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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa jun. 2017

 

(AUTO-)RETRATO

Salwa El-Shawan Castelo-Branco


 

 

 

A minha vida repartiu-se por três espaços geográficos e culturais muito diversos: Cairo, Nova Iorque e Lisboa. Esta vivência proporcionou-me uma mundividência cosmopolita que se mantém viva através da memória que me liga a pessoas, lugares, espaços, eventos e sons que me marcaram ao longo da vida, assim como através de uma teia de ligações pessoais e profissionais que mantenho nos cinco continentes.

Nasci no Cairo, Egipto, a 1 de Maio de 1950, numa família pertencente à minoria cristã que integrava a elite cultural cosmopolita da cidade. Meu pai, Aziz El-Shawan (1916-1993), era um compositor proeminente, tendo criado um estilo nacionalista, inspirado na música tradicional e moldado na linguagem da música erudita ocidental romântica. A minha mãe, Laila El-Shawan (1928-2011), era empresária, tendo fundado e gerido ao longo de 30 anos a sua própria empresa de turismo.

Na casa dos meus pais, a audição de discos de música ocidental erudita fazia parte do quotidiano. Além disso, a frequência dos concertos da Orquestra Sinfónica do Cairo e da temporada de ópera e bailado do Teatro de Ópera da mesma cidade era um ritual semanal dos meus pais, que me levavam com eles desde tenra idade. A casa dos meus pais era um ponto de encontro de músicos e intelectuais que debatiam a política cultural e o futuro do país num período de grandes transformações marcado pelo fim da Monarquia e pelo estabelecimento de um regime nacionalista republicano liderado pelo Coronel Gamal ‘Abd Al-Nasser, entre 1956 e 1970.

Iniciei os meus estudos de piano aos cinco anos com uma professora privada, ao mesmo tempo que frequentava o colégio inglês El-Salam College. Aos nove anos, ingressei no Conservatório Nacional do Cairo como aluna externa, e aí continuei a estudar piano na classe de Ettore Puglizi, um professor de origem siciliana que se mudou para o Cairo nos anos 30 a convite do Rei Farouk para ser seu instrutor privado. Puglizi permaneceu na capital egípcia até ao seu falecimento, no início dos anos 80.

A partir do ensino secundário, decidi que a música era o caminho para o meu futuro. Sonhei ser concertista de renome internacional. Inscrevi-me no ensino integrado secundário no Conservatório Nacional do Cairo, onde continuei a nível superior, tendo completado a Licenciatura em Piano em 1970 com a mais alta classificação.

Embora tivesse uma oferta de emprego como assistente no Conservatório do Cairo, desejava concretizar o meu sonho de ser concertista, o que requeria mais estudos e uma vivência artística num país com uma grande tradição de música ocidental erudita. Concorri para diversos programas de Mestrado em Piano oferecidos por escolas superiores de música na cidade de Nova Iorque, para onde a minha tia materna havia emigrado na década anterior. Fui aceite na Manhattan School of Music, uma das melhores escolas de música da cidade de Nova Iorque, onde estudei entre 1970 e 1973 com uma excelente professora, Constance Keene. Recebi igualmente uma bolsa da PEO International Peace Scholarship Fund que apenas chegava para pagar as propinas, o que me obrigou a ter de trabalhar a tempo parcial para fazer face às restantes despesas.

A mudança para Nova Iorque transformou a minha vida profissional e pessoal. Tive acesso a um ensino de música de excelência e à audição de orquestras e artistas de renome internacional. Com o apoio da minha professora de piano, estudei o Concerto para Piano e Orquestra da autoria do meu pai, que toquei com a Orquestra Sinfónica do Cairo, em 1972. Em Nova Iorque, vivi na Casa Internacional/International House, uma residência para estudantes americanos e estrangeiros, o que me proporcionou um convívio e um intercâmbio intelectual com jovens estudantes de diversos países do mundo. Foi na Casa Internacional que conheci Gustavo Castelo-Branco, então um jovem estudante de Física, com quem me casei em 1974.

