SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número39Teresa Fragoso: Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de GéneroShahd Wad. Acontecer na fronteira: ser uma mulher da Palestina em Lisboa índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.39 Lisboa jun. 2018

 

PIONEIRAS

Fatumata Djau Baldé

Alexandra Alves Luís*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Socias e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, alexandraalvesluis@gmail.com


 

 

 

Fatumata Djau Baldé nasceu no seio de uma família tradicional fula, na Guiné-Bissau. Submetida, em criança, à Mutilação Genital Feminina (MGF), prometida em casamento, aos nove anos de idade, esteve, desde cedo, próxima do movimento associativo guineense. Fundou e foi dirigente do Sindicato Nacional de Professores e foi ministra do Turismo, da Solidariedade Social e dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. Tem dedicado a sua vida à promoção dos direitos humanos, em especial ao abandono da Mutilação Genital Feminina e dos casamentos infantis, precoces e forçados. Preside, desde 2009, ao Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança na Guiné-Bissau. O percurso pioneiro de Fatumata Djau Baldé foi motivo para uma inspiradora conversa que ora publicamos.

Que recordações guarda da sua infância?

Tive uma infância muito dura, mas que me marcou de forma positiva. Não tenho vergonha dessa infância. Nasci em Bula, numa família pertencente ao povo fula, na Guiné-Bissau. Uma família poligâmica. A minha mãe foi a primeira mulher do meu pai, mas, por não ter “filhos homens”, sempre viveu com grande discriminação no casamento. Desde cedo notei a discriminação que a minha mãe sofria dentro da família e, desde criança, disse para mim mesma que eu seria aquele “filho homem” que a minha mãe não teve. Apesar de ser menina, e de o meu pai ter contribuído significativamente para a discriminação que a minha mãe sofreu, ele sempre quis que fôssemos à escola. Talvez por ele só ter feito a quarta classe quando foi à tropa. Nós, meninas e meninos, fomos todos à escola. Sempre tive muito apoio do meu pai para estudar; ele dizia-me que tinha de estudar para “ser como um homem”.

E a posição da sua mãe sobre a educação das filhas?

Apesar da discriminação de que foi alvo, a minha mãe, devido à educação que teve – toda organizada para transformar meninas em mulheres cujo único interesse é cuidar do marido, da casa, dos filhos –, não estava preparada para me ver na escola. “A Fatumata não será uma mulher para pilar arroz, nem para varrer”, dizia o meu pai quando a minha mãe me acordava para ajudar na lida da casa. Sempre que o meu pai estava em casa, eu não colaborava nas tarefas domésticas. Só fazia as tarefas domésticas obrigada, quando ele estava ausente. Fui daquelas meninas que jogavam à bola em vez de brincar com bonecas. Fui futebolista desde criança e estava sempre metida num grupo de rapazes, o que chocava bastante a minha mãe. Misturar raparigas com rapazes não é bem visto na nossa cultura, pensa-se logo que vamos ter outras intimidades.

Estava na terceira classe quando fui levada numa viagem para ser submetida à prática da Mutilação Genital Feminina (MGF). Fui de Bula a Canchungo, com duas primas, onde estava uma tia mais velha, que era fanateca. Foi ela que nos submeteu à prática. Nos anos seguintes continuei a assistir à prática da MGF em outras raparigas. Naquela altura, não tinha conhecimento das implicações dessa prática e ia ver, dançava, festejava, como todas as outras e participava em todos os rituais, exceto no corte.

Como a minha mãe era uma mulher sofrida, as famílias tinham interesse em casar os seus filhos connosco. Na nossa cultura acredita-se que uma mulher sofredora vai gerar filhas sofredoras.

Qual a relevância de ser percebida como uma mulher sofredora para o povo fula?

As mulheres sofredoras são consideradas mulheres que fazem tudo pelo casamento. Não protestam, não reivindicam, são consideradas as esposas ideais. Nessa altura, com nove anos, fui dada em casamento. Ser dada em casamento não significa viver logo com o futuro marido. Eu concordei em casar-me; era a educação que tinha: fui ensinada a aceitar o marido que me fosse dado pelos meus pais. Ele era mais velho. Adulto. Já era professor, conversava comigo, escrevia-me, eu respondia.

