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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.42 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.34619/mgwd-b608 

ENTREVISTAS

Margarida Tengarrinha

Natividade Monteiro*

* Investigadora integrada. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher 1069-061 Lisboa, Portugal. nati.monteiro@netcabo.pt


 

 

 

Margarida Tengarrinha iniciou a actividade política aos vinte anos no Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, na Escola Superior de Belas Artes (ESBAL), com a participação na luta pela Paz e pelo desarmamento nuclear e no apoio aos presos políticos. Em 1952 foi expulsa desta Universidade e proibida de frequentar qualquer outra, sendo também despedida da Escola Paula Vicente, onde dava aulas. Nesse mesmo ano tornou-se militante do Partido Comunista Português e, em 1955, passou à clandestinidade com o seu companheiro, José Dias Coelho, que viria a ser assassinado pela PIDE em 1961. No ano seguinte exilou-se na União Soviética para trabalhar com Álvaro Cunhal, onde permaneceu até 1968.

Ainda no exílio, trabalhou como redactora da Rádio Portugal Livre, sediada na Roménia. Depois do 25 de Abril foi membro do Comité Central do PCP e deputada pelo Algarve à Assembleia da República. Em 2014 recebeu o Prémio Regional de Cultura ‘Maria Veleda’. Em 2018 publicou Memórias de uma falsificadora. A luta na clandestinidade pela liberdade em Portugal.

Com uma vida tão intensa na oposição ao regime ditatorial do Estado Novo, tem memória do momento em que tomou consciência das desigualdades sociais, do desrespeito pelos direitos dos cidadãos e da repressão em Portugal?

Nasci em 1928 e tinha cerca de seis anos quando, das janelas da minha casa, vi o largo em frente (o então chamado largo do Coreto, hoje largo Manuel Teixeira Gomes, em Portimão) encher-se de gente, homens e mulheres, que protestavam e gritavam muito alto coisas que eu não entendia. De repente, surgiu da esquina um esquadrão da GNR a cavalo, que avançou contra aquela multidão, abater com os chicotes nas pessoas, que fugiam ecaíam sob as patas dos cavalos. Fiquei aterrorizada e nunca mais esqueci aquela violência, de tal modo que consegui saber, anos mais tarde, que a manifestação tinha sido em 18 de Janeiro de 1934, contra o encerramento de vários sindicatos, o das operárias conserveiras, dos soldadores, a Mútua dos pescadores e o Sindicato dos operários agrícolas que trabalhavam nos “morgados” dos arredores da cidade. Esta violenta repressão correspondeu à imposição, aos trabalhadores, dos Sindicatos Nacionais fascistas. Era nesse largo que eu brincava com os filhos daquelas operárias conserveiras e daqueles pescadores.

Em que actividades participou, no MUD Juvenil, a favor da Paz e do desarmamento nuclear e contra a cimeira da NATO em Lisboa, em 1952?

Em 8 de Maio de 1945, os jovens da minha geração festejaram pelas ruas a vitória sobre o nazi-fascismo como uma derrota para o seu aliado, Salazar. Mas as informações que íamos recebendo sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial, com mais de cinquenta milhões de mortos e o Holocausto nazi, a que se seguiram, três meses depois do armistício, as duas bombas atómicas lançadas pelos Estados Unidos sobre Hiroxima e Nagasáqui, fizeram-nos empenhar na luta pela Paz e pelo desarmamento nuclear, na luta pela vida e por um mundo melhor. Nessa luta, desenvolvida pelo MUD Juvenil, participaram activamente várias Faculdades de Lisboa, entre elas Belas Artes, e o Instituto Superior Técnico (IST), onde a cimeira da NATO se realizou. Por isso fizemos ali, na sede da Associação Académica do IST, uma exposição das gravuras de Goya sobre Os Desastres da Guerra. Enchemos as paredes do IST de inscrições: “Luta pela Paz” e “Fora a NATO”, que também pintámos pelas paredes de Lisboa. Com essas mesmas palavras, nós (uma brigada de agitação de Belas Artes), colocámos dois longos cartazes no elevador de Santa Justa, que ao desenrolar-se deixavam cair gravuras de Júlio Pomar, Lima de Freitas e José Dias Coelho, sobre esses temas. Nas recolhas de assinaturas pela paz e o desarmamento atómico, conseguimos milhares de adesões, mas muitos jovens foram presos.

