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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.43 Lisboa June 2020

https://doi.org/10.34619/s9br-3287 

HOMENAGEM

O legado de Manuela Silva. Um desafio para o futuro

Carlos Farinha Rodrigues*

* Universidade de Lisboa, ISEG - Lisbon School of Economics & Management 1200-781 Lisboa, Portugal. carlosfr@iseg.ulisboa.pt


 

A partida de Manuela Silva deixou um vazio difícil de preencher na sociedade portuguesa, e esta minha breve homenagem deverá ser entendida como uma forma de preservar e aprofundar o seu legado de nunca desistir de lutar por uma sociedade mais justa, equitativa, solidária e sem pobreza ou exclusão social. O testemunho prestado ao seu percurso não é predominantemente um revisitar do passado: as convicções por que Manuela Silva sempre lutou permanecem vivas naqueles que com ela aprenderam, trabalharam ou simplesmente partilharam ideias. A sua visão de uma economia ao serviço das pessoas, a necessidade de um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo permanecem hoje como um desafio para o futuro, como um guia para todos aqueles que partilham dessa mesma visão.

Permitam-me que comece com uma nota pessoal. Manuela Silva foi das pessoas que mais marcou a minha vida pessoal e académica durante os últimos 40 anos. Foi minha professora no Mestrado em Economia do ISEG, orientadora da minha tese de Mestrado e co-orientadora (com o Prof. Tony Atkinson) da minha tese de Doutoramento. Tive o privilégio de trabalhar com ela no CISEP (Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa), no CRC (Centro de Reflexão Cristã), no grupo Economia e Sociedade e em múltiplas actividades no ISEG.

Ao longo desta caminhada comum que ela me proporcionou, aprendi muito do ponto de vista académico e beneficiei largamente da sua energia resplandecente e contagiante, capaz de galvanizar e mobilizar vontades e de conferir sempre uma utilidade social ao trabalho desenvolvido. Mas, acima de tudo, aprendi com ela uma visão profundamente humanista da sociedade e do mundo, em que a actividade humana somente ganha o seu verdadeiro sentido se se traduzir num serviço à comunidade em que estamos inseridos e, em particular, aos seus elementos mais desfavorecidos. Com a partida de Manuela Silva perdi uma amiga sempre presente, alguém que nas pequenas e nas grandes questões constituía sempre uma luz esclarecida quanto ao caminho a trilhar e às formas de o percorrer. Ficam-nos os seus ensinamentos, a memória do seu amor à vida e ao próximo.

Descrever o percurso de Manuela Silva, ainda que de uma forma muito sucinta e incompleta, não é tarefa fácil. A profundidade da sua reflexão sobre a sociedade e a vida, diferentes espaços em que a sua acção se desenvolveu, a profunda energia que colocava em tudo o que fazia e a enorme capacidade de mobilizar a participação de outros, conjuntamente com a enorme coerência das ideias e prática desenvolvidas ao longo dos anos, inviabilizam qualquer tentativa de segmentar cada uma das vertentes de actuação do seu trabalho.

As várias facetas que dela conhecemos são inseparáveis: a economista brilhante que sempre foi, a cidadã activamente empenhada numa sociedade mais justa, a professora universitária sempre atenta ao papel da Universidade na sociedade, a católica profundamente marcada pela doutrina social da igreja.

Maria Manuela da Silva nasceu em Cascais em 1932. O seu percurso académico inicia-se na Escola Comercial de Ferreira Borges e no Instituto Comercial de Lisboa, ingressando no ISCEF, agora Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, em 1949.

O seu tempo de estudante universitária não é somente despendido com as actividades académicas. Cedo encontra forma de as conjugar com uma participação intensa na Juventude Universitária Católica Feminina, onde, entre outras actividades, é responsável pela realização do primeiro inquérito à condição dos estudantes universitários em Portugal.

A sua entrada no ISCEF coincide com o lançamento da primeira licenciatura em Economia em Portugal. Cinco anos depois, torna-se a primeira mulher licenciada em Economia por uma Universidade Portuguesa, obtendo a classificação mais elevada do seu curso (17,3 valores). Não obstante, e ao contrário dos restantes três primeiros Licenciados em Economia (todos homens), Manuela Silva não é convidada para a carreira docente unicamente por ser mulher.

Afastada da Universidade, Manuela Silva inicia a sua vida profissional. Entre 1955 e 1960 desempenha funções no Ministério das Corporações e Previdência Social, nos Serviços de Acção Social e no Centro de Estudos Sociais e Corporativos da Junta de Acção Social. Tendo a incumbência de acompanhar as relações laborais, particularmente a situação das mulheres no mercado de trabalho, cedo se destaca aquela que se tornaria uma das vertentes essenciais da sua visão e actividade em todos os organismos por onde passou: a profunda preocupação social com os diferentes aspectos da economia.

