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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa out. 2019

 

ESTUDOS

Performatividade de género, performatividade queer e o queering como método: Uma introdução

Gender Performativity, Queer Performativity and Queering As Method: An Introduction

António Fernando Cascais*

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Ciências da Comunicação, Centro Interdisciplinar Ciências Sociais /Instituto de Comunicação, 1069-061, Lisboa, Portugal, afcascais1@gmail.com


 

RESUMO

Os conceitos de performatividade de género e de performatividade queer encontram-se no núcleo duro da teoria queer, e o “queering” é a metodologia de análise que comprova a extraordinária produtividade desta no desestabilizar da equação sexo/ género/desejo. A aplicação do projeto crítico desnaturalizador e desessencializador do queering às artes, das artes performativas às artes plásticas e à literatura, tem-se revelado imensamente frutífera para discernir os processos mediante os quais foram construídas a oposição binária entre masculinidade e feminilidade, os estereótipos identitários de género, ou as subjetividades sexuais abjetas.

Palavras-chave: performatividade; género; queer; queering.


 

ABSTRACT

The notions of gender performativity and queer performativity are at the core of queer theory and queering is the methodology of queer inquiry that testifies to its extraordinary productivity in what concerns the destabilizing of the sex/ gender/desire equation. The application of the critical denaturalizing and des-essentializing queering project to the arts, from the performative arts to the fine arts and literature has proved to be immensely productive in order to discern the processes through which have been construed the binary opposition between masculinity and femininity, identitary stereotypes of gender, or abject sexual subjectivities.

Keywords: performativity, gender, queer, queering.


 

A PERFORMATIVIDADE DE GÉNERO E O QUEERING

Declaradamente devedora da tese seminal de Simone de Beauvoir, segundo a qual a mulher não nasce mulher, torna-se mulher, tese explorada na convergência da pragmática linguística, do desconstrucionismo derrideano e da arqueogenealogia foucauldiana, Butler define a performatividade de género no pressuposto segundo o qual “A linguagem não é um meio ou um instrumento exterior no qual eu verto um eu e a partir do qual vislumbro um reflexo desse eu” (2017, p. 283). O seu ponto de partida é o questionamento do sujeito “mulheres” nos movimentos feministas, em Problemas de género (2017), obra tida por seminal, mas que, de facto, ignora a via anteriormente aberta por Eve Kosofsky Sedgwick na sua Epistemologia do armário (1990) e que Butler só vem a acolher no posterior Bodies that matter (1993), onde clarifica as teses de Problemas de género. Nesta medida, todos estes três livros são igualmente fundadores da teoria queer.

Na sequência da denúncia das ficções fundacionalistas que sustentam a ideia de sujeito, Butler descreve o agenciamento próprio do processo de significação (ou de produção de sentido) que constrói performativamente a sua identidade inteligível e que é um processo de repetições estruturadas, em parte, segundo matrizes de hierarquia de género e de heterossexualidade compulsória:

Enquanto processo, a significação alberga em si aquilo que o discurso epistemológico refere como o ‘agência’. As regras que governam a identidade inteligível, isto é, que permitem e restringem a afirmação inteligível de um ‘eu’, regras que são parcialmente estruturadas em matrizes de hierarquias de géneros e heterossexualidade obrigatória, operam através da reiteração. De facto, quando se diz que o sujeito é constituído, isso quer dizer somente que o sujeito é uma consequência de determinados discursos governados por regras que regem a invocação inteligível da identidade. O sujeito não é determinado pelas regras mediante as quais se gera, pois a significação não é um acto fundador, mas um processo regulado de reiteração que se dissimula e impõe as suas regras justamente pela produção de efeitos substancializadores. De certo modo, toda a significação ocorre na órbita da obrigação de repetir; a ‘agência’ localiza-se, pois, na possibilidade de variar essa reiteração. (…) só é possível subverter a identidade dentro das práticas de significação reiterada. O preceito de ser um género concreto produz fracassos necessários, um sem-número de configurações incoerentes que, na sua multiplicidade, excedem e desafiam o preceito por que se geram (2017, pp. 285-286).

