despedir de Maria de Jesus, Leonor Xavier recordou-me (com a fragilidade da sua força) o que foi a experiência inolvidável de escrever a biografia da nossa Amiga. Relendo a obra, percebemos que há uma riqueza espiritual incontida numa vida de entrega às causas, aos ideais e aos outros. É um percurso que nos enche de força, esperança e determinação. Maria de Jesus foi uma promessa e uma certeza do teatro português e uma referência indiscutível na cinematografia, Mudar de Vida, de Paulo Rocha, ou Benilde ou a Virgem Mãe, são inesquecíveis. E, como muitos de nós testemunhámos, a sua memória límpida trazia-nos intacta a força dos poetas do “Novo Cancioneiro”. Era a liberdade, sempre frágil, que tinha de ser recordada e que era ilustrada não com abstrações, mas com gestos concretos. E se dúvidas houvesse, leia-se a sua correspondência com Mário Soares nos difíceis momentos da prisão. Não há vacilação – há vontade, determinação e certeza de que os ideais não se abatem.

Como disse, deu-se a feliz coincidência de termos falado muito nas últimas semanas em que pudemos contar com a sua presença. A última vez, de viva voz, foi no Hotel Palácio do Estoril, numa sessão com convidados dos Encontros promovidos  por João  Carlos Espada. Jamais esquecerei a palavra amiga que me segredou e que foi mais uma demonstração de uma relação de confiança construída ao longo de muitas décadas, em que a vida política e cívica se confundiu naturalmente com a amizade e o afeto. Maria de Jesus não escondia esse sentido quase maternal que significava, afinal, que a vida humana não faz sentido se não cuidar da dignidade e da humanidade. Dias antes do acidente, telefonara-me a pedir um conselho técnico, mas muito literário… Com a sua inteligência e argúcia foi fácil rapidamente partilharmos uma conclusão, que sem dificuldade seguiu. E terminou o telefonema dizendo – “Era o que me parecia, mas não quis avançar sem o ouvir.” De facto, eu em nada a ajudara, disse-lhe apenas o que pensava e que já a minha interlocutora estava num caminho que me parecia certo, mas ao menos tive o gosto de a ouvir. Hoje, quando tudo aconteceu tão repentinamente, recordo no íntimo esse sinal de profunda amizade. E, em maré de recordações, invoco a homenagem de surpresa que pudemos partilhar por ocasião dos seus noventa anos, em que estive a seu lado com enorme gosto. Mas também lembro o que me disse, com que entusiasmo, sobre a conversa que tivera com o Papa Francisco. E que sinais extraordinários pôde revelar, de abertura, de atenção, de cuidado, de justiça e de paz… Nunca olvidarei esse testemunho vivo. José Cutileiro disse melhor do que alguém poderia dizer o que Maria Barroso foi: “a sua inteligência, grandeza de alma, doçura, simpatia e tolerância têm sido louvadas. Mas não esquecer a rijeza diamantina da sua fibra moral, alicerce onde tudo o resto assentava.”

Appolonyus de Tyana disse um dia: “Ninguém morre senão em aparência, do mesmo modo que ninguém nasce senão aparentemente. A mudança do ser para o devir parece ser o nascimento e a mudança do devir para o ser parece ser a morte, mas na realidade ninguém jamais nasce nem ninguém jamais morre. É apenas um ser-se visível e logo após invisível…”. Era Alberto Vaz da Silva quem costumava lembrar essa alusão à morte e à vida. E se lembramos a memória deste outro Amigo do coração, admirador de Sophia, é porque ele nos deixou quase em simultâneo em relação a Maria de Jesus. Na nossa lembrança ficou indelével a referência a ambos naqueles dias de chumbo. Os momentos dolorosos misturaram-se assim e a mediação poética tornou-se motivo de esperança e de renascimento. E não poderia deixar de vir ainda à baila o extraordinário poema de Carlos Queiroz: “Ver só com os olhos / É fácil e vão: / Por dentro das coisas / É que as coisas são.” E o Alberto ainda dizia, com palavras muito suas: “Um dia serei alegre!”, com a “a mágoa de não sentir / Essa alegria sem par / que têm os santos a agir / E as crianças a brincar, / Essa alegria gerada / Numa suprema inocência / que toca de transcendência / Até as coisas de nada.” Como era verdadeira a frase de Saint-Martin: “Houve certos seres através dos quais Deus nos amou.” E Maria de Jesus Barroso Soares fica na nossa lembrança não apenas pela serenidade da poesia, mas também pela força das palavras duras de combate pela liberdade, cantadas no “Novo Cancioneiro”. Mas ainda mais do que tudo isso, não podemos esquecer a pedagoga, a diretora do Colégio Moderno, a sucessora do Dr. João Soares, que deixou nas suas mãos o testemunho que os mestres apenas transmitem a quem seja digno da sua linhagem de exceção, a exigente cultora da arte de educar e de realizar a “escola de cidadãos”, defendida por Luísa e António Sérgio. Para Maria de Jesus havia sempre tempo para tudo – para ir ao encontro da alvorada no seu Algarve, para escolher bem cedo os alimentos para o Colégio, mas também para desempenhar exemplarmente as funções de cidadã, sempre com a mesma coerência, fosse nos tempos em que Mário Soares era preso ou foi forçado ao exílio, fosse, depois de restaurada a democracia, no exercício de funções de deputada do parlamento da democracia portuguesa ou como representante da República Portuguesa ao lado de Mário Soares nos governos, nas campanhas políticas ou na Presidência da República.   A sua identidade própria nunca deixou de se afirmar com muita clareza. A cidadania da República exerce-se sempre plenamente, e assim foi com a nossa homenageada de hoje. Mulher de liberdade e de família, foi um extraordinário porto de abrigo, em que os portugueses se puderam rever. Que é a cultura portuguesa senão um lugar de diálogo e de afetos, como gostava de lembrar um outro amigo comum que não pode deixar de ser lembrado neste momento: António Alçada Baptista. Por isso, para fechar este feixe de lembranças, cientes de que Unamuno tinha razão quando dizia que a nossa cultura entrelaça a lírica e a história trágico-marítima – e assim se projeta universalmente – devemos reler esse poema único do século XX, que lembra um amor sublime e é, também ele, de novo com Sophia de Mello Breyner a glorificação da palavra como realidade viva: “…Nunca mais amarei quem não possa viver / Sempre. / Porque eu amei como se fossem eternos

/ A glória, a luz e o brilho do teu ser, / Amei-te em verdade e transparência

/ E nem sequer me resta a tua ausência, (…) / Nunca mais servirei senhor que possa morrer.”. A confissão do Duque de Gândia, futuro S. Francisco de Borja, sobre a morte de Isabel de Portugal, é a invocação pura da poesia. Que melhor lembrança de Maria de Jesus Barroso?