Continuou os estudos?

Para continuar os meus estudos, após a quarta classe, tive de mudar para casa dos meus tios, em Canchungo. Fiz os estudos secundários já em Bissau. Com cerca de 17 anos comecei a mudar. Percebi que aquele não era o homem de quem eu gostava e estava na altura de o matrimónio se concretizar. Opus-me ao casamento, falei com ele e ele arranjou uma outra mulher, mas não deu conhecimento aos meus pais. Esta é uma prática muito mal vista na sociedade local e fez com que o compromisso de casamento terminasse. Ainda existiu uma outra proposta de casamento por parte de outra família, mas aí eu já era mais crescida, mais livre, podia reclamar, reivindicar e pude recusar. A terceira proposta foi-me feita diretamente. Eu disse-lhe que já tinha um namorado, a estudar na ex-União Soviética, e que seria com ele que me casaria.

E assim foi?

Sim, apesar da grande pressão para me casar antes, esperei e quando ele regressou casámos. Tinha 23 anos e casei com o marido que escolhi. Continuamos casados, temos três filhos, um rapaz e duas raparigas, mas, como eu e o meu marido somos os filhos mais velhos nas nossas famílias, sempre que alguns familiares morrem e as crianças ficam sem pai e sem mãe, nós assumimos a responsabilidade dessas crianças. Temos uma grande família.

Fale-nos um pouco da sua atividade profissional.

Terminada a formação em Bissau, a minha primeira profissão foi professora. Dei aulas durante dezasseis anos, estive na fundação e fui dirigente do Sindicato Nacional de Professores. Participei em quase todas as negociações que se fizeram com o Ministério da Educação, da Economia e Finanças sobre a situação dos professores na Guiné-Bissau.

Em 1994, fui militante na Liga Guineense dos Direitos Humanos, criada três anos antes, e continuo até hoje a militar na Liga. Foi para mim uma grande escola sobre Direitos Humanos e em especial sobre os Direitos das Mulheres e das Crianças. Foi na Liga que despertei para as questões das Mulheres e das Crianças – a MGF, os casamentos precoces, a violência doméstica e outras.

Paralelamente iniciei um trabalho com a cooperação holandesa, nos bairros de Bissau. Neste projeto comecei a ocupar-me das questões de género. Entretanto trabalhei num outro projeto, o Procofas – Projeto de Comunicação e Formação para o Setor da Água e Saneamento Ambiental, liderado pela Unicef. Antes de o projeto terminar, deu-se a guerra civil na Guiné-Bissau, estávamos em 1998.

Após o fim da guerra, o Partido da Renovação Social (PRS) venceu as primeiras eleições. A Filomena Tipote, que eu tinha conhecido durante o projeto desenvolvido na cooperação holandesa, foi convidada para ser Secretária de Estado e tinha sobre a sua tutela o Instituto da Mulher e da Criança. Convidou-me para ser presidente do Instituto.

E assim entrou no mundo da política.

Em criança fui pioneira de várias organizações de massas logo após a independência, também passei pelas organizações juvenis como a associação Juventude Africana Amílcar Cabral, e fui militante do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), mas, depois de instaurada a democracia, afastei-me da política. Atualmente não faço parte de nenhuma formação política.

Enquanto presidente do Instituto da Mulher e da Criança, apoiei o então Ministro da Educação numa deslocação a Mansoa, para solucionar uma greve de professores e, depois de longas horas de reunião, conseguimos resolver o conflito. De regresso o Ministro felicitou-me, pois tinha ouvido na rádio que tinha sido nomeada Ministra do Turismo.

Em 2002, enquanto ministra do Turismo, estava numa viagem, onde passei pela Nigéria e pela Guiné-Conacri. Quando cheguei ao aeroporto, em Conacri, a Ministra que me foi esperar deu-me a notícia de que tinha existido uma remodelação governamental no meu país e que tinha sido nomeada ministra da Solidariedade. O pessoal da embaixada guineense lá confirmou a remodelação governamental. Fui completamente apanhada de surpresa. Representei a Guiné-Bissau na Cimeira do Milénio. Durante a cimeira, fui informada pela Secretária de Estado da Cooperação que tinha sido nomeada Ministra dos Negócios Estrangeiros. A leitura que muitos fazem é que estas nomeações se devem ao facto de ser militante do PRS, mas eu não tenho qualquer militância partidária. No meu caso, nem pertencia ao partido, nem era da família, nem amiga, do então presidente, Kumba Yalá. Sou um dos raros casos que estiveram em cargos políticos nestas circunstâncias.