A repetição que produz ou gera a identidade funciona pois como citação de uma matriz que equaciona um determinado sexo com um determinado género e este, por sua vez, com uma determinada identidade, de tal maneira que uma identidade socialmente inteligível e admissível é aquela em que o sentido cultural de “homem” interpreta em exclusivo corpos masculinos e “mulheres” em exclusivo corpos femininos e que a subjetividade sexual de cada um, regida pela heterossexualidade compulsória, obrigue a que homens apenas desejem mulheres e reciprocamente, numa oposição binária rígida e inamovível. A performatividade de género refere-se pois, antes de mais, em Butler, ao processo de produção de efeitos identitários:

Aquilo que é ‘forçado’ pelo simbólico, então, é uma citação da sua lei que reitera e consolida a astúcia da sua própria força. (…) O processo dessa sedimentação ou aquilo que poderíamos chamar a materialização será uma espécie de citacionalidade, a aquisição de ser através da citação do poder, uma citação que se estabelece como uma cumplicidade originária com o poder na formação do ‘Eu’ (1993, p. 15).

Eis porque

essas identidades correspondem a uma ilusão criada pelas sociedades misóginas e heterossexistas que estruturam e sustentam a ficção da existência concreta de homens e mulheres. Essa ficção, esse mito estruturante cria as condições para a emergência das expressões do género, tomadas e vivenciadas como identidades, estruturadas por via da diferença sexual, verdadeira ideologia reguladora das identidades (Oliveira, 201, p. 59).

Muito ao contrário de uma relação determinista de causalidade que obriga a que um determinado sexo biológico corresponda um determinado género social que por sua vez só pode exprimir-se numa determinada identidade sexual, isso significa segundo Butler, que a categoria de sexo é aquilo que o poder produz por forma a ter um objeto de controle, como Foucault (1977) há muito tinha demonstrado: “(e)nquanto regime regulador, a sexualidade funciona basicamente investindo os corpos com a categoria de sexo, isto é, fazendo dos corpos suportes de um princípio de identidade” (Butler, 1995, p. 351). Igualmente na esteira da tese foucauldiana segundo a qual só a modernidade ocidental assiste à emergência histórica de identidades individuais integralmente definidos pela sexualidade, de que o exemplo máximo é a moderna categoria médica e psiquiátrica do homossexual, explica-se que “A especial centralidade da opressão homofóbica no século XX (...) resultou da sua inextricabilidade da questão do conhecimento e dos processos do saber na cultura ocidental moderna em geral” (Sedgwick, 1991, pp. 33-34). Deste modo, o género não se limita a constituir a inscrição cultural do sentido num sexo previamente dado, e faça antes parte do próprio aparato de produção por meio do qual os próprios sexos são estabelecidos:

Logo, o género não está para a cultura como o sexo está para a natureza; o género é também o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ se produzem e estabelecem como ‘pré-discursivos’, anteriores à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual actua a cultura (Butler, 2017, pp. 63-64).

Em Bodies that matter (1995), Butler clarifica que as normas reguladoras do “sexo” operam de forma performativa de modo a constituírem a materialidade dos corpos e, mais concretamente, a materializarem o sexo do corpo, a materializarem a diferença sexual ao serviço da consolidação do imperativo heterossexual. Recorrendo à ideia de materialização, Butler sublinha que aquilo que constitui a fixidez do corpo é inteiramente material, mas a materialidade será então repensada como efeito de poder e o seu mais produtivo efeito; deste modo, compreendido na sua normatividade, o sexo não será simplesmente qualquer coisa que cada um tem, mas antes uma das normas nos tornamos viáveis enquanto corpo culturalmente inteligível pela vida toda:

Em causa em tal reformulação da materialidade dos corpos estará o seguinte: (1) a reconsideração da matéria dos corpos como efeito de uma dinâmica de poder, de maneira tal que a matéria dos corpos será indissociável das normas reguladoras que governam a sua materialização e a significação daqueles efeitos materiais; (2) o entendimento da performatividade, não como o acto pelo qual um sujeito traz à existência aquilo que nomeia, mas, antes, como o poder reiterativo do discurso de produzir os fenómenos que regula e constrange; (3) a construção do ‘sexo’ já não como um dado corpóreo sobre o qual se impõe artificialmente o construto do género, mas como uma norma cultural que comanda a materialização dos corpos; (4) um repensar do processo pelo qual é uma norma corpórea a ser assumida, apropriada, tomada, não como, estritamente falando, algo que é sofrido por um sujeito, mas antes o sujeito, o ‘Eu’ falante, que se forma em virtude de ter passado por esse processo de assumir um sexo; e (5) uma ligação deste processo de ‘assumir’ um sexo com a questão da identificação e com os meios discursivos mediante os quais o imperativo heterossexual torna possíveis certas identificações sexuadas e exclui e/ou repudia outras identificações (1993, pp. 2-3).