Essa preocupação social está presente logo nos primeiros artigos que publica, ainda nos anos 1950, onde a temática dos salários, e da sua justa determinação, surge claramente vincada: “Contribuição ao estudo do salário na indústria transformadora portuguesa”, em 1956, “Sobre a análise económica do salário” e “O salário e a reforma da empresa”, em 1957, “Critérios económicos e fixação de salários nas economias livres”, em 1959, e “Sobre o princípio de ‘trabalho igual salário igual’”, em 1960.

Na década de 1960 participa activamente no Graal, movimento internacional de mulheres católicas, onde desenvolve um projecto pioneiro no estudo do desenvolvimento comunitário em Portugal na zona de Portalegre. Além da identificação das principais carências da população, o projecto promove iniciativas de alfabetização e de consciencialização social.

A sua participação em iniciativas de desenvolvimento comunitário ganha uma consistência acrescida ao fazer parte da equipa de “Estudos e experimentação em desenvolvimento comunitário” promovida pela Associação Industrial Portuguesa (1960-64), continuando com a sua nomeação primeiro para Directora do Gabinete de Estudos Sociais do Ministério da Saúde e depois para Chefe dos Serviços de Acção Social Comunitária do mesmo Ministério.

O trabalho de desenvolvimento comunitário implementado nas freguesias de Benedita e Bárrio no concelho de Alcobaça constitui um estudo marcante e inovador de levantamento socioeconómico e demonstra as potencialidades do planeamento do desenvolvimento local participado. Mais, reflecte uma visão inovadora da própria noção de desenvolvimento já claramente consolidada em Manuela Silva.

A sua actividade profícua é testemunhada por diversos artigos: “Oportunidade do desenvolvimento comunitário em Portugal” e “Assimetrias espaciais do progresso no continente português”, em 1964, “O desenvolvimento económico e a política social”, em 1970, e “Os discursos de planificação social e os sistemas de exclusão que os demarcam”, em 1976.

Em 1970, Manuela Silva volta ao ISEG, agora como docente, onde é responsável pela reorganização, criação e leccionação das disciplinas de Planeamento Social, Teoria e Técnicas de Planeamento e Política Económica (todas da licenciatura em Economia) e de Planeamento (do Mestrado em Economia).

Esta preocupação crescente com as questões do planeamento e a política social é reflectida em diversas obras deste período: “O desenvolvimento económico e a política social”, em 1970, “Análise sistémica, modelização social e planificação”, em 1973, e “Os discursos de planificação social e os sistemas de exclusão que os demarcam”, em 1976.

A importância que confere à necessidade de repensar tanto as questões do desenvolvimento (económico, social, ambiental) como as do planeamento em resposta aos desafios do desenvolvimento ganha um novo espaço de intervenção cívica com a sua nomeação para Secretária de Estado para o Planeamento no I Governo Constitucional, em 1976-77. Sob a sua orientação, é elaborado um plano nacional de desenvolvimento económico e social (Plano de Médio Prazo 77-80), assente numa estratégia de desenvolvimento segundo as necessidades básicas. Apesar de nunca ter sido aprovado e implementado, este plano representa um esforço ímpar da administração pública pós-25 de Abril de identificar os principais estrangulamentos da economia e da sociedade e encontrar soluções capazes de promover um desenvolvimento sustentado do nosso país.

Terminada a experiência governativa, Manuela Silva volta à docência e investigação no ISEG. Entre 1982 e 1985 é directora da revista Estudos de Economia e preside ao Conselho Pedagógico. Manuela Silva assume igualmente um papel de destaque na criação do CISEP, sendo seu membro-fundadora e também membro da sua primeira Comissão Directiva. No final dos anos 1980, é responsável pela criação de uma pós-graduação e de um mestrado em Economia e Política Social.

É também na década de 1980 que Manuela Silva coordena os primeiros estudos científicos sobre a pobreza realizados em Portugal: “Uma estimativa da pobreza em Portugal em Abril de 1974”, em 1984, “A pobreza em Portugal”, em 1985, “Pobreza urbana em Portugal”, em 1987, e “A pobreza infantil em Portugal”, em 1991. Não poderia aqui deixar de referir a sua colaboração com Alfredo Bruto da Costa, outro nome incontornável na realização destes estudos.

Manuela Silva é igualmente pioneira nos estudos sobre desigualdade da repartição do rendimento e sobre igualdade de género: “Desenvolvimento económico e repartição do rendimento” e “O emprego das mulheres em Portugal - A mão invisível na discriminação sexual no emprego”, em 1983, e “A repartição do rendimento em Portugal no pós-Abril 74 - Tópicos para um debate”, em 1985.

Manuela Silva aposenta-se como Professora Catedrática convidada do ISEG em 1993, mas a sua ligação activa à Universidade mantém-se durante vários anos, quer como orientadora de doutoramento de vários jovens assistentes, quer como membro do Conselho Geral da Universidade Técnica de Lisboa, onde desempenha um papel de relevo no processo de fusão da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade de Lisboa. Em 2013, a Universidade de Lisboa atribui-lhe o “Doutoramento Honoris Causa”, sob proposta do Conselho Científico do ISEG.

