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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa Dec. 2017

 

PIONEIRAS

Matilde Sousa Franco: Caminhos de uma vida invulgar

Isabel Baltazar*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, ibaltazar@fcsh.unl.pt


 

 

Origens e primeiros anos de formação

Maria Matilde Pessoa de Magalhães Figueiredo de Sousa Franco nasceu em Lisboa, na freguesia de Benfica, a 8 de Julho de 1943, filha de João Correia de Magalhães Figueiredo (1908-1994), natural de Vouzela, engenheiro civil e louvado Coronel de Engenharia, e de Carlota Matilde Sérgio Pessoa de Figueiredo (1912-2006), natural de Lisboa, que estudou em casa e foi doméstica.

Matilde ficou conhecida por três nomes: Matilde Pessoa Figueiredo, do nome de solteira; Matilde Tamagnini, de 1971 a 1979, nome do seu primeiro marido, e pai da sua única filha, Inês Pessoa Figueiredo Tamagnini (de Sousa, pelo casamento), nascida em 1973. Matilde Sousa Franco é o nome que usa desde que casou, pela segunda vez, em 1983, em Coimbra.

Matilde entrou para a 1.ª classe da instrução primária com atraso de um ano, talvez porque a educação de uma rapariga não fosse considerada importante, mas fez a 2.ª e a 3.ª classes no mesmo ano e, nos exames da 4.ª classe e de admissão ao Liceu, obteve as máximas classificações. Dos 10 aos 12 anos ficou retida na cama devido a gânglios, dura provação que a impediu de estudar durante um ano, obrigando-a a estudar em casa, no ano seguinte. Desta provação tirou partido, dedicando-se à leitura, que lhe abriu fascinantes mundos. Foi nesta altura, com 11 anos de idade, que assistiu a uma manhã de aulas do curso de História da Faculdade de Letras, o que ocasionou a confirmação da sua vocação. Frequentou o 2.º ano do Liceu no Colégio de S. José, e no 3.º ano ingressou no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, onde estudou até ao final do percurso liceal, actual 11.º ano. Por vontade do pai, fez exame na alínea de Filologia Germânica, tendo obtido a média de 16 valores, pelo que foi dispensada do exame de admissão à Universidade.

Ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, transitando, no ano seguinte, para a alínea de História. Durante a licenciatura (1962-67), fez voluntariado social, sobretudo no CASU (Centro de Acção Social Universitário), ocupação que conciliou com trabalhos de traduções de Inglês e de Alemão. e deu explicações, porque a sua família vivia com parcimónia.

Ficou amiga para a vida de numerosos professores, como Isabel Marnoto; Angelina Rodo, sua professora de História do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho; na Faculdade, Veríssimo Serrão, que cita estudos seus na História de Portugal; Mário Chicó, que, nas duas cadeiras de História de Arte, lhe deu as notas mais altas; Oliveira Marques; Vitorino Nemésio; o filósofo Pe. Cerqueira Gonçalves; o Pe. Manuel Antunes. Foi com estes dois últimos mestres e, sobretudo, com o seu tio-avô António Sérgio, que aprendeu os valores da Democracia e do Humanismo.

Museóloga e professora (1967-2004)

Matilde sempre quis trabalhar num museu de Arte, mas, como precisava de ganhar dinheiro, não o fez na Casa-Museu do seu tio-avô o Escultor João da Silva, onde, ainda assim, colaborou desinteressadamente. Trabalhou como conservadora no Palácio setecentista do Correio-Mor, em Loures, tendo adquirido, para a sua decoração, centenas de antiguidades, a maior parte das quais foram em 1986 vendidas em leilões. Foi conservadora dos Museus Municipais de Lisboa, tendo sobretudo colaborado na montagem do Museu da Cidade e no Museu Rafael Bordalo Pinheiro.

