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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa June 2017

 

(AUTO-)RETRATO

Séverine: Uma vida de luta pela Paz, pela Justiça e pela Fraternidade

Ilda Soares De Abreu*

 * Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, ildaabreu2015@gmail.com


 

 

 

Anarquista. Libertária. Revolucionária. Socialista. Pacifista. Aguerrida nas convicções, fez do jornalismo a arma de luta pela proteção social de trabalhadores/as e pelo direito das mulheres à educação, ao divórcio e ao aborto legal. No princípio do século XX, foi para a rua em protesto e apelo ao combate cívico a favor do voto feminino.

As suas crónicas eram apreciadas e divulgadas em Portugal por Guiomar Torrezão1 e gozava do apreço de Magalhães Lima (1850-1928), diretor do diário O Século (1881-1896) e que a considerava “o mais brilhante e notável talento de mulher que hoje existe em França” (Lima, 1888, pp. 154-155).

DE CAROLINE RÉMY A SÉVERINE

Caroline Rémy nasceu em Paris, a 27 de abril de 1855, numa família oriunda da Lorena. O pai era funcionário da Prefeitura. Era ruiva e de cabelo encrespado e diz-se que era muito bela.

Caroline, ou Line, teria uma educação tradicional para meninas do seu meio e do seu tempo, destinadas ao casamento ou a um modesto meio de subsistência.

Em 1871 ou 1872, casou-se com Antoine-Henri Montrobert, empregado na Companhia do Gás, de quem teve o filho Louis. Em 1873, separou-se do marido, deixou-lhe o filho e regressou à casa paterna. Durante cinco anos, viveu de lições de piano, de trabalhos de costura e bordados, até que se empregou como lectrice de Mme. Guebhard, viúva de origem suíça. O filho desta, Adrien Guebhard (1849-1924), professor de medicina e matemático reconhecido, enamorou-se de Caroline e com ela passou a viver (Winock, 2001).

A união era ilícita – o divórcio só foi restabelecido em 1884 – e, quando do nascimento do filho de ambos, deslocaram-se a Bruxelas para um parto discreto. O consulado de França registava, em 1880, o nascimento de Roland, “né de mère inconnue” (Winock, 2001, p. 554). A criança foi entregue a uma ama até que foi acolhida pela avó paterna.

Tudo parecia indicar que a irrequieta Caroline se iria render ao bem-estar da burguesia, segundo o conceito da época. No entanto, não esqueceu as condições da classe de que era oriunda.

Em Bruxelas, Caroline e Adrien tinham privado com o communard Jules Vallès2 que, depois da amnistia de 14 de julho de 1880, regressava Paris e ao convívio com o casal Guebhard, com quem teria afinidades políticas.

Caroline tornou-se secretária particular de Vallès, pessoa socialmente pouco recomendável e de quem Mme. Guebhard a quis afastar.

Vallès era o único apoio para a carreira jornalística com que ela sonhava. Em desespero, recorreu ao suicídio (ou simulação), com um tiro de revólver, para sensibilizar a família. Segundo dizia, tinha a bala alojada nos pulmões. A história dava-lhe um toque de heroína romântica com muito êxito nos salões.

Vencidas as resistências, aliou-se, mais do que nunca, aos projetos de Vallès. O casamento não iria resistir à aventura.

SÉVERINE JORNALISTA E CRONISTA

A lei de 29 de julho de 1881 estabelecia a liberdade de imprensa. Com o apoio financeiro de alguns amigos, entre eles os Guebhard, Vallès relançava, a 28 de outubro de 1883, Le Cri du Peuple, “quotidien litteraire et politique, non sectaire, récusant les étiquettes, sauf celle – non affiliée – de socialiste révolutionnaire” (Winock, 2001, p. 554).

Nesse jornal, Caroline ensaiou as primeiras crónicas, sem êxito. Tornou-se conhecida numa rubrica literária e teatral intitulada “Notes d’une parisienne”, em que assinava com o pseudónimo “Séverine” (Winock, 2001).

Quando Vallès faleceu, a 15 de fevereiro de 1885, sucedeu-lhe como diretora do jornal, continuando as diretrizes do mestre, em crónicas e reportagens de rua em que, numa escrita crua e direta, se debruçava sobre factos verídicos e vivências de pessoas concretas, para denunciar as terríveis condições em que trabalhava e sobrevivia o operariado. Passou a ser considerada como uma voz em defesa dos fracos contra os poderosos da riqueza e/ou da política. Nesse sentido, não hesitou em descer às minas de St. Étienne para, depois, em crónicas, “chamar para os infelizes mineiros a atenção de todas as classes sociais e a consideração especial dos poderes públicos” (Lima, 1888, p. 155).