Os estudos sobre a participação das mulheres na oposição apontam para a invisibilidade da luta pelos seus direitos, enquanto pessoas e cidadãs, constitucionalmente discriminadas em função do sexo. Em sua opinião, quais terão sido as razões que levaram as portuguesas a não reivindicar direitos próprios no interior dos movimentos políticos oposicionistas?

É uma verdade que nos movimentos políticos da oposição foram praticamente inexistentes as reivindicações sobre os direitos específicos das mulheres. Isto verifica-se na leitura atenta dos documentos do Movimento de Unidade Democrática (MUD), e do Movimento Nacional Democrático (MND), e nos movimentos eleitorais CDE e CEUD. Aquilo a que chama “a invisibilidade da luta pelos direitos das mulheres” nesses movimentos políticos deve-se, certamente, às mentalidades dominantes então, mesmo entre homens progressistas, que levaram ao apagamento das questões dos direitos das mulheres e à sua não-integração no âmbito dos considerados mais importantes problemas políticos gerais.

Mas para as direcções desses movimentos políticos foram eleitas mulheres, com muito destaque na oposição, como Isabel Aboim Inglez, Maria Lamas e Virgínia Moura, entre outras, e em muitos comícios realizados, geralmente eram essas mulheres que tomavam a palavra, levantando, com muita força e determinação, as reivindicações femininas específicas. E eram ouvidas com muita atenção, dado o grande prestígio que tinham e a coragem com que enfrentaram a repressão, pois todas elas foram vítimas de perseguições nas suas vidas profissionais e presas várias vezes.

Isabel Aboim Inglez, que dirigia um colégio e regia a cadeira de História e Filosofia Antiga e Moderna na Faculdade de Letras de Lisboa, teve o seu colégio encerrado, foi demitida de professora da Faculdade e impedida de ir leccionar numa Universidade brasileira, para a qual estava convidada. Foi presa na cadeia das Mónicas entre ladras e prostitutas, como forma de humilhação, o que não resultou, pois afirmou ter aprendido muito de psicologia entre as companheiras da prisão. Para sobreviver, teve de abrir um ateliê de costura e dar explicações. Tinha enviuvado muito nova e era mãe de cinco filhos. Pela sua personalidade, houve quem lhe chamasse “A Indomável”. Dirigente política, que nunca foi membro do Partido Comunista, nos movimentos unitários em que participou com o PCP, assinou todos os documentos comuns, mas só o fazia depois de os discutir e de as suas propostas de emendas serem inseridas nesses documentos.

Virgínia Moura foi a segunda mulher portuguesa a obter o título de engenheira civil em 1937, mas a primeira a exercer a profissão, e tinha, além desse, o curso de Matemática. Quando membro da Juventude Comunista, publicou um boletim sobre a situação das mulheres jovens, que pretendeu tivesse continuidade, o que não aconteceu. Tanto ela como o seu marido, o arquitecto Lobão Vital, estavam proibidos de assinar os seus projectos de engenharia e arquitectura. Virgínia Moura foi presa 16 vezes, nove vezes processada e sofreu várias condenações; lutou até ao fim da sua vida: meses antes da sua morte, em Fevereiro de 1998, ainda participou activamente na luta pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Foram mulheres como estas e como Maria Lamas, que deram continuidade, ou criaram, dirigiram e deram vida a movimentos femininos, integrados no movimento político geral da Oposição Antifascista, como o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, organizações específicas de mulheres e com as suas próprias reivindicações, na luta pelos seus direitos.