Apesar da excelente formação musical e do ambiente artístico estimulante proporcionados pela Manhattan School of Music e pela cidade de Nova Iorque, senti a necessidade de me desenvolver intelectualmente, de compreender os significados da música e a sua articulação com os contextos cultural, social e político. A minha professora de História da Música na Manhattan School of Music, a musicóloga Ethel Thurston, abriu-me um novo caminho ao incluir na sua cadeira uma introdução à Etnomusicologia. De imediato, esta disciplina despertou o meu interesse. Decidi explorar a Etnomusicologia, inscrevendo-me como aluna a tempo parcial numa das cadeiras oferecidas pela etnomusicóloga africanista Rose Brandel no Mestrado em Etnomusicologia no Hunter College, uma das Faculdades da City University of New York. Foi nas aulas de Rose Brandel que ouvi exemplos de música africana pela primeira vez, o que me deixou fascinada e com muita vontade de aprender mais sobre as músicas do mundo. Na altura, Brandel seguia a abordagem da Musicologia Comparada, sobretudo na linha do seu mentor, o proeminente musicólogo alemão Curt Sachs, centrando as suas aulas na compreensão das estruturas musicais e sobretudo na análise rítmica. Apesar de a Etnomusicologia da década de 70 já se caracterizar por uma abordagem antropológica que privilegiava o estudo da música na cultura e não por uma ênfase na análise do som musical, as aulas da Prof.ª Rose Brandel foram muito enriquecedoras, tendo contribuído para a minha decisão de me dedicar ao estudo da Etnomusicologia. Concorri a diversos programas de doutoramento e fui aceite com uma bolsa de estudos na Columbia University, uma das melhores universidades norte-americanas, onde completei o Mestrado e o Doutoramento em Etnomusicologia em 1975 e 1980, respectivamente. Na Columbia University, o programa de estudos era multidisciplinar e os seminários eram orientados por figuras de proa nas suas disciplinas (por exemplo, Dieter Christensen e Adelaida Reyes, Etnomusicologia; Christoph Wolff, Musicologia Histórica; Margaret Mead, Marvin Harris, Morton Fried e Robert Murphy, Antropologia), o que exigiu um trabalho intenso por parte dos doutorandos.

Já em 1979, no último ano da redacção da minha tese de doutoramento, concorri a uma posição como professora auxiliar em diversas universidades norte-americanas, tendo conseguido um lugar “tenure track” na New York University; tratava-se de uma posição que, cumprindo as exigências de ensino e investigação de qualidade, passaria a permanente. O primeiro ano na NYU representou um grande desafio profissional e pessoal. Além de estar ainda a terminar a tese de doutoramento e a ensinar a tempo integral, fui encarregada de conceber um programa de Mestrado em Etnomusicologia Urbana, na altura um novo subdomínio da Etnomusicologia. Por outro lado, o meu marido, Gustavo Castelo-Branco, tinha um post doc na Carnégie-Mellon University, uma das melhores universidades norte-americanas no domínio da Física Teórica, o que implicou um vaivém semanal entre Pittsburgh e Nova Iorque, cidades que distam mais de 500 quilómetros.

Em 1981, nasceu em Nova Iorque a nossa filha Laila-Maria, o que nos levou a considerar seriamente os convites para leccionarmos em Portugal por parte do Instituto Superior Técnico, no caso de Gustavo Castelo-Branco (actualmente professor catedrático naquela instituição), e do Instituto Gregoriano e do recém-fundado Departamento de Ciências Musicais (DCM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no meu caso. Aliás, nesse mesmo ano, encontrei-me pela primeira vez com a professora Maria Augusta Barbosa, fundadora e primeira coordenadora do DCM, que me recebeu com cordialidade, manifestando interesse na minha colaboração no Departamento e na integração da moderna Etnomusicologia no recém-lançado programa de Licenciatura em Ciências Musicais.

