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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.39 Lisboa jun. 2018

 

NOTA DE ABERTURA

Isabel Henriques de Jesus


 

Os últimos tempos têm sido dominados pela soberana palavra das mulheres. Palavra destemida, audaz, corajosa. Palavra tardia, palavra necessária, palavra justa. Abriram a caixa de Pandora. O escondido tornou-se público, o ancestral foi questionado, o trivial passou a chocante. Palavras como poder, violação, assédio, consentimento, sedução surgem unidas num discurso que reclama novas e mais simétricas regras de relação. E se ninguém questiona a urgência das revelações nem a pertinência da discussão, já o seu aproveitamento no sentido de tomar o particular pelo todo ou a colagem acrítica que mistura factos com suposições ou que apelida de assédio qualquer cumprimento um pouco mais sedutor parece-me um mau serviço à causa das mulheres ou dos feminismos. Os olhares de apreciação não podem ser considerados actos ilícitos e só se tornam eficazes quando há reciprocidade. O sorriso é um elemento de sedução bastante precoce no desenvolvimento humano e promove laços indispensáveis à vida afectiva e social. O piropo, que se tornou tão escandaloso para o politicamente correcto, pode ser elegante e inteligente e atrair seres maduros e com sentido de humor. Pretendo com isto defender que a vida é mais interessante se integrar os diversos matizes do relacionamento humano e se estiver atenta às particularidades que distinguem comportamentos reprováveis, porque assimétricos e não consentidos, de formas mais ou menos sedutoras de interrogação sobre a disponibilidade do/a outro/a.

Sempre que um acontecimento impactante ocorre, a análise que dele se faz condiciona a relevância social do mesmo, inscrevendo-o ou não na categoria de marco de transformação social. A denúncia que muitas mulheres - e também alguns homens - têm tornado pública a respeito de abusos sobre os seus corpos e, portanto, sobre a sua integridade de pessoa humana, vai certamente reflectir-se nas relações, inibindo o exercício de um poder absoluto e desrespeitoso por parte dos mais fortes. Talvez a estupefacção e o susto com que homens poderosos foram confrontados pela palavra das muitas mulheres que se associaram num movimento que parecia não ter fim mudem as práticas relacionais que, de tão habituais, lhes pareciam normais e legítimas.

Tratou-se, afinal, de mais um acto de insubordinação das mulheres, de mais um acto de rebeldia contra uma situação que lhes era imposta, ainda que a contrapartida fosse, em algumas situações, o acesso a carreiras profissionais de sucesso. Sempre que, ao longo da história, as mulheres quebraram os muros, fizeram-no abdicando de pretensas situações de privilégio. As “fadas do lar” tornaram-se profissionais, as “protegidas” tornaram-se protectoras ou auto-suficientes, as “representadas” tornaram-se eleitoras, elegíveis e eleitas. Partiram em desvantagem, acumularam as tradicionais funções de cuidadoras com as necessidades profissionais e pessoais e perspectivaram o futuro com a tenacidade das marginais. E porque foram criadas com o “defeito” da curiosidade (mito de Pandora) estudam muito, cada vez são mais qualificadas, têm opiniões, expressam-nas e não suportam mais as investidas dos homens como seus donos e senhores. Mas isso não faz delas seres sensualmente assépticos. Muito pelo contrário, a luta que as mulheres empreenderam na segunda metade do século XX teve como princípio fundamental o direito ao corpo, ao prazer, à expressão erótica e sensual. O jogo da sedução está presente nas relações amorosas e em nada pode ser diminuído pela crescente capacidade intelectual das mulheres ou pela sua autonomia financeira.

Maria Isabel Barreno, que agora homenageamos, pertence a essa geração de mulheres que defenderam práticas igualitárias e simétricas nas relações de género, e o seu nome está indelevelmente ligado a um marco do feminismo português. Não apenas enquanto escritora e investigadora o acento tónico da sua obra revela a recusa da dominação das mulheres - e também dos mais fracos -, como é uma das autoras de Novas Cartas Portuguesas onde a denúncia do corpo enclausurado das mulheres e a possibilidade da expressão livre da sua sensualidade se manifestam como gritos de alerta e de contestação à menorização e à opressão das mulheres. Profundamente inovador enquanto processo e forma de escrita, e de conteúdo ousado e denunciador, o livro foi censurado e proibido após a sua publicação em 1972 e as três autoras (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa) sujeitas a um processo judicial, juntamente com a responsável pela editora, Natália Correia. A onda de choque produzida nos países onde o livro foi recepcionado, assim como o processo judicial em curso em Portugal, acabaram por o trazer à ribalta e acentuar a leitura feminista do mesmo, tornando-o um símbolo do feminismo português.

Este número de Faces de Eva é dedicado a Maria Isabel Barreno porque queremos que a sua memória se mantenha viva e activa. A sua obra literária, ensaística e de intervenção revela uma profunda preocupação social, na qual a situação das mulheres ocupa um lugar primordial. Quem com ela privou reconhece a firmeza, a inteligência e a sobriedade com que abraçou as causas em que se envolveu. Através dos seus actos, da sua voz ou da sua pena, emergiram justas palavras de mulher que ecoaram em muitas outras vozes e se expandiram num movimento de crescente consciência do seu poder transformador.