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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa Dec. 2017

 

(AUTO-)RETRATO

 

Maria do Mar Pereira: As (Não) Singularidades de uma Rapariga Emigrada


 

 

Um (auto) retrato centra-se, habitualmente, nas experiências, traços ou interesses que evidenciam a singularidade da pessoa retratada. Escrevê-lo envolve narrar vivências pessoais, celebrar contributos únicos, partilhar pequenas peculiaridades e evocar notáveis idiossincrasias. O meu autorretrato não pode, claro, escapar totalmente a essas convenções. Mas, perante o muito honroso desafio que me foi lançado pela revista Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, quero escrever um autorretrato idiossincrático, sim, mas de modo diferente. Em vez de falar das minhas singularidades, proponho uma partilha distinta, focada no que tenho em comum com tantos outros cientistas portugueses da minha geração: a emigração académica.

Componho estas palavras sentada no gabinete que ocupo no Centre for the Study of Women and Gender, como Professora Associada em Sociologia da Universidade de Warwick (Reino Unido). Tento aproveitar ao máximo os minutos preciosos que tenho hoje ao meu dispor para avançar com a escrita, porque amanhã já não terei tempo para escrever. Espera-me um dia intenso, a dar seminários nos programas de licenciatura, mestrado e doutoramento em Estudos sobre as Mulheres, de Género e Feministas (EMGF) que são oferecidos pelo meu departamento há várias décadas, e que continuam, tantos anos depois, a atrair números significativos de estudantes de todo o mundo. Eu própria fiz a minha formação num concorrido programa de doutoramento especificamente em EMGF, inserido no departamento de Estudos de Género da London School of Economics and Political Science. Também em Portugal temos tido vários conceituados programas de mestrado e doutoramento em EMGF em universidades espalhadas pelo país, incluindo os programas associados à revista Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher. Mas, para conseguir um emprego estável, a tempo inteiro, como professora universitária em EMGF, tive de deixar, há mais de uma década, o meu país de origem e tornar-me numa dos muitos “migrantes educacionais” (Juhász et al., 2005) que todos os anos migram temporária ou permanentemente em busca de formação e emprego em EMGF. Esta migração académica, apesar de particularmente acentuada nos EMGF, não é exclusiva desta área. Portugal é um dos países da Europa com índices mais elevados de brain-drain (i.e., emigração de população altamente qualificada) e nos últimos anos tem crescido significativamente o número de cientistas portugueses a estudar e trabalhar em universidades estrangeiras (Cerdeira et al., 2016; Delicado, 2008, 2010). Para mim, a emigração académica tem sido uma experiência paradoxal: apesar de a minha passagem pelo estrangeiro estar a ser inequivocamente bem-sucedida, ela provoca em mim sentimentos profundamente ambivalentes.

Foi em Portugal que descobri o género e o feminismo, nas salas de aula do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e de outras universidades, em conferências organizadas pela Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM) e pela Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (AMONET), em manifestações pela rua fora e em reuniões pela noite dentro com companheiras, coletivos e ONG feministas, e nas páginas dos livros que enchem o Centro de Cultura e Intervenção Feminista de Lisboa. O efeito desses encontros e experiências foi intenso e indelével. Mas foi no Reino Unido que, pela primeira vez, consegui ouvir-me pensar.

Na academia portuguesa, a minha produção de conhecimento feminista tinha muitas vezes de ser reativa, defensiva e cuidadosa. Se queria focar um trabalho de licenciatura ou uma publicação científica em género, tinha de prefaciá-los com longas justificações da pertinência do tema, provar que a literatura relevante em EMGF não era “ideológica” e citar um número suficiente de autores “respeitados” (i.e., homens a trabalhar fora dos EMGF) para garantir que a minha análise seria considerada “científica” e fundamentada. Se desejava falar numa reunião sobre questões de género, tinha de planear e formular essa intervenção cuidadosamente para garantir que não seria ignorada ou até ridicularizada pelo meu interesse em “sociologia para meninas”, ou pela minha postura “demasiado ativista e pouco científica”. A academia portuguesa encheu a minha cabeça de ideias extraordinárias e perguntas excitantes, graças ao trabalho inspirador das colegas pioneiras que fundaram e desenvolveram os EMGF no nosso país. Mas a academia portuguesa encheu a minha cabeça também de vozes de desaprovação e desconfiança, vozes que me levavam a autocensurar e diluir o meu trabalho, vozes que ocupavam tanto espaço e faziam tanto barulho dentro do meu cérebro, que se tornava muito difícil desenvolver a minha própria voz ou explorar as minhas ideias.

