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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa dez. 2017

 

ENTREVISTAS

Retrato falado com Rita Barros

Cristina L. Duarte*

*Investigadora integrada. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, lduarte.cduarte@gmail.com


 

 

Rita Barros nasceu em Lisboa no dia 13 de Junho de 1957. No início da década de oitenta rumou a Nova Iorque para estudar. Hoje continua a viver na Grande Maçã, no Chelsea Hotel, ao qual dedicou o livro 15 years: Chelsea Hotel. Em 1987 participou na sua primeira colectiva e em 1992 fez a sua estreia a solo. É professora adjunta da Universidade de Nova Iorque (NY University).

Rita Barros é bisneta de Cláudia de Campos.

Desde a década de 1980 que vives em Nova Iorque, no Chelsea Hotel. O que te levou a Nova Iorque e depois a escolher um hotel para viver?

Fui para Nova Iorque estudar e depois fiquei, o que não era raro na altura. Só fui viver para o hotel em 84 e fui numa situação provisória, enquanto procurava um outro apartamento na cidade. Depois o manager do hotel propôs um outro apartamento, e a opção foi essa, de ficar lá num outro apartamento.

A experiência do dia a dia levou a isso: ir ficando. Até hoje. Deram-se muitos acontecimentos. Incluindo a venda do hotel, que era uma ilha à parte. Gerido por um manager que era sócio maioritário, ele só alojava lá quem ele queria; que tivesse, segundo ele, a ver com o hotel. Havia uma mistura de tudo, do mais pobre ao mais rico, poetas, escritores, dealers, pintores, meninas de programa. A confluência das pessoas mais diversas dava uma experiência de grupo muito interessante, um estar único. Estando ali e conhecendo os vizinhos, comecei a desenvolver um projecto, que foi olhar para o interior de cada apartamento, de cada vizinho que ia encontrando e gostando. Comecei por fotografar os interiores que eram verdadeiramente genuínos. Nada era tradicional. Cada um tinha a sua coerência. E passei a fotografar os vizinhos enquadrados nos seus ambientes [para um livro]. Mais tarde este trabalhado foi editado no livro 15 anos: Chelsea Hotel (1999), publicado pela CML, com a ajuda e entusiasmo do João Soares, que era o presidente da câmara. As fotografias foram mostradas em Coimbra primeiro, pelo Albano (nos Encontros de Coimbra), e depois em 1999 achei que já tinha material para um livro, e queria avançar para outros projectos. Consegui fazer o livro, primeiro lançado em Lisboa e destacado pela Time Out como livro da semana, e depois em Nova Iorque (Barnes & Noble). As fotos já tinham sido publicadas pela Zoom francesa e também pela edição internacional onde me deram dez páginas. Correu superbem. Uma vez o livro editado, deixei de ‘fotografar os vizinhos' e passei a fotografar dentro de minha casa, que é um quarto e uma sala, um apartamento. Se quiseres, havia uma narrativa exterior com os vizinhos, e depois passei a fazer mais uma narrativa interna. Foi a partir desta altura que passei a fazer livros de artista, em diferentes formatos, assim como em acordeão, com uma história que é uma narrativa. Não tem de ser um script, é uma ideia que me passa pela cabeça. No ‘último cigarro', inspirei-me no livro A consciência de Zeno, de Italo Svevo, e num excerto do livro em que o personagem está sempre a fumar o último cigarro, e depois recomeça, porque o último cigarro é o que dá o maior prazer. Como é que consegues gerir uma adição? Como é que se abandona uma necessidade que também pode ter contornos físicos? A ideia desse livro é a de fazer um cerimonial à volta do last cigarette… Isso está no site [http://www.ritabarros.com/].Há uma ideia que dá o arranque, que depois tem uma sequência de fotos. Depois desta série fiz várias outras com temas por vezes mais abstractos e que abordam as minhas preocupações.

Pode-se contar a tua vida através da sucessão de exposições?

Pode. Sem problema. Se fores o Sherlock, chegas lá. (risos) Ou seja, as fotografias que eu faço são a minha própria história. Trabalhei em jornais e aí as fotografias eram diferentes, era ir ao centro de uma crise e captar o acontecimento. As minhas fotos são a minha vida e o retrato emocional do que vai acontecendo. Começa com as fotos dos meus vizinhos, aqueles que estão à minha volta, os ambientes, mas que eu escolhi. Depois dos meus vizinhos, passei a fazer histórias ligadas às minhas preocupações, encenadas em casa. “Presença da Ausência”, que foi também a minha tese de mestrado, tinha a ver com o meu ambiente pessoal. Esta série esteve no Photo España de 2007.