No entanto, a actividade de Manuela Silva nunca esteve exclusivamente confinada aos muros da Universidade. A criação de diversos centros de investigação e de reflexão foi uma constante do seu processo de vivenciar e disseminar as ideias e os valores em que acreditava e por que se batia, de construir espaços múltiplos de debate e de mobilização na defesa de uma sociedade mais democrática, mais justa, de um desenvolvimento sustentável e de uma economia ao serviço das pessoas. Muitas dessas iniciativas são indissociáveis do seu envolvimento no seio da Igreja Católica, onde foi sempre uma voz actuante e participante, mas igualmente crítica.

Em 1975 cria o CRC, de que é presidente durante vários anos, e é directora da revista Reflexão Cristã, para a qual escreve múltiplos artigos.

Em 1992 funda o CESIS (Centro de Estudos para a Intervenção Social) com o objectivo explicito de “analisar, para compreender, a realidade social nas suas diferentes dimensões e de intervir para promover a coesão social”. Entre 1983 e 1987 é presidente do Movimento Internacional dos Intelectuais Católicos/Pax Romana. Entre 2006 e 2008 preside à Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP).

Um dos aspectos mais salientes da sua actividade na CNJP é, em 2008, a apresentação na Assembleia da República de uma proposta que reclama a definição da pobreza como uma violação de direitos humanos a partir da qual se devem retirar as necessárias consequências nos planos político e jurídico. O projecto foi aprovado por unanimidade, mas as suas implicações práticas foram, infelizmente, quase nulas.

Nos anos mais recentes, a reflexão e a acção de Manuela Silva desdobram-se prioritariamente por três instituições: a Fundação Betânia, a Rede Cuidar da Casa Comum e o grupo de reflexão Economia e Sociedade.

A Fundação Betânia, de que foi fundadora e Presidente vitalícia, é um espaço que se propõe “a procura de novos alicerces culturais e espirituais, que conduzam à realização harmoniosa do ser humano, na sua globalidade, e abram caminhos a modos de vida e a relações sociais orientadas segundo o Primado do Amor”. Nesse espaço, Manuela Silva desenvolve e publica mensalmente no site da fundação muitos dos seus textos de cariz mais espiritual e religioso, reunidos em livros como Ouvi do Vento, de 2010 (textos de 2003-09). Outras obras marcantes desta vertente da reflexão são No Jardim do Peixe, de 2014, e Resiliência Criatividade Beleza, de 2018.

Em 2017 Manuela Silva funda e dinamiza a Rede Cuidar da Casa Comum, com o objectivo de aprofundar e difundir a encíclica “Laudato si’ - Sobre o cuidado da casa comum” do Papa Francisco, e onde o debate sobre as questões ecológicas de âmbito nacional e mundial e a sugestão de caminhos de actuação para uma ecologia integral são as preocupações fundamentais.

Também criado e dinamizado por Manuela Silva, Economia e Sociedade é um grupo de reflexão cujas tomadas de posição procuram contribuir para o debate de questões relevantes e oportunas para o desenvolvimento da economia e da sociedade portuguesa e para a construção de uma nova economia ao serviço de um desenvolvimento humano e sustentável.

Das suas actividades recentes destacam-se os amplos debates nacionais sobre temas como “Pensar a Educação”, em 2015, “Por onde vai o ensino da Economia?” e “Economia e Sociedade - Pensar o Futuro”, ambos em 2019. Estes debates, assentes em estudos aprofundados amplamente discutidos em reuniões preparatórias e posteriormente publicados, traduzem fidedignamente algumas das preocupações centrais do pensamento de Manuela Silva ao longo de toda a sua vida: o papel da educação, em particular, o do ensino da economia, e o modelo de sociedade e de desenvolvimento.

A descrição, ainda que incompleta, a que procedemos do percurso de Manuela Silva permite-nos ter uma visão da importância que ela teve na identificação dos problemas sociais que afectam a nossa sociedade, da sua luta por uma sociedade mais justa onde a pobreza seja erradicada e as desigualdades fortemente reduzidas, na defesa de uma economia ao serviço das pessoas e numa noção de desenvolvimento sustentado do ponto de vista social, económico e ambiental.

Mas aqueles que com ela percorreram parte desse percurso guardam adicionalmente o testemunho da sua enorme capacidade de reflectir sobre os problemas e encontrar soluções, da coragem com que sempre defendeu as suas ideias, do seu talento para ouvir mas também envolver os outros, do enorme capital de esperança transformadora que transmitia a tudo em que se envolvia. Como Manuela Silva descreve no seu livro Ouvi do Vento, “Há pessoas cuja presença é, por si mesma, um feixe de luz que irradia, tanto para os lugares onde habitam como para as outras pessoas à sua volta”. Manuela Silva era, inquestionavelmente, uma dessas vidas luminosas.

O principal legado que Manuela Silva nos deixa é um desafio para nos inquietarmos, para não baixar os braços, para continuar o seu combate por uma economia ao serviço das pessoas, que preserve a casa comum onde todos hoje habitamos e onde novas gerações irão habitar no futuro e que assegure um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo.

ISEG, Junho de 2020