Em 2009 é eleita presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança na Guiné-Bissau (CNAPN).

Sim, presido ao CNAPN, uma instituição semipública criada pelo governo guineense, que integra organizações da sociedade civil, instituições religiosas e quatro instituições públicas – os ministérios da Mulher, Educação, Saúde e Justiça. Na assembleia-geral em que fui eleita, solicitámos que os ministérios da Saúde e da Justiça fizessem parte do comité para podermos alcançar políticas públicas e legislativas nestas áreas. Apesar do trabalho de base feito para que a Guiné-Bissau tivesse uma lei que proibisse a MGF, o facto de o Ministério da Justiça estar envolvido na comissão técnica do CNAPN foi essencial para que, em 2011, a lei tivesse sido aprovada na Assembleia Nacional Popular. A inclusão destas temáticas nos curricula dos cursos na área da saúde deve-se à proximidade deste trabalho com o ministério, através do CNAPN.

A principal missão do CNAPN é educar, informar, formar as comunidades e as entidades públicas sobre as práticas tradicionais que no passado eram consideradas parte da nossa identidade cultural, mas que hoje são consideradas nefastas à nossa saúde. É também objetivo do CNAPN reforçar a capacidade das organizações-membros, na sua maioria ONG, nas suas competências técnicas e financeiras. Os financiamentos são diversos – Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP), Unicef, Cooperação Portuguesa. O CNAPN recebe os fundos, as organizações-membros concorrem e são elas que implementam os projetos no terreno, com o nosso acompanhamento. O CNAPN desenvolve várias formações, execução de políticas, produções de manuais.

Quais os principais desafios que as mulheres e as meninas enfrentam ainda?

As meninas estão cada vez mais informadas sobre os seus direitos e abandonam as famílias, para não serem forçadas a casar precocemente. Na Guiné-Bissau não temos centros de acolhimento para estas meninas e recorremos a soluções privadas, como por exemplo a minha casa, mas não é a solução ideal. Necessitamos de locais públicos para acolher, de forma adequada, estas meninas.

Outro grande desafio é conseguir que todas as meninas tenham acesso à escola. Uma mulher escolarizada será mais autónoma, e isso significa poder tomar mais decisões, incluindo as relacionadas com a proteção das suas filhas. Para mim, o acesso à escola é indispensável, da mesma forma que o é um quadro legislativo adequado, que promova os direitos das mulheres e das meninas, traduzido numa estratégia nacional implementada, que garanta a igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. Seria igualmente importante reforçar os programas de alfabetização para as raparigas e mulheres que casaram precocemente e o acesso à saúde sexual e reprodutiva para todas as mulheres.

Para as mulheres das comunidades afetadas pela MGF, que ainda não são a favor do abandono da MGF, gostaria de reforçar que respeitamos a nossa cultura e as nossas tradições, mas pensamos que tudo o que, nas nossas tradições, pode ter efeitos negativos deve ser abandonado. Estou nesta luta porque fui submetida a esta prática, conheço as consequências nocivas da mesma para a nossa saúde. A Fatumata não é a única pessoa a levantar-se contra a MGF na Guiné-Bissau. Todos os membros do Comité são contra a prática e pertencemos, maioritariamente, às comunidades afetadas pela mesma. Devemos fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para proteger as nossas comunidades. Agradeço às mulheres que outrora foram fanatecas e que hoje estão ao nosso lado para conseguir que a prática da MGF seja abandonada. Agradeço também às associações portuguesas que se engajam nesta luta pelo fim da MGF.

Até hoje, penso muitas vezes no momento em que passei pela MGF, nunca vou esquecer este momento da minha vida.

Os meus pais morreram muito cedo. Tenho pena que não tenham acompanhado esta minha trajetória.

Lisboa, dezembro de 2016