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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa June 2016

 

(AUTO-)RETRATO

Maria de Lourdes Almeida Campos Tedeschi de Bettencourt

 

 


 

Nasci na Ericeira, a 24 de Janeiro de 1919. O meu pai era oficial da Guarda Fiscal e a minha mãe tinha o curso de professora primária, mas nunca exerceu qualquer profissão. O meu irmão, que veio a ser engenheiro de Aeronáutica Civil, nasceu quando eu tinha dois anos e já faleceu, em 2006.

Aprendi a ler sozinha, antes de ir para a Escola. Devia ter uns quatro ou cinco anos. Enquanto fiz a instrução primária e até aos primeiros anos do Liceu, frequentei, simultaneamente, o Conservatório Nacional, estudava piano. O meu Liceu foi o Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. Fui uma privilegiada, pois fui aluna de três grandes mulheres: Domitila de Carvalho, que se formou em Matemática, Filosofia e Medicina, tendo-se dedicado sobretudo ao ensino da Matemática; Teresa Leitão de Barros, escritora e professora de Português; e Seomara da Costa Primo, professora de Ciências Naturais.

A partir do 4.º ano do liceu, comecei a dar explicações a alunas do ano anterior e também a colegas do meu ano, ganhando assim algum dinheiro e gosto pelo trabalho pedagógico, sem disso ter consciência naquele tempo.

INGRESSO NA VIDA ACTIVA

Concluído o 7.º ano liceal, o meu pai quis que eu ficasse mais um ano para frequentar o Curso Especial de Educação Familiar, que havia sido iniciado e que incluía disciplinas de direito familiar, economia doméstica, culinária, bordados, rendas, corte e costura, primeiros socorros, higiene e puericultura. Na altura não achei graça nenhuma, mas mais tarde reconheci a utilidade destas aprendizagens. Mais, foi este Curso que me permitiu ingressar na vida activa com uma certa facilidade, pois pude leccionar no ensino primário de imediato. Ainda dei aulas alguns meses.

Mas o meu maior desejo era trabalhar com crianças com deficiências cognitivas, pela minha grande curiosidade em perceber o funcionamento do cérebro na aquisição de aprendizagem.

Matriculei-me, então, no Instituto Maria Luísa Barbosa de Carvalho, no Largo da Misericórdia, em Lisboa, que formava “Peritos Orientadores” e foi o primeiro estabelecimento de ensino a trabalhar com testes psicológicos. Fiz os dois anos do Curso e, para um trabalho final, precisei   de estudar as crianças com deficiência mental. Nesta altura, o Director do Hospital Júlio de Matos, Professor Doutor António Flores, que tinha inaugurado aí um Pavilhão Infantil masculino, necessitava de uma técnica para ocupar um lugar que havia aberto. Foi-me oferecido o lugar de psicopedagoga para dirigir dois pavilhões, com cerca de 75 crianças. Para exercer esta função, o Ministério da Educação exigia o Curso do Magistério de Crianças com deficiência como habilitação. Fui, então, durante um ano, frequentar o Curso, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, onde era ministrado.

Obtendo aproveitamento, tornei-me professora psicopedagógica e exerci a actividade profissional no Hospital Júlio de Matos entre 1942 e 1953, dirigindo os pavilhões infantis.

A VIDA HOSPITALAR

Durante o primeiro ano de trabalho, lentamente, fui vencendo a agressão emocional a que estava sujeita e interagindo com o mundo patológico que me rodeava. Consegui compreender as crianças e os adolescentes, dar-lhes ternura e amizade.

O pessoal do Hospital apoiou-me muito e, tendo sido integrada na equipa médica, pude acompanhar as experiências inovadoras do grupo.

Considero que a formação de base e os cursos que frequentei não foram suficientes para a minha formação, mas sim tudo o que aprendi durante os anos em que trabalhei no Hospital Júlio de Matos.

Para além do trabalho hospitalar, que me permitia ter a tarde livre, organizei o meu primeiro consultório, onde recebia clientes particulares. Até hoje nunca deixei de atender quem pede a minha colaboração.

Em 1947, fui integrada na equipa do Professor Egas Moniz, Prémio Nobel de Medicina, e que era dirigida pelo Professor Doutor Barahona Fernandes. Da equipa faziam parte os Professores Pedro Polónio e Sousa Gomes (área Clínica e Psicopatológica), os Professores Almeida Lima e Miller Guerra (área de Exames Neurológicos) e Seabra Diniz, Fragoso Mendes, Navarro Soeiro, Pompeu Silva, Azevedo Mota e Natália Veiga (área de Exames Psicológicos Experimentais). Como membro da equipa, participei em todas as fases dos doentes leucotomizados, antes e depois da operação, acompanhamento ao fim de oito dias, depois da operação, após um mês, ao fim de um ano e no relatório final.