Butler recorreu a esta ideia de materialização em Bodies that matter para deslindar uma confusão facilmente feita a partir de uma leitura simplista e apriorística da performatividade, tal como era formulada em Problemas de género, que a autora reconhece em todo o caso que era possível, e que deu nomeadamente azo a que alguém tão avisado quanto Pierre Bourdieu pudesse concluir que a performatividade referia e justificava um jogo algo voluntarista e inconsequente com as identidades tidas como próteses ou máscaras adventícias ao sujeito. Esclarece então Butler:

Em resultado desta reformulação da performatividade, (a) a performatividade de género não pode ser teorizada à parte da prática forçada e reiterativa de regimes sexuais reguladores; (b) o registo do agenciamento condicionado por esses mesmos regimes de discurso/poder não é conciliável com o voluntarismo ou o individualismo, muito menos com o consumismo, e de modo nenhum pressupõe um sujeito que escolhe; (c) o regime da heterossexualidade labora no sentido de circunscrever e delimitar a ‘materialidade’ do sexo e essa ‘materialidade’ é formada e mantida por, e como, uma materialização de normas reguladoras que em parte são as da hegemonia heterossexual; (d) a materialização de normas requer aqueles processos identificativos mediante os quais as normas são assumidas ou apropriadas e essas identificações precede e possibilitam a formação de um sujeito, mas não são, estritamente falando, efetivadas [performed - N.T.] por um sujeito; e (e) os limites do construcionismo denunciam-se nessas fronteiras da vida corpórea onde os corpos abjetos ou deslegitimados não logram contar como ‘corpos’ (1993, p. 15).

Nesta conformidade, uma crítica queer empreenderá o queering como metodologia do seu projeto reflexivo ancorada no pressuposto básico segundo o qual,

(s)e o sexo e o género são totalmente distintos, daí não decorre que ser-se de um dado sexo é tornar-se num dado género; isto é, a ‘mulher’ não precisa de ser a construção cultural do corpo feminino, e o ‘homem’ não precisa de interpretar corpos masculinos. Esta formulação radical da distinção entre sexo e género sugere que os corpos sexuados podem ser a ocasião para um número de géneros diferentes, mais, que o género em si não precisa de se restringir aos dois géneros habituais. Se o sexo não limita o género, talvez haja então géneros, formas de interpretar culturalmente o corpo sexuado, que não são em absoluto restringidos pela aparente dualidade do sexo. Consideremos a consequência de que, se o género for algo em que alguém se torna - mas nunca pode ser, - então o género é em si uma espécie de transformação ou actividade (…) uma acção incessante e repetida de algum tipo. Se o género não está associado ao sexo, de forma nem causal nem expressiva, então o género é uma espécie de acção que pode proliferar para lá dos limites binários impostos pelo binário aparente do sexo (Butler, 2017, pp. 230-231).

Esta binaridade é justamente aquilo que exclui quaisquer outras possibilidades alternativas (e nas quais a transcrição da matriz teria corrido mal ou teria sido mal citada, ou repetida de maneira deformada), isto é, todas aquelas em que o género não é consequência do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não são ‘consequência’ nem do sexo, nem do género. (…) Contudo, a sua persistência e proliferação fornecem oportunidades críticas que expõem os limites e fins reguladores desse domínio de inteligibilidade e abrem, pois, nos próprios termos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem do género” (Butler, 2017, p. 80).

Como muito adequadamente resume Loxley a respeito de Butler, o que se deve deduzir é que: “A performatividade, para ela, é pois ao mesmo tempo a força frequentemente traumática de normalização e aquela que lhe resiste” (2006, p. 137). A proposta apresentada a este propósito por Butler, a exigir longa e minuciosa apresentação, encontramo-la por outro lado admiravelmente sintetizada entre nós por João Manuel Oliveira:

Como solução e ruptura do sistema, Butler (...) encara as performances subversivas de género, que desestabilizam a equação sexo/género/desejo. Nomeadamente performances em que o sexo não corresponda ao género e em que o sistema de heterossexualidade compulsiva seja contestado. Daí que Butler analise (...) os processos que emulam e parodiam o género, nomeadamente as performances drag. Nestas performances, a imitação de outro género possibilita uma analogia para a maneira como os processos de imitação do género funcionam. Assim, qualquer processo de assunção identitária de género corresponde a uma prática de impersonation para a qual não há original que possa ser imitado. O que permite avançar para a consideração do caráter paródico (para além de performático) dos processos de aquisição de expressões de género (e não de identidades) (2011, pp. 58-59).