Com 36 anos, foi directora do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, sendo a primeira mulher a dirigir o segundo mais importante museu estatal de Portugal. A sua acção no museu conimbricense consta sobretudo do pormenorizado relatório “Quatro Anos na Direcção do Museu Nacional de Machado de Castro”, publicado pelo museu em 1984, podendo-se destacar as suas acções pioneiras, na Museologia Social, no pedido de classificação de Coimbra como Património Mundial. Foi a primeira museóloga portuguesa a obter uma bolsa Fulbright, com a qual frequentou o primeiro Salzburg Seminar in American Studies, Áustria, dedicado a museus.

Enquanto directora do Palácio Nacional de Sintra, foi precursora no pedido de classificação de Sintra como paisagem cultural mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Foi conservadora/directora e reorganizou o Palácio/Museu da Assembleia da República/Parlamento, e o Museu de São Roque. Elaborou um projecto pioneiro de um Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa. Quando o seu marido foi ministro das Finanças (1995-99), sugeriu, a título gratuito, a criação do Museu do Dinheiro, motivos históricos portugueses para as moedas de euro, etc. Foi, igualmente, a primeira museóloga a trabalhar nas colecções da Academia das Ciências de Lisboa.

Como convidada, deu aulas de História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa.

É membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, da Academia Portuguesa da História e da Academia Nacional de Belas-Artes.

Breve incursão na política

Matilde Sousa Franco foi a primeira mulher deputada à Assembleia da República, como cabeça de lista do Partido Socialista (PS) pelo distrito de Coimbra (2005-2009). O seu mandato revelou-a como mulher de combates e de nobres causas. Independente, é de salientar o seu estilo muito próprio e inovador de fazer política, evidente no mote escolhido para a campanha eleitoral, o “Amor”, inspirado na comemoração do 650.º aniversário da morte de Inês de Castro. A sua forma diferente de fazer política seria destacada no discurso de despedida no Parlamento: “Servi Portugal e servi Coimbra”, finalizando um percurso de deputada marcado por assumidas convicções católicas. Nos seus combates, sempre dirimidos com argumentos não religiosos, esteve presente a defesa dos mais fracos, a estabilidade das famílias, os direitos dos idosos, a questão demográfica, segundo ela, princípios basilares para a construção de uma sociedade equilibrada e feliz.

Foram inovadoras muitas das suas propostas. A classificação como Património Cultural Imaterial pela UNESCO do Fado, da história/lenda de Inês de Castro, das Festas do Espírito Santo e da Festa dos Tabuleiros de Tomar. Na luta contra o aborto, a necessidade de Humanismo, da felicidade das mulheres e das crianças e da sociedade em geral. Escreveu, por exemplo: “Aborto: votar Não coloca Portugal pioneiro do Humanismo”. Na campanha do referendo à despenalização do aborto (2007), o seu slogan foi “Moderno é votar Não”, fazendo a apologia do século XXI como o século dos Direitos Humanos. Votou contra o Projecto de Lei n.º 485/X do Bloco de Esquerda que “Cria o Regime Jurídico do divórcio a pedido de um dos cônjuges”, alegando o facilitismo dos processos de divórcio. Posicionou-se também contra os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, sugerindo uniões civis registadas, etc.

Educação para a paz global sustentável

O programa “Educação para a Paz Global Sustentável/Education for Global Peace Sustainabilityé outro pioneirismo de Matilde Sousa Franco, sobre o qual escreveu no Observador, a 16 de Agosto de 2017, quando a UNESCO o aprovou. Este projecto, apresentado como a primeira cátedra UNESCO da Universidade de Lisboa, conta com apoios de mais de uma centena de pessoas e instituições, portuguesas e estrangeiras de variados países. É muito curiosa a maneira como Matilde nos conta como nasceu este sonho e como a vida se vive de sonhos, que, sendo bons para o mundo, encontram sempre o caminho para se realizarem, como confessa com o seu natural optimismo: “Todos podemos (e devemos) ser úteis à sociedade, e não há limite de idade para sonhar: concebi este sonho com 62 anos, e durante os 12 anos decorridos lutei arduamente pela sua concretização, como mero elemento da sociedade civil, apenas por achar que, embora modestamente, poderia ajudar a melhorar os corações, a favor da Paz no Mundo”.