INTERRUPÇÃO DA VIDA HOSPITALAR

Quando casei, em 1952, com o piloto aviador Luís César Tedeschi de Bettencourt, já tinha construído uma carreira profissional. O meu marido foi um dos fundadores da companhia aérea portuguesa (TAP), que tinha sido inaugurada em 1946, mas não veio a ocupar o cargo de Presidente da TAP por ter sofrido um desastre de aviação. Esse acidente impediria o meu marido de continuar a pilotar, o que posteriormente lhe causou crises de melancolia e grandes depressões.

Desvinculei-me do trabalho no Hospital Júlio de Matos, em 1954, para garantir a assistência que necessitava prestar ao meu marido, incluindo a realização de viagens que fazíamos pelo mundo inteiro e que se revestiam de um carácter terapêutico e não se traduziam numa sobrecarga financeira, pois tínhamos direito a milhas aéreas. Contudo, as crises depressivas começaram a constituir uma ameaça à vida do meu marido, pelo que teve de ser internado em Carnaxide, onde foi tratado durante 12 anos.

A sua vida foi-se degradando e veio a falecer a 29 de Dezembro de 2003.

DA EXPERIÊNCIA DE VOLUNTARIADO AO CURSO DE PSICOLOGIA

Apesar de ter o consultório, eu necessitava de preencher o tempo. Tive conhecimento da existência de um Centro de Estudos de Psicologia (CEP), na Organização das Missões, criado pelos Jesuítas e sedeado junto do Colégio S. João de Brito – no edifício Psicologia e Missão –, onde tinha sido aberta uma consulta de Psicologia, em 1960. Aceitei o convite para participar nessa consulta como voluntária, actividade que exerci até 1963 e na qual acompanhei cerca de 300 crianças.

Muitas crianças foram assistidas no CEP. À primeira observação psicológica, seguia-se a devida orientação educacional, aplicando-se as estratégias psicopedagógicas indicadas.

Este trabalho voluntário permitiu-me adquirir uma experiência que me facilitou a entrada no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), em 1963, instituição esta recém-fundada pelos padres Agostinho Pereira  e Diamantino Monteiro, onde frequentei o primeiro Curso de Psicologia, ministrado naquele Instituto. Terminei o curso em 1968, com a Dissertação “Teoria e Prática da Orientação Educacional”.

A PSICOPEDAGOGIA

Apesar de ter podido continuar no CEP, optei por ser professora no Jardim Infantil de Maria Ulrich, entre 1963 e 1969. Em paralelo, entre 1965 e 1970, a convite do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, estudei o insucesso escolar em vários Liceus, e fui ainda responsável pela selecção de professores para o ensino do português no estrangeiro.

No Liceu Pedro Nunes, de 1968 até 1973, organizei um Gabinete de Psicologia, de acordo com o reitor, Dr. Jaime Leote, iniciando-se aí uma experiência educativa de Pedagogia de Grupo, desenvolvida pelas professoras estagiárias, orientadas pelo professor metodólogo Dr. Rómulo de Carvalho. Entre 1966 e 1970, também fui responsável, na Escola de Ensino e Administração de Enfermagem, por uma experiência de Pedagogia de Grupo, onde contei com a colaboração da Directora, a Enfermeira Mariana Diniz de Sousa, e da Enfermeira Maria Tereza Forjaz e onde também ensinei a disciplina de Psicopedagogia. Foi um trabalho muito útil e interessante, o qual vim a repetir nas Escolas de Enfermagem de S. Vicente de Paulo e do Hospital de Santa Maria. Colaborei, ainda, com a Escola de Enfermagem de Reabilitação do Alcoitão e a Escola de Terapia Ocupacional desta mesma instituição, leccionando a disciplina de Psicologia em 1972 e 1973.

Alarguei o trabalho em Pedagogia de Grupo ao ensino superior. A convite do Professor Engenheiro Alfredo Tovar de Lemos, responsável pela cadeira de Mecânica, desenvolvi no Instituto Superior Técnico, durante o ano lectivo de 1971-1972, uma experiência em Pedagogia de Grupo com alguns dos seus alunos. Esta experiência pedagógica foi apresentada pelo Professor Tovar de Lemos e por mim própria, no Congresso de 1977 da Ordem dos Engenheiros.

Publiquei, em 1965, a obra A Vida do Meu Filho, editada pela Verbo, que veio a ter uma segunda edição, em 1971. A inclusão de uma enorme quantidade de imagens encareceu a edição, pelo que não mais foi reeditada.