Ora, um dos sentidos do queering, como método operante desde os ensaios teóricos às obras literárias e artísticas, refere-se precisamente à exploração deliberada daquelas possibilidades críticas e subversivas que expõem a matriz de inteligibilidade que ao mesmo tempo naturalizam e, por essa via, dissimulam ou ocultam os processos de construção da masculinidade e da feminilidade, da homossexualidade e da heterossexualidade e das respetivas oposições binárias. O queering comporta um programa de desnaturalização e desessencialização que, ao tornar patente o género enquanto construção, desfamiliariza a familiaridade, possibilitando que o conhecido se nos afigure espontaneamente estranho e com que sintamos o suposto fundamento natural do normal tão “forçado”, discursiva e não-discursivamente, quanto o desvio, a exceção, a desconformidade com a norma. Põem-se assim à vista os processos, as vias, os meios, os artifícios, pelos quais aquilo que até aí percebíamos como originário, essencial e fundador se tornou naquilo que é, a saber, efeito de uma construção que processa performativamente o seu devir. Ou seja, e de forma muito simples e direta, o queering diz respeito à subversão crítica que põe a nu o caráter construído do masculino e do feminino, do ser homem e do ser mulher, e o caráter “normal” e “natural” da heterossexualidade, sem que tal implique que queer seja sinónimo de homossexual, como muito deploravelmente se persiste entre nós em percecionar as obras e produções que em quaisquer áreas se empenham no queering. O queering comporta pois, e ab initio, uma política da performatividade de género: “Portanto, a política da performatividade de género, tal como Butler a encara, consistirá em dar a ver este processo, revelando a ubíqua performatividade que as nossas narrativas comuns da identidade não logram ver” (Loxley, 2006, p. 125).

Tanto deveria constituir um adquirido, mesmo até antes da teoria queer propriamente dita, e desde que Teresa De Lauretis (1991) pela primeira vez utilizou o termo queer (no seu célebre artigo “Queer theory: Lesbian and gay sexualities”, com a valência semântica que a teoria homónima haveria de acolher, apesar de a autora original o ter entretanto deixado, por assim dizer, cair.

O QUEERING E A PERFORMATIVIDADE QUEER

Se a identidade de género é um efeito performativo, como vimos com Butler, igualmente o são as subjetividades sexuais, designadamente aquela que conhecemos vulgarmente por “homossexual” e que se costuma opôr de forma binária a heterossexual”, no equívoco pressuposto da sua simetria e da sua objetiva neutralidade, quando realmente o binarismo heterossexualidade/homossexualidade é assimétrico, hierárquico e (hetero)normativo. Com efeito, longe de ser um mero descritor neutro, o termo homossexual constitui um ideal regulador, forjado pela scientia sexualis moderna que, como bem mostrou a seu tempo Michel Foucault (1977, p. 48), se constitui como dispositivo que cria performativamente aquilo que põe em discurso, materializando-o no corpo do indivíduo, que desse modo é produzido como objeto e como sujeito no interior de relações de poder-saber. A produção do homossexual moderno é assim operada por aquilo que Foucault chamou de implantação perversa do dispositivo da sexualidade. Significa isto que o moderno homossexual muito deve por isso à scientia sexualis que criou (a possibilidade de) uma experiência da sexualidade, em geral, e da homossexualidade, em particular. Precisamente lá onde, noutras épocas e noutros lugares, nunca ninguém precisou de se sentir, ou de se saber, ou de ser socialmente percebido como homossexual para sentir e fazer tudo o que costumamos associar ao termo, de resto completamente desconhecido e ininteligível fora do Ocidente moderno. O dispositivo da sexualidade abre a possibilidade do devir homossexual a todo o indivíduo cujo relacionamento amoroso se dirigisse a uma pessoa do mesmo sexo, mas a que se assimilaram todos aqueles que de algum modo infringissem as fronteiras diferenciadoras das caraterísticas de género, de tal maneira que a categoria da homossexualidade abrangeria originalmente um leque inteiro que muito mais tarde se diferenciaria internamente e se desmultiplicaria nas atuais identidades gay, lésbica, trans-sexual, transgénero, bissexual, intersexual, etc. A materialização biopolítica do corpo homossexual significa por isso que o princípio legitimador de qualquer projeto emancipatório concebido numa perspetiva crítica queer não é o ser-se homossexual no sentido de ser possuidor de uma identidade essencial ou “natural” - que teria sido historicamente vítima de todos os opróbios e perseguições, o que não deixa de ser verdade - mas antes o que lhe foi infligido a pretexto de o ser. E o que começou por lhe ser infligido na modernidade foi a produção performativa da identidade homossexual, empreendida sobretudo pela scientia sexualis médico-psiquiátrica e elaborada com a matéria-prima do estigma, da abjeção, da auto-refutação e da vergonha que, ao precipitarem o homossexual para fora dos limites da tolerância social, o depõem por essa mesma via no limiar do não-humano. Acontece que, como assinala Eve Kosofsky Sedgwick,