Nos Congressos da Oposição Democrática de Aveiro várias mulheres tomaram a palavra, entre elas Maria Barroso e Virgínia Moura, que foi uma das suas mais activas organizadoras.

Quando foi proibida de exercer a docência, foi trabalhar para a revista Modas e Bordados, por recomendação de Maria Lamas. Que memórias guarda desta sua companheira na Oposição, na Associação Feminina Portuguesa para a Paz e na luta pelos direitos das mulheres?

Maria Lamas teve uma enorme influência em mim, como em tantas outras jovens mulheres, para a compreensão da necessidade de lutarmos pelos direitos fundamentais que nos eram negados por um regime de beato machismo, que inferiorizava a mulher. Foi pela sua mão que entrei na Associação Feminina Portuguesa para a Paz, que presidia. Quando directora de Modas e Bordados, conseguiu transformar uma revista frívola numa publicação com grande nível cultural, levantando questões ligadas à saúde da mulher e à puericultura. Regularmente, apresentava a biografia de uma mulher notável, na ciência, na literatura, na arte, na pedagogia. Depois de ter sido obrigada a optar entre manter-se na direcção da revista ou demitir-se de presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, demitiu-se da revista e iniciou corajosamente um exaustivo inquérito à situação das mulheres portuguesas de todas as regiões do continente e ilhas, e das várias camadas sociais, publicado inicialmente em fascículos, depois reunidos no livro As Mulheres do Meu País, uma obra notável e única. Trabalhei com ela numa comissão de mulheres para preparar a ida de uma delegação de mulheres portuguesas, chefiada por ela, ao III Congresso Internacional das Mulheres, em Copenhaga, em 1953. Seria ela a relatora da situação da mulher em Portugal e incumbiu-me de redigir um relatório sobre as questões da maternidade e infância, ensinando-me como o fazer. Dez anos depois, em 1963, fiz parte da delegação, por ela chefiada, ao V Congresso Mundial de Mulheres realizado em Moscovo. Nessa época já ela era membro da Direcção da Federação Democrática Internacional das Mulheres e do Conselho Mundial da Paz.

Quando entrou na clandestinidade, sabia o que isso implicava para si e para a sua família, mas desconhecia o trabalho que iria desenvolver. Quais foram as principais tarefas que a direcção do Partido lhe atribuiu?

A primeira tarefa, para mim e para o meu companheiro, José Dias Coelho, foi montar uma oficina de falsificações, que executasse documentos de identificação para defesa dos camaradas clandestinos, assim como passaportes para as relações internacionais do Partido. Era um trabalho inesperado, monótono e difícil, mas justificava-se que nos fosse atribuído, porque tínhamos o curso de Belas Artes. Depois tive aresponsabilidade de executar um boletim interno: A Voz das Camaradas, cujo objectivo era elevar o nível político e cultural das mulheres que mantinham as casas clandestinas, fazer-lhes compreender a importância dessa tarefa, que era uma forma de participação na luta desenvolvida pelo Partido. Por outro lado, A Voz das Camaradas teve um papel reivindicativo, exigindo que as clandestinas não ficassem confinadas às tarefas domésticas e assistissem às reuniões realizadas nacasa, recebessem informação política e a discutissem, assim como os métodos de defesa usados e as suas observações sobre o que se passava à volta da casa, para melhor se defenderem. Eram incitadas a escrever para A Voz das Camaradas, e a sua participação activa reflectia-se no aumento dos artigos que enviavam para o boletim, nas sugestões que davam e nas críticas que faziam.

O êxito do trabalho partidário na clandestinidade dependia também do apoio de familiares e amigos. Quais foram os seus principais esteios nesses anos?