Essas experiências ditaram-lhe um percurso e uma divisa: sempre ao lado dos pobres, apesar dos seus erros, apesar dos seus crimes.

Em 1888, já considerada no meio jornalístico, Séverine deixou a direção do jornal, depois de uma polémica com o teórico socialista Jules Guesde3. Passou a publicar em jornais de diferentes correntes ideológicas: L’Éclair, L’Écho de Paris, Le Gaulois, Gil Blas e La Libre Parole, que aproveitaram a clientela de leitores da conhecida libertária.

Em mais de quatro mil crónicas, deu a face por questões polémicas como o direito ao aborto: no artigo de opinião “Le droit à l’avortement”, publicado no quotidiano Gil Blas, a 4 de novembro de 1890, traçou um vivo retrato da miséria familiar das operárias, denunciando a hipocrisia social e institucional em relação às práticas abortivas (Eveno, 2010).

Por volta de 1885, tinha-se envolvido, sentimentalmente, com o jornalista Georges Labruyère. Guiomar Torrezão, que o conheceu em Paris, descreveu-o como “baixo, atarracado, de fisionomia dura, embora sagaz e de medíocres aptidões plumitivas na sua esfera de jornalista militante” (Torrezão, 1896, p. 13).

Em 1896, Labruyère, “um explorador, um imoral, que sugava luíses de oiro aos imbecis como Max” (Ibidem, p. 14), foi acusado de envolvimento num caso de chantagem a Max Lebaudy, um comerciante corrupto, e foi preso. O caso provocou uma guerrilha jornalística entre Séverine, em La Libre Parole apoiando Labruyère, e Rochefort4, em L’Intransigent, que o condenava.

O caso chegou à imprensa portuguesa, e Guiomar Torrezão colou-se à defesa emocional da amiga. Quando Marguerite Durand5 fundou o jornal La Fronde, Caroline Rémy Guebhard ali publicou crónicas abertamente libertárias sob os pseudónimos de “Séverine” e “Arthur Vingtras” nome do protagonista da tetralogia de Jules Vallès.

Em 1927, alinhava na campanha a favor de Sacco e Vanzetti, anarquistas condenados à morte, já depois de testemunhadas as suas inocências.

ENVOLVIMENTO POLÍTICO

Claro que havia objetivos políticos expressos nas crónicas de Séverine. Ignorando a tão festejada coerência, cedeu a entusiasmos de ocasião, por vezes contraditórios. Foi, por algum tempo, boulangista, alinhou no movimento antissemita em La Libre Parole, de Drumont, depois mostrou-se acérrima defensora de Dreyfus, em sintonia com La Fronde de Marguerite Durand. Pacifista, tomou posições contra o envolvimento da França na I Guerra Mundial. Em 1918, aderiu à SFIO (Section Française de l’Internationale Ouvrière), que abandonou, em 1921, para se filiar no Partido Comunista Francês, cujas teses lhe pareceram mais conformes à mudança político-social que defendia. Saiu, logo, em 1923, quando a disciplina partidária lhe impôs o abandono da Liga dos Direitos do Homem que ela tinha ajudado a fundar.

A QUESTÃO DAS MULHERES

Por toda a Europa, apóstolas da causa feminista, em posições económicas e sociais privilegiadas, envolviam-se em associações e movimentos reivindicativos dos direitos das mulheres, recorrendo a ações mais ou menos radicais. Em França, Hubertine Auclert (1848-1914) fundara, em 1876, a sociedade Le Droit des Femmes e, depois, La Citoyenne (1881-1891), jornal de combate pela igualdade civil e política, sem discriminação de sexos.

Então, Séverine preocupava-se com as questões sociais que envolviam a dignidade humana e não via no voto feminino qualquer utilidade para a classe operária. A opressão de que falavam as feministas poderia atingir todas as mulheres mas evidenciava-se diferentemente. Para aquelas, as questões fundamentais referiam-se à emancipação legal e económica e ao acesso a carreiras políticas. Para as operárias eram outros os problemas: baixos salários, miséria familiar, natalidade frequente, aborto, infanticídio e, por vezes, a prisão. Temas que as crónicas de Séverine levavam à consciência pública.