Depois Wall (2009) faz parte dos meus livros de artista. Na Casa da Cerca escolhi a cisterna, eu cheguei lá num estado emocional… Havia qual quer coisa que me atraiu. Foi muito especial. Era um lugar que me chamou por qualquer razão. Era aquela cisterna. Expus uma sequência de fotos, que se pode ler de frente para trás, ou ao contrário. Sendo redondo o espaço, podia-se optar pela sequência a seguir; o livro de artista também estava exposto em vitrine. O último livro de artista que fiz, que recria um apartamento duma antiga vizinha, está em exposição no Kohler Arts Center, no Wisconsin, entre Junho de 2017 e Março de 2018.

Na série 3×3 (2010) é a passagem do analógico ao digital; de repente o analógico puxa por uma experiência diferente. Há uma limpeza no digital que não há no analógico. A partir daí comecei a descobrir muito mais informação nas fotografias. A fotografia é um todo, mas cheio de detalhes. Ao fazer uma aproximação, passei a descobrir outras ideias. Passei a fazer retratos numa grelha de nove imagens; fragmentos ligados ao mundo do sujeito, “3×3”, o retrato feito com fragmentos. À volta do mundo de cada um. Qual é a definição dum retrato? A relação entre o sujeito e o objecto? No retrato tradicional a cara serve esse fim.

A exposição “3×3”, que esteve na galeria Pente 10 em Lisboa, foi seleccionada pelo crítico Vince Aletti para a exposição “Photography Now”, no Centro de Fotografia em Woodstock. Pretendia pôr em questão a ideia tradicional do retrato e abrir portas a outras possibilidades.

Passamos a Bohemia Life and Death in the Chelsea Hotel (2015), que foi o título da exposição retrospectiva com curadoria do Jorge Calado.

O hotel é vendido em Agosto de 2011 e de seguida passa a haver uma política de assédio aos inquilinos antigos. E eu sou ‘chamada' para documentar, senti que tinha de documentar estes acontecimentos. A violência do absurdo diário, das destruições de paredes, invasão de brocas pelas paredes, inundações, etc. O Displacement é a parte mais dura do que está a acontecer ali. O Displacement2 é a fotografia da performance, feita ao mesmo tempo. Depois há outra componente, do Facebook, onde passei a fazer fotografia, para dar a conhecer ao mundo o que se estava a passar neste espaço icónico da cidade. Com receio de ser processada pelos novos donos, passei a escrever comentários nas fotos que coloquei no Facebook podendo assim alegar ‘liberdade de expressão'. Estou a comentar e isso é diferente de ser só fotografia. O que eu escrevia não tinha nada a ver com a fotografia. A minha cozinha foi inundada e documentei isso no Facebook. Faço uma foto de mim frente ao fogão, “cooking in the rain”. Eu estou na cozinha com o guarda-chuva aberto. Um passeio entre as ratoeiras… no corredor do hotel é outra fotografia. “I have company for dinner”… vêem-se homens perto do apartamento/janela; é uma maneira de enfrentar as coisas, no Facebook.

Displacement2 esteve em Lisboa, patente na loja da Atalaia?

As performances ligadas ao sítio e com o tijolo. Regar o tijolo. O que espoleta isto é o jardim da minha vizinha. Quando vou regá-lo, estão uns tipos a partir tudo. Filmei tudo e meti na internet. A fúria foi tal que comecei a partir tijolos, e veio essa sequência de fotos. Na loja da Atalaia estavam os tijolos (século XIX); resolvi trazê-los de Nova Iorque. Os tijolos são da marca “King”, e com a fotografia que fiz do negativo em cimento do tijolo criei um certificado de garantia. Quem comprava a fotografia tinha direito ao tijolo.

Presença da ausência. Os detalhes. Podes falar-nos dos teus?

O [Stanley] Kubrick pede ao Arthur C. Clarke para escrever o guião do 2001: Uma Odisseia no Espaço, que ele faz neste apartamento onde eu vivo. Depois do filme feito é que sai o livro. Normalmente há um livro e o guião segue-o. Aqui foi o guião primeiro. Quando, em 2001, o Porto foi Capital Europeia da Cultura, fiz essa exposição para celebrar a data, e foi daí que veio esta série, na Galeria 111, no Porto. Fiz uma homenagem ao meu Room 1008, onde foi escrito o 2001. Os nove livros de artista que fiz para a exposição foram todos comprados por Serralves.

O livro Macbeth foi feito em colaboração com um amigo, António Calpi. Pedi-lhe para interpretar através da expressão dos olhos os vários momentos da peça Macbeth. São vários os livros com ele; outros com Rene Ricard, um poeta que viveu comigo.

Em In Daddy's Hand utilizo fotografias de família para ilustrar um poema escrito pelo Rene. Ele leu este livro em várias sessões de poesia em Nova Iorque.

Diálogos imaginários com pessoas reais (Cláudia de Campos, bisavó paterna, f. 1916). Quais seriam as tuas pessoas, aquelas que te influenciaram e com quem poderias manter um diálogo?