Quando emigrei para o Reino Unido, tudo mudou. Não há dúvida de que a academia britânica é, também ela, sexista e nem sempre inteiramente recetiva aos EMGF (Foster et al., 2013; Griffin, 2009). Mas trabalhar em centros ou departamentos especificamente de EMGF, solidamente institucionalizados e plenamente autónomos, foi uma experiência académica muito diferente das experiências que tinha tido até então. Já não precisava de justificar, diluir ou condicionar as minhas perguntas ou ideias. Não tinha de gastar tanto tempo e energia a prever e prevenir as críticas daqueles que não reconheciam o valor científico dos EMGF. As vozes críticas que tinha interiorizado calaram-se, e no silêncio que assim se instalou encontrei condições para pensar. Pensar a sério, com princípio, meio e fim; com cabeça, tronco e membros; com introdução, desenvolvimento e conclusão. Senti, naquele momento, uma leveza intelectual que até então não tinha conhecido. Nada prendia as minhas ideias: podia pegar nelas, desfiar o novelo que formavam e seguir cada ideia até onde ela me quisesse levar. O meu cérebro borbulhava e as ideias surgiam em catadupa, atropelando-se e estimulando-se entre si.

Foi neste contexto, e nessa euforia, que desenvolvi o estudo etnográfico que deu origem ao meu segundo livro Power, Knowledge and Feminist Scholarship: an Ethnography of Academia (Pereira, 2017). Afetada ainda pelas experiências que tinha tido na academia portuguesa, dediquei-me neste livro a explorar o estatuto epistémico dos EMGF no nosso país. Através de observação etnográfica e entrevistas em diferentes universidades, procurei analisar como é que em Portugal se marcam formal e informalmente as fronteiras daquilo que conta como conhecimento científico “a sério”, e como se negoceia quotidianamente a posição dos EMGF face a essas fronteiras. Com esse estudo, percebi que a minha experiência em Portugal não era única. Muitas colegas, mais jovens ou mais estabelecidas, sentem que a sua produção de conhecimento tem sido negativamente afetada pelo sexismo que caracteriza a academia portuguesa, pela institucionalização precária e individualizada dos EMGF, pelo reconhecimento parcial, condicional e subalternizante dos seus contributos científicos e pela “cultura de brincadeira” e gozo que existe em torno desta área (Pereira, 2012, 2013, 2015, 2017, no prelo).

Mas estar emigrada não tem trazido só conquistas e aberturas. Traz também um profundo desalento por não poder trabalhar em Portugal, continuando a aprender todos os dias com os debates que animam os EMGF portugueses e retribuindo à comunidade científica e feminista o investimento – de dinheiro, energia, tempo, criatividade – feito na minha formação. Mantenho contacto regular com colegas e iniciativas de EMGF em Portugal e esforço-me para pôr os recursos que tenho no Reino Unido ao serviço da dinamização dos EMGF no nosso país; mas infelizmente isso não enche as medidas nem mata as saudades. Amigas e desconhecidas perguntam-me muitas vezes se gostaria de regressar a Portugal. “É claro que sim”, respondo… Mas, não havendo emprego científico estável, e sendo ainda relativamente limitado o reconhecimento do valor dos EMGF, que condições existem para regressar?