Começámos por necessitar de ajuda para as falsificações que iríamos executar. E para isso o Zé dirigiu-se aos nossos colegas e amigos artistas que iniciavam a Cooperativa de Gravura - Júlio Pomar, Sá Nogueira e Alice Jorge -, que nos forneceram os conhecimentos e os materiais de que necessitávamos. Camaradas operários construíram algumas peças em metal para as gravações e cozedura da borracha virgem para os carimbos. Para me transportarem, quando mais tarde fazia parte da redacção do Avante!, tive a ajuda de outros camaradas. Quando o meu companheiro foi assassinado pela PIDE, colegas das Belas Artes receberam-me na sua casa, deram-me o apoio e carinho de que tanto necessitava. E para ficarem com as minhas filhas, quando elas atingiram a idade escolar, tive a ajuda imprescindível da nossa família.

Na União Soviética e na Roménia retomou o contacto com as artes e a cultura, áreas da sua predilecção e que a custo abandonou ao entrar na clandestinidade. Que memórias guarda do exílio?

O desejo de regressar a Portugal, por mais perigos que isso implicasse. A gratidão pela solidariedade com que fomos recebidas e tratadas, eu e a minha filha. Quanto ao desenvolvimento cultural nesses países, tive a comprovação de que o regime socialista promovia um enorme desenvolvimento da cultura, uma cultura acessível ao povo, e estimulante da sua criatividade.

Depois de assumir tantas identidades falsas para não ser presa, qual foi a sensação de voltar a ser Margarida Tengarrinha, no pós-25 de Abril?

Um enorme alívio, uma grande alegria por poder ver as minhas filhas, a família e os amigos e uma indescritível sensação de liberdade por poder andar pelas ruas sem olhar para trás (discretamente, como o tinha feito durante anos), para me assegurar de que não estava a ser seguida pela PIDE. E também poder falar em público com o meu verdadeiro nome readquirido, ao ser anunciado pelo César Príncipe, no primeiro comício em que participei, no dia 27 de Abril, no coreto de Matosinhos.

Como membro do Comité Central (CC) do PCP, foi fácil fazer ouvir a sua voz e defender causas do ponto de vista feminino?

Quando membro do CC (que coincidiu com Álvaro Cunhal como Secretário-Geral), nunca deixei de emitir as minhas opiniões. Participei nas Comissões de Redacção dos Congressos com ele, desde o VI em 1965 até deixar o CC, e a orientação que seguíamos era ponderar e aceitar o maior número de propostas recebidas dos camaradas e integrá-las nos documentos. Não defendi muitas causas do ponto de vista feminino, mas as que defendi foram ouvidas: reivindicar uma maior participação de mulheres na direcção central do Partido.

Que balanço faz do trabalho desenvolvido como deputada à Assembleia da República?

Ficou muito aquém das minhas expectativas. Trabalhei em duas Comissões: a Comissão da Condição Feminina e a Comissão para a Agricultura, que me obrigou a um trabalho exaustivo, pois foi quando as terras das Cooperativas da Reforma Agrária começaram a ser devolvidas aos anteriores terratenentes. Na Comissão da Mulher discutimos os direitos e a igualdade de oportunidades, queixas sobre a violência doméstica e a legislação para a despenalização do aborto. Também, como deputada pelo Algarve, me reuni com trabalhadores, particularmente com as operárias conserveiras que, nessa altura, tinham muitos meses de salários em atraso, uma questão pela qual me bati no Plenário.

Por ser quem é, e pelas opções que tomou ao longo da vida, quais foram e são ainda as suas referências?

Lutar por uma sociedade sem exploradores nem explorados - uma sociedade socialista que abra caminho ao comunismo.

Considera-se uma feminista? Que rumos definiria para o feminismo hoje?

Sim, considero-me feminista, pois é necessário lutar pelos objectivos específicos em defesa dos direitos da mulher, nomeadamente por aqueles direitos que constam da Constituição da República e ficam no papel, sem serem levados à prática. Apoio os 12 direitos fundamentais da mulher, segundo a ONU, mas creio que a plenitude dos direitos da mulher é indissociável da luta geral da Humanidade por uma sociedade mais justa.