(a)s formas que toma a vergonha não são partes ‘tóxicas’ isoladas da identidade de um grupo ou de um indivíduo passíveis de serem dele excisadas; são, ao invés, integrais aos processos pelos quais a própria identidade se forma, bem como seus excedentes. Elas encontram-se disponíveis para o trabalho de metamorfose, redefinição, refiguração, transfiguração, carga e deformação simbólica e afetiva, mas talvez sejam demasiado potentes para o trabalho de expurgo e término deontológico (2003, p. 63).

Ora, a vergonha é politicamente interessante, afirma Sedgwick,

porque gera e legitima o lugar da identidade - a questão da identidade - na origem do impulso para o performativo, mas fá-lo sem elevar o espaço dessa identidade ao estatuto de uma essência. Constitui-o como para-ser-constituído, que é o mesmo que dizer já aí para a (necessária, produtiva) descontrução e desidentificação (2003, p. 63).

Nesta conformidade, “a ’performatividade queer’ [que] é o nome de uma estratégia para a produção de sentido e de ser, relativamente à afeção da vergonha e ao posterior facto do estigma que com ela está relacionado” (Sedgwick, 2003, p. 61). A crítica queer começa assim por assumir-se como projeto de re-significação do próprio termo queer, de forma a pôr à mostra os mecanismos e processos de construção da injúria e da agressão discursiva (Butler, 1997) contra o seu sentido originário que produzia os efeitos performativos de estigmatização, abjeção, auto-refutação e vergonha para desse modo alicerçar uma subjetividade alternativa, positiva, re-construtiva e orgulhosa (por oposição a negativa, destrutiva e vergonhosa):

Quando o termo era usado como uma calúnia paralisante, como a interpelação mundana da sexualidade patologizada, produzia o utilizador do termo como símbolo e veículo da normalização e a oportunidade de a proferir como a regulação dicursiva dos limites da legitimidade sexual. Muito do mundo hetero precisou sempre dos queers que procurou repudiar por meio da força performativa do termo (Butler, 1993, p. 223).

E acrescenta:

O termo ‘queer’ surge como uma interpelação que levanta a questão do estatuto da força e da oposição, da estabilidade e da variabilidade, no interior da performatividade. O termo ‘queer’ funcionou como uma prática linguística cuja finalidade tem sido envergonhar o sujeito que nomeia ou, melhor, a produção de um sujeito por meio dessa interpelação envergonhadora. ‘Queer’ retira a sua força precisamente da repetida invocação por intermédio da qual se ligou à acusação, à patologização, ao insulto. Esta é uma invocação pela qual ao longo do tempo se formou um laço social entre comunidades homofóbicas (1993, p. 226).

No entanto, se a performatividade se nota na produção de identidades deterioradas, ela também

descreve a relação que consiste em se estar implicado naquilo que a se opõe, o infletir o poder contra si próprio para produzir modalidades alternativas de poder, para estabelecer um tipo de contestação política que não é uma ‘pura’ oposição, uma ‘transcendência das relações de poder contemporâneas, mas um difícil labor de forjar um futuro com recursos inevitavelmente impuros (Butler, 1993, p. 241).

Eis porque, se o queering designa um fazer, queer consiste naquilo que se faz, decerto que enquanto metodologia crítica, mas, por essa via, inegavelmente política. Com efeito, queer diz respeito à

matriz aberta das possibilidades, brechas, sobreposições, dissonâncias e ressonâncias, lapsos e excessos de sentido sempre que os elementos constituintes do género e da sexualidade de alguém não são (ou não se consegue que sejam) de molde a significar monoliticamente (Sedgwick, 1998, p. 115).

O queering consistirá então na exploração metódica daquela matriz, na abertura, sempre reiterada e reativada, de dissonâncias cognitivas que põem em causa a normalidade da norma, que interrogam a aquisição mediante a qual se chegou a qualquer adquirido, que precipitam o devir no seio daquilo mesmo que se apresenta como dado e inamovível à partida, que, enfim, mostram como se fez aquilo que “é”, para o poder fazer de outra maneira.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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