A SUFRAGISTA

Em 1900, realizava-se em Paris o Congresso Internacional da Condição e dos Direitos das Mulheres, sob a égide de Marguerite Durand. Participantes de ambos os sexos e de vários países ali se reuniram em defesa dos direitos civis e políticos das mulheres em diversos domínios da atividade humana. Defendeu-se que a mudança passaria pelo sufrágio feminino. Em 1908, Hubertine Auclert publicava Le Vote des Femmes e, em 1909, Cécile Brunschvicg (1877-1946) era a mentora da Union française pour le suffrage des femmes.

Séverine reagiu contra a prescrição da lei eleitoral do Parlamento francês que, em 1910, vedava o voto à mulher instruída, quando o facilitava a qualquer homem, ainda que incapaz e quase analfabeto. No semanário Nos Loisirs, declarou-se publicamente a favor do voto das mulheres e passou à ação encabeçando desfiles de sufragistas pelas avenidas de Paris.

 No sentido de fortalecer o movimento, tentou unir as associações sufragistas francesas entre si e numa federação internacional, sem resultado.

Só em 1945, as francesas votariam para a Assembleia Constituinte.

Labruyère faleceu em 1920. Séverine voltou a viver com o marido, Adrien Guebhard, até à morte deste, em 1924. Faleceu a 24 de abril de 1929, na sua casa em Pierrefonds. Escreveu até ao fim da vida, mantendo o espírito livre e revoltado, inimigo de todo o dogmatismo (Klejman e Rochefort, 1996).

ALGUMAS OBRAS PUBLICADAS POR SÉVERINE

1893. Pages rouges. Paris: H. Simonis Empis.

1894. Notes d’une frondeuse: De la Boulange au Panama. Préf. Jules Vallès. Paris: H. Simonis Empis.

1896. En marche. Paris: H. Simonis Empis.

1900. Affaire Dreyfus: Vers la lumière … impressions vécues. Paris: Stock.

1921. Line: 1885-1867. Paris: Crès.

 

1Guiomar Torrezão (1844-1898), escritora, jornalista, cronista e publicista portuguesa que fundou e dirigiu o Almanaque das Senhoras entre 1871 e 1898.

2Jules Vallès (1832-1885), jornalista, cronista e repórter libertário. Foi, muitas vezes, preso por publicar artigos adversos à situação política. Communard, foi condenado à morte por contumácia, em 1872, pelo que se exilou em Londres e, depois, em Bruxelas. Em 1871, tinha fundado Le Cri du Peuple, quotidiano de extrema esquerda que, durante a Comuna, foi o jornal mais lido em Paris, com uma tiragem de 100 000 exemplares. Durante o exílio em Bruxelas, escreveu a trilogia autobiográfica L’Enfant, (1878), Le Bachelier (1881) e L’Insurgé (1886).

3Jules Guesde (1845-1922), socialista, fundador de L’Égalité (1877-1883), o primeiro jornal marxista publicado em França. Foi também um dos fundadores do Partido Socialista Francês.

4Henri Rochefort (1831-1913). Comunnard, foi deportado para a Nova Caledónia, de onde se evadiu, em 1874. Reentrou em Paris depois do armistício, em 1880. Fundou o quotidiano L’Intransigent, que contava com cerca de 20 000 leitores. Manifestou-se antissemita e antidreyfusard (Eveno, 2010).

5Marguerite Durand (1864-1936), jornalista republicana e socialista, defensora da igualdade de direitos. Fundou o jornal La Fronde, o primeiro quotidiano feminista concebido, escrito e impresso por mulheres (Klejman e Rochefort, 1996).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Klejman, L. & Rochefort, F. (1996). La Fronde. Marguerite Durand. Séverine (Caroline Rémy). In J. Julliard e M. Winock (Dir.), Dictionnaire des intellectuels français (pp. 408-409, 514-515 e 1055-1056, respetivamente). Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

Lima, S. M. (1888). Pela pátria e pela república. Porto: Casa Editora Alcino Aranha & Ca.         [ Links ]

Patrick, E. (2010). Les grands articles qui ont fait l’histoire. Paris: Flammarion.         [ Links ]

Torrezão, G. (1896, n.º 2, janeiro, 31), A crónica. Lisboa: Ed. António Maria Pereira, pp. 11-14.         [ Links ]

Winock, M. (2001). Les voix de la liberté. les écrivains engagés au XIX siècle. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]