RETOMANDO OS ESTUDOS

A necessidade de aprofundar conhecimentos na área da Psicologia Educacional levou-me, entre 1974 e 1975, a frequentar o Curso de PósGraduação de Psicologia, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo apresentado como relatório final um trabalho intitulado “A Psicologia Diferencial e suas implicações educacionais”, na sequência de um estudo que realizei sobre “Torrance Tests of Creative Thinking”, estudo este que incluiu a sua aferição para a população portuguesa.

O problema da linguagem, que se entrecruza com questões de natureza psicopedagógica, levou-me a frequentar, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, durante o ano lectivo de 19751976, o Curso de Especialização de Linguística e Psicolinguística.

A INCURSÃO NA ÁREA DA PSICOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES

A partir de 1974, desenvolvi trabalho na área da Psicologia das Organizações. Assim, entre 1974 e 1976, fui Chefe do Gabinete de Psicologia e de Relações Humanas na Empresa Metalúrgica Duarte Ferreira. Colaborei na selecção de pessoal e desenvolvi acções de comunicação entre os diferentes departamentos, assim como fiz acompanhamento psicológico. Fizeram-se, ainda, propostas de equiparação de vencimentos do pessoal feminino e masculino que, apesar de desempenharem funções profissionais idênticas, tinham remunerações diferentes.

Vim a assumir as funções de Técnica de Gestão de Recursos Humanos na Manutenção Militar, de 1977 a 1989, data em que me aposentei. Neste desempenho profissional, fiz também um estudo exaustivo de equiparação de salários entre pessoal feminino e masculino, nos vários estabelecimentos militares: Manutenção Militar, Messes, Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamentos e Laboratório.

SER SOROPTIMISTA

A vida familiar e o trabalho, apesar de entusiasmantes, nunca foram suficientes para responder aos meus interesses intelectuais e ao desejo de saber quem somos. Reconheço que a doença do meu marido limitou a satisfação do meu desejo de completar a formação académica na área da Psicopedagogia.

Quando soube que os Rotários iam receber mulheres, em 1984, e que estava em formação um Clube Soroptimista, aderi quase sem pensar. Surgiu-me, assim, uma oportunidade de ocupação, que agarrei e veio dar novas forças à minha vida e acalentar novos interesses. Em Outubro de 1985, em Lisboa, foi inaugurado o clube Soroptimist International, que reuniu, inicialmente, 20 mulheres profissionais, portuguesas e estrangeiras. Fui a primeira presidente eleita do primeiro Clube Soroptimista português, tendo permanecido no cargo durante dois anos. Hoje contamos com vários clubes.

O Clube Soroptimist International é uma das maiores organizações de mulheres profissionais do mundo, que assume como missão melhorar a vida das mulheres e das meninas nas comunidades locais e no mundo. Para que se alcance esta finalidade, administram-se programas estratégicos de natureza muito diversificada: Intervenção Social, Economia, Saúde, Relações Internacionais, Educação e Ambiente. O primeiro Clube Soroptimista foi criado em Oakland, em 1921, e juntou 24 mulheres que, durante a I Guerra Mundial, tinham ocupado postos de trabalho que os homens deixaram vagos, devido à mobilização. Terminada a guerra, apesar de os homens terem regressado, as mulheres continuaram a trabalhar e formaram o primeiro Clube Soroptimista. Pouco a pouco, o Soroptimismo internacionalizou-se. Em 1923, criou-se um clube em Londres e, em 1924, em Paris, cidade onde se organizou a primeira Federação. Hoje, inclui 110 países e tem perto de cem mil associadas. É uma Organização Não-Governamental (ONG), tem estatuto consultivo nas Nações Unidas, na UNESCO, na FAO e no Conselho da Europa e é membro do lobby europeu de Bruxelas. Mantém e defende uma posição neutra em relação a religiões, política partidária e teorias feministas. A Dra. Maria Barroso foi sócia honorária.

Há três anos, o Clube Soroptimista prestou-me uma homenagem e ofereceu-me uma Monografia, da autoria de Sónia Carrilho (SI Clube Lisboa Sete Colinas), com a colaboração de Luísa Ramires e Maria Teresa Maia Carrilho (SIUP – União de Portugal).

Gostei de ter nascido. Esforcei-me por ser simples, directa e sincera em relação a todos os seres humanos que me rodearam. Fui boa profissional, adorei a profissão de conhecer os meus semelhantes e de os poder ajudar com palavras amigas. Morro feliz porque nada tenho a condenar em mim própria.