Falaste da Cláudia de Campos, talvez ela. Foi a mãe da mãe do pai, Alberto Magalhães Barros. Não sabendo nada sobre ela, podia ser muito interessante querer saber mais. Seria mais pesquisa do que outra coisa, sem termos as referências, viver aquele tempo. Com pessoas vivas podia ter uma conversa mais elaborada. Até que ponto vivemos um tempo que não foi o nosso? A Cláudia de Campos, por exemplo, como foi para ela ser uma mulher divorciada no seu tempo?

A minha mãe saiu de casa para ir viver com o escritor Ruben A. Foi um escândalo na altura. Ele morreu em Londres pouco tempo depois e ela voltou para Lisboa; poucas foram as amigas que falavam com ela. O embate de vir com um morto às costas, e tudo o resto...

Que perguntas se pode fazer a alguém, que se desconhece, e quando te foi dado conhecer o nome de Cláudia de Campos?

Havia um grande retrato da Cláudia de Campos numa quinta onde íamos passar a Páscoa. Uma senhora elegante com um fato cintado de tom encarnado ligeiro e um grande colar de pérolas. Foi tudo o que conheci dela. Mais tarde recebi a edição do livro Elle editado pela Câmara de Sines, em 1997. Em Dezembro de 2016 com a exposição e homenagem feita na Biblioteca Nacional de Lisboa, por Isabel Lousada e Sandra Patrício, vim a ter um outro conhecimento da sua vida e obra. Foi de facto uma pessoa fora de série não só pela maneira como viveu como pelos seus interesses intelectuais.

Não sendo reconhecida como escritora, não chegou até nós. Se fosse reconhecida por todos… Mas não foi. Essa existência da Cláudia de Campos, por ter sido uma vida diferente, foi abafada. Escrevendo e estando nos sítios… Assim que ela morre, nunca mais se pensa no assunto. A primeira vez que tive um contacto mais directo com ela foi com a edição de Elle, em 1997.

Nasceu em Sines e depois mudou-se para Lisboa. Uma mulher rica e independente, que fazia o que lhe apetecia, não deveria ser bem vista por uma sociedade conservadora. Primeiro a sociedade e depois a história ‘limpou' a sua história… tornou-a invisível.

Quem são as mulheres que são tuas fontes inspiradoras na fotografia?

Anne Brigman (EUA). Foi a única mulher que fez parte do grupo Photo Secession criado por Alfred Stieglitz, que defendia a fotografia como forma de arte. O Stieglitz foi um dos grandes impulsionadores da arte modernista em Nova Iorque. Na sua galeria, a 292, introduziu pintores como Picasso e Matisse, entre outros, e depois dedicou-se exclusivamente à fotografia.

Juliet Margaret Cameron tem uma abordagem menos técnica e imediata, trabalhou as lendas e mitos do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda. Início da fotografia… Aí estamos nos finais do século XIX.

Na deambulação pelo teu site descobrimos uma exposição chamada Beyond compare: women photographers on beauty. Que dimensão da beleza é ali tratada?

O contexto dessa exposição foi um convite por parte de uma empresa de beleza/cosmética. A ideia foi trabalhar o tema ‘a beleza vem do interior'. A foto que escolheram veio da série ‘Spider Woman' em que estou vestida com um fato de mulher-aranha.

A beleza interior pode ser vista e ser diferente da beleza exterior standard. A ideia do inter-racial (da publicidade da Benetton nos anos 90) é aqui alargada. É dar confiança às mulheres para se sentirem bonitas com o corpo que têm e de não sofrerem por não terem corpo de manequim.

Passamos para o próximo projecto.

Estávamos a falar de situações imaginárias. O que acontece foi que em 2015 achei que ia ser posta na rua, [expulsa] do hotel; já tinha posto os meus arquivos em armazém, para que não houvesse dramas. Tirei tudo o que era quadros de casa e, para não viver com as paredes brancas, fotografei tudo e passei a viver só com as cópias: Virtual apartment inicialmente (depois mudei o título para Room 1008: The Last Days) é um projecto que reflecte a minha vida com as cópias. Fotografei o apartamento com tudo o que estava e depois com o que ficou. É um projecto grande em que uma selecção esteve exposta na Royal Academy, no Summer Show, em Londres, em 2016.

O apartamento é aqui a cópia. A fotografia já é uma cópia de uma certa realidade. A ideia do que é uma fotografia, do que pode ser o retrato, as várias possibilidades do que pode ser o retrato; o próprio objecto e não objecto; conversas em volta da fotografia. Para te dar o voo da águia… diferentes projectos que vão dar sempre à história da fotografia e do que pode ser a função de uma fotografia… ver o que está à tua volta de uma maneira mais ou menos emocional. As várias etapas da vida são sempre documentadas, como respostas aos momentos, mas que ligam com a função da fotografia na minha vida.

12 de Janeiro de 2017