Não sou a única pessoa nesta situação. Como explico num artigo publicado nesta revista (Pereira, 2013), as muito limitadas oportunidades de entrada na carreira académica em Portugal levam muitas colegas portuguesas com formação em EMGF a fixar-se em universidades estrangeiras.

Esta “fuga de cérebros” feministas preocupa profundamente as colegas de EMGF que entrevistei no meu estudo etnográfico. Muitas consideram que a falta de oportunidades de trabalho a longo prazo em Portugal para jovens cientistas em EMGF está a pôr em causa a sustentabilidade institucional da área (Pereira, 2013, 2014).

Esta minha situação como cientista feminista portuguesa emigrante – feliz ou infelizmente pouco singular – reflete e ilustra um grande desafio que se coloca atualmente aos EMGF em Portugal. Não há dúvida de que a partida de cientistas feministas portuguesas para o estrangeiro abre potencialmente portas fundamentais, porque pode gerar condições e recursos para fortalecer a nossa investigação individual e coletiva, e para montar importantes redes internacionais de troca e entreajuda entre especialistas portuguesas de EMGF. Mas esta emigração científica tão numerosa acaba também, inevitavelmente, por fragilizar os EMGF no nosso país. Levantam-se, assim, questões importantes. Como garantir a sustentabilidade desta área em condições de profundo fechamento da carreira académica em Portugal, e consequente emigração de tantas colegas mais jovens? Como intensificar o contacto e colaboração entre cientistas feministas portuguesas a trabalhar em Portugal e no estrangeiro? Que papel é que as colegas emigradas podem e devem ter no crescimento e fortalecimento dos EMGF em Portugal? O que podemos fazer para continuar a tentar criar no nosso país um ambiente mais aberto e dinâmico para o desenvolvimento de investigação e ensino em EMGF? Estes são desafios muito difíceis… mas felizmente temos hoje uma grande comunidade de colegas singulares – em Portugal e emigradas – que estão dispostas a enfrentá-los.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cerdeira, L. et al. (2016). Brain drain and the disenchantment of being a higher education student in Portugal. Journal of Higher Education Policy and Management, 38 (1), 68-77.         [ Links ]

Delicado, A. (2008). Cientistas portugueses no estrangeiro: Factores de mobilidade e relações de diáspora. Sociologia: Problemas e Práticas, 58, 109-129.         [ Links ]

Delicado, A. (2010). Young Portuguese researchers abroad: Preliminary results of a survey. In D. Cairns (Ed.), Youth on the Move: European Youth and Geographical Mobility (pp. 83-93). Morlenbach: VS Verlag.         [ Links ]

Foster, E. et al. (2013). The personal is not political: At least in the UK's top politics and IR departments. British Journal of Politics and International Relations, 15 (4), 566-585.

Griffin, G. (2009). The “ins” and “outs” of women's/gender studies: A response to the reports of its demise in 2008. Women's History Review, 18 (3), 485-496.         [ Links ]

Juhász, B. et al. (2005). Educational migration and gender: Women's studies students' educational mobility in Europe. In G. Griffin (Ed.), Doing Women's Studies: Employment Opportunities, Personal Impacts and Social Consequences (pp. 168-194). Londres: Zed.         [ Links ]

Pereira, M. d. M. (2012). «Feminist theory is proper knowledge, but...»: The status of feminist scholarship in the Academy. Feminist Theory, 13 (3), 283-303.         [ Links ]

Pereira, M. d. M. (2013). A institucionalização dos estudos sobre as mulheres, de género e feministas em Portugal no século XXI: Conquistas, Desafios e Paradoxos. Faces de Eva, 30, 37-53.         [ Links ]

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Pereira, M. d. M. (2017). Power, knowledge and feminist scholarship: An ethnography of Academia. Londres: Routledge.         [ Links ]

Pereira, M. d. M. (no prelo). O estatuto epistémico dos estudos sobre as mulheres, de género e feministas em Portugal: Discurso oficial e conversas de corredor. In A. Torres (Ed.), Género, Direitos Humanos e Desigualdades. Lisboa: Edições ISCSP.         [ Links ]