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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

LEITURAS

O que é feminismo? Gomes, P.; Diniz, D.; Santos, M. H.; & Diogo, R. (2015). Colecção “Cadernos de Ciências Sociais”, n.º 12. Lisboa: Escolar Editora, 103 pp.

Fátima Mariano*

*Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, fatima.mariano@gmail.com


 

O que é feminismo?, o 12.º número da colecção “Cadernos de Ciências Sociais” (direcção de Carlos Serra), convida os/as leitores/as a partilharem “a construção teórica do feminismo” (p. 11) através da leitura dos textos de Patrícia  Gomes (Guiné-Bissau), Debora Diniz (Brasil), Maria Helena Santos (Portugal) e Rosália Diogo (Brasil), cada um dos quais abordando a problemática da igualdade de género a partir de diferentes realidades socioculturais e políticas. Às autoras foi colocado o desafio de reflectirem sobre o feminismo (ou os feminismos) tendo em conta que este não é um movimento uno mas múltiplo na sua génese e nos seus objectivos. Esta é a crítica que perpassa os quatro artigos: há outros feminismos além daquele que surgiu no mundo ocidental no século XVIII, que trilharam um outro caminho apesar de terem o mesmo fim – a promoção da igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Em “Sobre a génese do movimento feminino na Guiné-Bissau: bases e práticas (1961-1982)”, Patrícia Gomes começa precisamente por sublinhar que “o feminismo, enquanto movimento social, não foi plenamente aceite pelas estudiosas africanas”, que  questionaram “sistematicamente a aplicabilidade e a eficácia de alguns conceitos universalmente utilizados no mundo académico, fundamentalmente de matriz ocidental, para explicar as realidades históricas e socioculturais de África” (pp. 15-16).

Depois de lembrar que, de uma forma geral, nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), os movimentos feministas estão intimamente associados às respectivas lutas de libertação, a autora centra a sua atenção na importância que o PAIGC e, em particular, Amílcar Cabral, tiveram no processo de emancipação feminina  na  Guiné-Bissau ao evidenciarem “o papel fundamental das mulheres na revolução e no processo de reconstrução nacional” (p. 24).

Após discorrer sobre as várias organizações que tentaram melhorar a condição das mulheres guineenses (UDEMU – União Democrática das Mulheres da Guiné e Cabo Verde, Comissão Feminina do PAIGC, Comissão Nacional das Mulheres da Guiné e a Plataforma Política das Mulheres da Guiné-Bissau), Patrícia Gomes conclui que, apesar dos várias avanços alcançados, “As mulheres apresentam hoje, passados 40 anos da independência do país, níveis mais baixos de educação do que os homens, uma baixa  representação na administração pública, desempenham os trabalhos mais precários com rendimentos baixos acumulando trabalho doméstico e trabalho produtivo e são cada vez mais vítimas de casamento e gravidezes precoces” (p. 25).

A questão da ideia de hegemonia do movimento feminista ocidental é retomada por Debora Diniz no seu “Feminismo: modos de ver e mover-se”: “[…] assim como os homens não são molde nem modelo para o humano, a mulher branca não é referência para o reclame de direitos e protecções de todas as mulheres. Importa a classe, geração, cultura, deficiência, cor” (p. 52). E acrescenta: “Na multidão das mulheres, há as mulheres de cor e as mulheres brancas. Há as mulheres pobres e as ricas, as colonizadoras e as colonizadas” (p. 53).

Recorrendo à “alegoria da torre como arquitectura do pensamento” de Virginia Woolf, a antropóloga brasileira defende que o feminismo é um “entortador de torres do pensamento e do poder” (p. 49), “um conjunto de modos de ver e mover-se para resistir e modificar o poder patriarcal” (p. 51). A partir das personagens de Paulina Chiziane, que sobrevivem às “mazelas da poligamia e da tradição”, e de Alice Walker,  sobre a “mutilação genital como rito de iniciação ao feminino”, Debora Diniz discorre sobre a questão do aborto e a forma como este é interpretado e punido nos países da América Latina. A escolha do tema tem uma razão de ser: “o tema toca em marcos do regime do gênero – o aborto provoca a heteronormatividade, a família reprodutora, o binarismo sexual, a reprodução social e a maternidade.” (p. 58).

O terceiro texto deste O que é feminismo? é da autoria da psicóloga social Maria Helena Santos e intitula-se “Da origem do feminismo ao feminismo plural, do mundo a Portugal”. Trata-se de uma síntese da história do movimento feminista mundial tendo por base a divisão em três vagas sugerida por Gisela Kaplan (1992), destacando os/as principais teóricos/as e terminando com referência ao feminismo institucional internacional. A autora faz ainda referência à pluralidade do feminismo em Portugal, desde o feminismo republicano, passando pela oposição ao Estado Novo até ao surgimento do feminismo de Estado com a criação da Comissão da Condição Feminina.

O artigo termina com uma reflexão sobre os conceitos de “direitos humanos” e de “cidadania” e a sua generalização às mulheres: “[…] os direitos humanos e a cidadania não são neutros no que diz respeito ao género, ou seja, são genderizados, impedindo até muito recentemente (ou continuando a impedir em alguns países) a cidadania plena das mulheres conseguida graças aos diversos movimentos feministas internacionais e nacionais.” (p. 79). “Negros feminismos”, de Rosália Diogo, é o último artigo do livro aqui analisado e aborda, como o próprio título indica, a mulher negra e os feminismos, ancorando-se no texto da socióloga Sueli Carneiro. A autora considera que as “mulheres negras vivenciaram histórias diferentes das mulheres brancas”, defendendo, por isso, que “as ações feministas das mulheres negras são fortemente marcadas pelos efeitos da sua construção identitária, engendrada no campo da opressão” (p. 86).

Para discorrer sobre os “Negros feminismos”, Rosália Diogo elegeu duas obras literárias – Ponciá Vicêncio, da brasileira Conceição Evaristo, e O alegre canto da perdiz, da moçambicana Paulina Chiziane (também citada no texto de Debora Diniz) –, que “falam da história  da opressão vivida secularmente pelas mulheres negras” (p. 96), opressão económica, racial e de género. Enumerando um conjunto de autores/as que pensaram sobre o feminismo e a escrita de autoria feminina, Rosália Diogo questiona os conceitos de “género” e de “raça” à luz daqueles dois romances.

Como referimos no início, O que é feminismo? propõe-se desconstruir a ideia de que existem apenas feminismos de origem ocidental corporizados por mulheres brancas. Os textos de Patrícia Gomes, Debora Diniz e Rosália Diogo questionam essa imagem ao abordarem a luta das mulheres negras e dos países descolonizados, recordando-nos que o feminismo é um movimento múltiplo e heterogéneo. Contudo, ao não focar outros feminismos – como o islâmico ou o asiático –, o livro acaba por perpetuar uma ideia redutora dos feminismos. Os feminismos islâmico e asiático têm a sua própria história e a sua própria dinâmica, que não se compagina com os conceitos e as teorias dos feminismos negro ou pós-colonial.

Por fim, uma última nota relativamente à introdução escrita por Carlos Serra, que, conscientemente ou não, faz um uso sexista da língua ao dirigir-se aos “leitores” (excluindo, assim, as leitoras) e ao referir-se aos “autores” dos textos (quando os quatro são escritos por mulheres). Não sendo estas duas palavras neutras, usando o masculino, o autor exclui as mulheres do seu discurso.