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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dez. 2016

 

(AUTO-)RERATO

Sismógrafo

Maria do Sameiro Barroso


 

 

 

Registo os sismos, os sinais da turbulência, a lava interior rompendo o caminho sob a crosta que explode. Foi sempre assim. Vivo ao sabor dessa força obscura que me molda e me move. Impelem-me os ritmos, as sombras, os passos em direcção à luz. Persegue-me uma inquietação, uma inadaptação. É como se uma plêiade de seres me habite e devore. Para não sucumbir, preciso de harmonizar a sua existência dentro de mim, para poder viver um pouco melhor comigo e com os outros. Não pode ser de outra forma. Aniquilar esse daímôn seria assinar a minha própria morte, num gesto suicida, gratuito e iníquo. Se o deixar viver, dá-me alguma trégua. O nome, pelo menos, é sempre o mesmo. Maria do Sameiro Barroso é o meu nome clínico, literário e o que uso nos trabalhos de tradução e investigação. A multiplicidade que me habita não suportaria a fragmentação dos nomes.

Há alguns anos, tinha quatro curricula: o da carreira médica, o da carreira literária, o da investigação em história da medicina e o de tradução e estudos literários. O trabalho em várias áreas, em simultâneo, levantava desconfianças nos outros e angústia em mim própria. À partida, cada uma das áreas nas quais trabalho é estanque, embora se possam, por vezes, cruzar umas com as outras. As coisas acontecem naturalmente assim. Sob uma aparência calma e socialmente integrada, vou sendo levada nunca sei bem para onde, nem até quando.

Quando era estudante do liceu, seguia a minha inclinação natural para as Letras e para as línguas germânicas, especialmente o alemão, uma das minhas grandes paixões. Já tinha letra de médica, como as pessoas amiúde referiam. Na altura, não dava a menor importância. A medicina atraía-me alguma coisa, sobretudo a Psiquiatria e as Doenças Tropicais, pelo exótico, sem dúvida. Estes interesses desapareceram imediatamente, quando tomei contacto directo com estas áreas.

Quando estudava Filologia Germânica na Faculdade de Letras, em Coimbra, via passar as colegas de Medicina com esqueletos e o Testut debaixo de braço e pensava: “Tenho imensa sorte. O meu curso é absolutamente delicioso. Ler poemas, peças de teatro, ensaios, romances, e ter de me debruçar e escrever sobre eles, é um prazer. Ler Shakespeare, Goethe, Rilke ou Hölderlin, no original, é um privilégio. Não trocaria este curso por nada.” E assim foi, até ter de me integrar no mundo do trabalho. O choque com a realidade foi brutal. Possivelmente, não tinha feito a opção certa. Na altura, dava aulas de Inglês e Português a alunos do período nocturno na Escola Secundária de Vila Franca de Xira, o que não me satisfazia minimamente e me levou a tentar Medicina, a mais remota e improvável das opções que então me ocorriam: Filosofia, Belas Artes e, não sei porquê, Medicina. Continuar a viver e trabalhar, sem estudar qualquer coisa nova, estava fora de questão. Ansiava por outras matérias e tinha de ser algo diferente. Resolvi então experimentar Medicina, certa de que não teria bases para frequentar o curso e de que, em breve, seria obrigada a desistir. Além do mais, havia as aulas de Anatomia que me apavoravam. Sonhava até com cadáveres, deitados sobre as mesas, que sorriam, de gravata ao pescoço e os corpos encharcados de formol. Uma imagem surrealista, sem dúvida, como muitas que haveriam de povoar a poesia que ainda não começara a escrever.

Mas comecei assim. No início, só frequentava algumas aulas. Para meu espanto, comecei a sentir-me muito bem naquele ambiente. A qualidade do ensino era excelente, os professores e os colegas muito afáveis. As aulas estavam sempre cheias e todos estudavam muito. Comecei a estudar como eles. Ninguém me estranhava. Colegas e professores expressavam apreço pelo facto de eu já ter outro curso. Aos poucos, entrei naquele mundo onde me sentia como peixe na água. A biologia era um fascínio, preciso e objectivo. Era a própria vida que pulsava, nas células de citoplasma vivo, núcleo, nucléolo, mitocôndrias. De repente, reparei que estava completamente apaixonada pela Medicina. Dava-me estabilidade e referências. Mais estranha do que a decisão de tentar esse curso, foi a facilidade com que me adaptei, eu, uma típica menina de Letras que, meses antes, desmaiara quando fui visitar, com os meus pais, um amigo, internado no Hospital de S. Marcos, em Braga, cidade onde nasci e nunca esqueci.

No 5.º ano, já andava pela Urgência a aprender a suturar. Invadia-me o pavor de não conseguir ser médica. Estudar sempre me fora fácil, mas tratar doentes era algo que receava e me angustiava. Nesse ano, publiquei, pela primeira vez, um texto literário, na Revista da Associação da Faculdade de Medicina, “O Enzima”. Falava dos alcoólicos que via pela Urgência, da pobreza, da indigência e da grandeza insólita que lia nos seus rostos. O texto foi muito apreciado pelos colegas. Nesse ano, esbocei também alguns poemas, viscerais, que não valorizei nem guardei. Espelhavam a aprendizagem do corpo que intensamente vivia. Entretanto, mudara de penteado e de estilo de vestir. De dia, era estudante de Medicina, à noite, era professora de Português e Inglês. Ansiava por ter apenas uma actividade e pôr fim à dualidade desconfortável que então vivia. Optara pela Medicina como actividade profissional. Não tinha dúvidas. A medicina é viciante. É como uma droga. Durante uns tempos absorveu-me completamente e fez-me esquecer toda a minha vivência anterior, ligada às Letras. Sentia-me bem, sentia-me feliz, conseguia ser médica. Nada mais ambicionava então.

Um dia, comecei a escrever, sete anos depois de exercer medicina. Foi um sismo brutal. De repente, tudo estava errado! A literatura e as línguas tinham sido a minha primeira vocação. Como é que as pudera esquecer? Como poderia viver agora essa aptidão natural, tão adormecida? Como conciliar com a actividade de médica de que tanto gostava também? A Faculdade de Letras parecia-me, então, um verdadeiro paraíso perdido que ansiava retomar, precisava de retomar, não podia deixar de retomar, por muito que gostasse da minha actividade médica.

A dualidade voltara. Comecei a perceber que muito dificilmente, alguma vez, me libertaria dela. Retomei então, com enorme avidez, a poesia, a língua alemã, os estudos literários. E houve uma fractura estranha. Deixei de me interessar pela prosa. Quase deixei de ler romances e quase tudo o que passei a escrever era poesia e, mesmo quando era em prosa, passou a ser prosa poética. E o meu daímôn não me dava sossego. Levada pelo fascínio pelo primordial, foram-me surgindo outros interesses: a História Antiga, a Arqueologia, os Estudos de Género, a História da Medicina, sobretudo, a Medicina Antiga. A dualidade transformou-se numa multiplicidade, da qual ainda não vi o fim.

O que eu sou verdadeiramente? Um ser inquieto e insatisfeito, em aberto, em devir. Tudo o que faço é por gosto e paixão. Tudo registo na minha vida que é uma espécie de sismógrafo. Por vezes, sou feliz. Em tudo sou intensa, una e verdadeira.