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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.39 Lisboa jun. 2018

 

LEITURAS

Eu matei Sherazade: Confissões de uma mulher árabe em fúria. Haddad, J. (2017). Lisboa: Sibila Publicações, 166 pp.

Isabel Henriques de Jesus*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, misabeljesus@fcsh.unl.pt


 

Desassombrado e provocador, na deliberada assunção da escrita como veículo de libertação de tabus, este livro começou a ser escrito por reacção ao que a autora entendeu como um estereótipo cultural por parte de uma jornalista ocidental. Sentindo-se desafiada, o facto impulsionou-a a escrever sobre a sua condição de mulher árabe, libanesa, escritora, poeta, ensaísta, jornalista e activista política.

Todo o livro evidencia a recusa de generalizações ou de percepções uniformizadas de realidades muito distintas, quer quando descreve as diferentes condições das mulheres árabes, quer quando analisa e destrói as representações que o Ocidente lhes atribui. Pelo contrário, ressalta a importância de olhar as sociedades como algo de heterogéneo, assinalando as diferenças, por muito minoritárias que sejam. É, nesse quadro, que a autora atribui responsabilidades às mulheres que, tal como ela, conseguiram impor a sua independência e liberdade de acção, no sentido de tornar claras as suas opções, de não as ocultar nem de pactuar com qualquer forma de compromisso. Com esse pano de fundo, faz-nos imergir na sua própria história; na história de uma mulher árabe atípica, qualificando-se de rebelde, independente, moderna, livre-pensadora, não convencional, com um elevado grau de instrução e auto-suficiente.

Orgulhosa na demonstração de um querer soberano e de uma liberdade conquistada, descreve situações, justifica acções e reflecte sobre o que significa ser uma mulher escritora num país árabe. Apesar de revelar um percurso não isento de falhas, é radical contra a aceitação, pelas mulheres, de pequenas concessões que lhes são feitas, como se o seu destino dependesse da vontade de outros e não delas próprias.

O livro organiza-se em sete capítulos, epigrafados por mulheres árabes intelectuais, que anunciam aspectos-chave na construção da personagem/autora.

A infância, marcada pela destruição da guerra civil no Líbano – país com o qual mantém uma relação sofrida –, no seio de uma família conservadora e uma educação escolar numa escola religiosa para raparigas, anunciam os livros e a leitura como recursos infinitos que mobilizam e servem de trampolim para o sonho. Fascinada pela leitura do Marquês de Sade, quando era ainda uma adolescente, a adrenalina que a obra provocou tornou-se uma condição para a vida e um critério para as relações com os homens. Tal como outros livros posteriormente lhe mostraram, a imaginação não tem limites e tudo é possível no seu reino. Estava, para sempre, desbravado o caminho da liberdade. Primeiro, liberdade de pensamento, depois, liberdade de expressão que permitiria que fundasse, anos mais tarde, uma revista erótica e cultural, denominada Jasad (corpo), em língua árabe, o que lhe valeu afrontas e ameaças várias, sem que isso abalasse a sua forte convicção no direito de o fazer, enquanto mulher e mulher árabe.

A coragem com que enfrenta a hostilidade dos que se opõem à sua liberdade comporta uma dimensão não renegada e, pelo contrário, alimentada de feminilidade, descrita como procura de elegância e de bom gosto e também como assunção de um corpo e de um ser que interage com os homens; não querendo assemelhar-se a eles, antes é firme no propósito de os enfrentar, se ousarem impedi-la de seguir o seu rumo. Com a mesma determinação, questiona as diferentes formas de religião que impõem comportamentos de submissão às mulheres. Só na plena consciência das suas acções encontra forças para prosseguir, sem necessidade de se submeter a uma qualquer religião que encurte e reprima as suas opções existenciais. É no saber dizer não a tudo o que não quer, que encontra o espaço de fuga, a um tempo libertador, mas também exigente. Não pactua, embora conheça o elevado preço dessa decisão.

Dirigindo-se a leitores ocidentais, mas explorando criticamente os aspectos obscurantistas da contemporaneidade árabe, denuncia todas as formas de opressão e repressão que, em nome de princípios religiosos, culturais e tradicionais, destroem a criatividade e a liberdade individuais. Defensora da sua individualidade “humanista”, no sentido em que está atenta e respeita a existência e as necessidades do outro, recusa fazer parte de uma sociedade que não permite a livre expressão, a ambição ou o percurso individual, fomentando seres acríticos e sem singularidade vivencial. Afirma que ser árabe, hoje, implica experienciar sentimentos de esquizofrenia, fomentar a unanimidade e aceitar o impasse. Tais questões são comuns a homens e a mulheres, sendo que, sobre estas, recaem ainda preconceitos religiosos, sociais e sexuais, contra os quais luta abertamente. O título, Eu matei Sherazade – Confissões de uma mulher árabe em Fúria, evidencia a imensa vitalidade desta autora mas também a ironia com que, inteligentemente, desassossega a estabilidade do histórico mito de Sherazade. Vista como arguta, inteligente e resistente, Sherazade atinge os seus objectivos através da persuasão e da negociação, entretendo, com as suas intermináveis histórias, o homem todo-poderoso capaz de decidir sobre o seu futuro. Joumana Haddad não faz concessões, “mata” a tradicional heroína, identificando um sem-número de cúmplices nesse acto, que mais não são do que pessoas e situações de quem é necessário libertar-se para poder exercitar em pleno a sua existência de mulher: homens que tentaram aniquilá-la; mulheres que com eles pactuaram; homens e mulheres que condescenderam; censores que proibiram; religiosos que impediram a crítica; jovens que foram usadas; e muitas outras situações que aproveita para denunciar.

Joumana “matou” a Sherazade que existia nela. Para sempre e inexoravelmente. O seu acto simbólico foi um acto radical e transformador. O nascimento de uma nova mulher que se faz a si mesma, que explicita o corpo e o usa num meio social adverso e cheio de tabus. Corpo e escrita são armas poderosas, usadas, consciente e deliberadamente, contra qualquer tentativa de impedimento da sua vontade, desde cedo conquistada e furiosamente mantida.