Ao perguntar-lhe como se pode viver a sonhar, a preparar o futuro, Matilde responde com prontidão: “Sempre se podem fazer limonadas a partir de amargos limões, como o meu querido pai me ensinou”. Conta que em 2005 se lembrou de juntar a sua velha paixão por Psicologia à paixão pela Educação, sobretudo a nova Psicologia Positiva, que descobriu quando esta disciplina dava os primeiros passos, no início dos anos 90, tema que tinha o seu rosto, porque toda a sua vida fora uma mulher de combates positivos. Confidencia que nada na sua vida foi por acaso, porque foi a sua história pessoal que a levou a ser tão combativa e uma mulher de causas, como é notório numa conferência realizada sobre o tema “Violência e Mulheres”, que a inspirou a lutar por todas as formas de não-violência. Diz, em tom de brincadeira, que desde pequena experimentou o confronto com dois irmãos rapazes. Para se defender, começou desde cedo a ler livros de Psicologia. Assim, a Psicologia e a Educação tornaram-se os seus hobbies, embora as escolhas profissionais tenham sido no sentido da História: a Psicologia era um instrumento pessoal de defesa e compreensão dos outros, a Educação o caminho para chegar à Paz, e a História a ferramenta para melhor compreender o presente e perspectivar o futuro; a este conjunto, acrescenta a História da Arte, para que “a Beleza envolva tudo”. Como a própria afirma, “não é a Paz uma suprema forma de Arte?”.

A nossa pioneira defende a prevenção de conflitos nas próprias pessoas, individualmente, através de mecanismos psicológicos de gestão de emoções e de uma educação para a paz interior, para relacionamentos saudáveis, fundamentos de uma paz individual e da paz social.

Reconhece-se que o nosso êxito depende 80% do Quociente Emocional (QE) e 20% da Inteligência (QI). Perante estes dados, e com a certeza de que o QE pode ser sempre melhorado ao longo da vida, Matilde lembrou-se de esboçar um programa em três pilares: 1. incluir o ensino da gestão das emoções desde o pré-escolar até ao fim da universidade; 2. facilitar o acesso a esta aprendizagem a todos os interessados; 3. premiar iniciativas a favor da Paz, em todas as áreas.

Para aqui chegar, muitos passos foram dados e muitas conquistas conseguidas, enumerando Matilde algumas. O seu “Memorandum Educação para a Felicidade, para a Globalização da Paz”, foi aprovado por Marcelo Rebelo de Sousa, sendo-lhe concedido o Alto Patrocínio da Presidência da República, em 2017. Também obteve o prestigiado apoio do Professor Adriano Moreira, Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, que a convidou para ser colaboradora do Instituto. Por último, o documento científico a enviar à UNESCO foi redigido pela equipa académica da Professora Helena Marujo.

Entretanto, Matilde escreveu textos sobre a Educação para a Paz, estabeleceu contactos internacionais, como com o Professor James Pawelski, director da International Positive Psychology Association, que considerou o projecto inovador e aliciante, e com o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que o aprovou a 3 de Março de 2017.

Matilde tem consciência de que o programa “Educação para a Paz Global Sustentável”, com recurso às novas tecnologias, é de longuíssimo prazo e não ficará concluído em tempo da sua vida. Este ambicioso programa procura evitar conflitos, numa convergência com a “diplomacia de prevenção” defendida pelo Secretário-Geral da ONU. Como a própria afirma, “espero que este programa seja útil à ONU o mais depressa possível, vá desde cedo prevenindo conflitos, vá ajudando a construir uma mais alicerçada Paz, o que já me fará feliz”.

Com a aprovação da cátedra Global Peace Sustainability (GPS), pela UNESCO, Matilde sente que o sonho já começou a ser realidade e que o pode viver no seu tempo, acreditando que a GPS caminhará no futuro em direcção a uma Educação para a Paz e a um Mundo Melhor. Bem-haja, Matilde!