Tomada a decisão da mudança para Portugal em 1982, tracei como objectivos para o meu trabalho no DCM: “ministrar ensino actualizado em termos teóricos e metodológicos de modo a formar uma nova geração de etnomusicólogos competentes e internacionalmente competitivos; incentivar os jovens formandos a levar a cabo investigação etnomusicológica em Portugal e no espaço lusófono em torno de problemáticas actuais; encetar um diálogo científico com uma rede alargada de instituições e investigadores em Portugal e no estrangeiro de modo a colocar Portugal no circuito internacional de produção científica no domínio da Etnomusicologia” (Castelo-Branco, 2010). Após a jubilação da Prof. Maria Augusta Barbosa, fui nomeada coordenadora do DCM entre 1984 e 1988 e de novo entre 1995 e 1997. A responsabilidade pelo DCM trouxe novos desafios, pois era necessário consolidar o programa de Licenciatura, atrair docentes competentes e internacionalizar o ensino. Na altura, eram docentes do DCM Gerhard Doderer, Constança Capdeville e João de Freitas Branco. Foi então claro para mim que havia necessidade de contratar jovens que estivessem a acabar o doutoramento no estrangeiro. Foi neste contexto que, num primeiro momento, assegurei a contratação de Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, que estavam ainda a estudar no estrangeiro, e, num segundo momento, de Mário Vieira de Carvalho. Organizei dois colóquios internacionais que contribuíram para colocar Portugal no circuito internacional da investigação etnomusicológica. O primeiro teve lugar em 1986 na Fundação Calouste Gulbenkian, um ano após o nascimento do meu filho Ricardo. Foi organizado em colaboração com o Conselho Internacional de Música Tradicional, tendo focado os processos musicais desencadeados pelos encontros históricos entre Portugal, África, Brasil e Ásia desde o século XV (Castelo-Branco, 1997). O segundo colóquio focou as culturas musicais urbanas no espaço ibero-americano no final do século XX e foi organizado no âmbito de Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura.

Em 1990, lancei o Mestrado em Ciências Musicais com duas áreas de especialidade, Musicologia Histórica e Etnomusicologia. Cinco anos depois, fundei e desde então coordeno o Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança, actualmente uma unidade de investigação polinucleada, com sede na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e com pólos nas Universidades de Lisboa e Aveiro e no Instituto Politécnico do Porto. Primeira unidade de investigação no âmbito das Ciências Musicais em Portugal, desde 1997 conta com o financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tendo sido classificada como “Excelente”. Simultaneamente, levei a cabo uma intensa actividade pedagógica e de gestão científica e desenvolvi trabalho de investigação através de projectos de pesquisa individuais e em equipa, no Egipto, em Omã e em Portugal, tendo sido investigadora responsável de dez projectos financiados pela FCT, desde 1997. O maior projecto por mim coordenado foi levado a cabo por uma equipa editorial de 15 membros e 150 redactores ao longo de mais de uma década, tendo resultado na publicação, em 2010, da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, em quatro volumes pelo Círculo de Leitores. A primeira grande obra de referência dedicada à música praticada em Portugal ao longo do século XX, recebeu críticas elogiosas publicadas em revistas académicas nacionais e estrangeiras. Reconhecendo o contributo desta obra, a Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu-me o prémio Pró-Autor, em 2010.

Além do meu trabalho académico em Portugal, continuei a desenvolver a minha carreira a nível internacional, publicando em revistas e livros de prestígio, participando em congressos e passando licenças sabáticas como Professora Convidada nas universidades de Columbia, Princeton, Chicago e Cambridge. Fui eleita Vice-Presidente da Society for Ethnomusicology (a maior associação académica norte-americana no domínio da Etnomusicologia). Actualmente, sou Presidente do International Council for Traditional Music (a maior associação académica internacional no domínio da Etnomusicologia). Este trabalho a nível internacional teve o reconhecimento da Sociedade Suíça de Musicologia, que me atribuiu o Prémio Glarean, conferido pela primeira vez a uma mulher, em 2013.

Trinta e cinco anos volvidos sobre a minha decisão de me radicar em Portugal, verifico com satisfação alguns resultados do meu trabalho: a moderna Etnomusicologia está solidamente institucionalizada na FCSH-­‑UNL e na Universidade de Aveiro (pela mão de jovens que se doutoraram comigo); formei três gerações de etnomusicológos/as que hoje são profissionais com posições de ensino e investigação no país; o INET-md é reconhecido como um dos melhores centros de Etnomusicologia na Europa.

Devo muito do que sou hoje à minha vivência cosmopolita, assim como a um conjunto de pessoas, das quais apenas pude mencionar algumas neste texto. Devo também muito do que sou hoje a Portugal, o país que me acolheu com abertura e generosidade, onde passei a maior parte da minha vida, onde constituí família, onde desenvolvi a minha carreira académica e onde me sinto verdadeiramente “em casa”. É a partir de Portugal e da língua portuguesa que hoje perspectivo o mundo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Castelo-Branco, S. E. (1997). Portugal e o mundo: O encontro de culturas na música. Lisboa: Dom Quixote.         [ Links ]

Castelo-Branco, S. E. (2010). Enciclopédia de música em Portugal no século XX. (4 volumes, 1500 páginas, 1250 entradas). Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates        [ Links ]