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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.43 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.34619/1jz0-pm58 

LEITURAS

As vozes que se entrecruzam: Múltiplas discriminações II. Sales, T., & Ralão, J. (Coord.). (2020). Lisboa: UMAR, 115 pp.

Natividade Monteiro*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro de História Contemporânea. 1069-061 Lisboa, Portugal. nati.monteiro@netcabo.pt


 

Este livro, publicado pela UMAR, reúne estudos sobre as muitas formas de opressão, discriminação e marginalização que afectam as mulheres, em função do género, classe, raça/etnia e deficiência. É mais uma edição do Projecto Memória e Feminismos que, desde 2012, tem recolhido e preservado ‘histórias de vida de mulheres’ de diferentes classes sociais, idades e proveniências. Depois desta incursão sobre as memórias, percursos e experiências de mulheres que saíram da sombra e tomaram lugar na ágora como cidadãs de pleno direito, o Projecto dirigiu o olhar para alguns dos grupos mais invisibilizados e marginalizados. Primeiro, deu lugar às lésbicas, transexuais, imigrantes, ciganas e trabalhadoras do sexo, e depois, às mulheres negras e afrodescendentes, mulheres do mundo rural, trabalhadoras domésticas e mulheres com deficiência, sendo estas últimas o objecto de estudo deste livro.

Com prefácio de Ana Maria Pessoa, o livro divide-se em quatro partes. Na primeira, dedicada às mulheres negras e afrodescendentes, Patrícia von der Way, seguindo o modelo analítico da interseccionalidade, escreve sobre a violência e os desafios e singularidades étnico-raciais a que aquelas estão sujeitas na vida quotidiana, no mercado de trabalho e nas migrações. A autora tenta um estudo comparativo da situação das mulheres negras e das políticas públicas de inserção social e de igualdade no acesso à educação e ao mercado de trabalho no Brasil, Espanha e Portugal, concluindo que os progressos verificados se devem mais ao esforço individual e colectivo das próprias do que às iniciativas ou políticas de empoderamento implementadas nos respectivos países. Só um debate informado e empenhado entre a academia, os movimentos sociais e as instituições políticas poderá incentivar a promoção de medidas especialmente dirigidas a este grupo social para uma maior equidade de direitos e oportunidades. No mesmo campo temático, Ana Paula Costa discorre sobre a interseccionalidade como método de análise que tem em linha de conta outras dimensões indissociáveis do género, como raça/etnia, classe social, nacionalidade, religião e sexualidade. Estas dimensões fazem parte das identidades individuais e colectivas das mulheres, cujas experiências podem ser distintas para mulheres brancas e negras, em semelhantes ou diferentes contextos sociais e políticos.

A segunda parte é dedicada às mulheres do mundo rural. Manuela Tavares reflecte sobre as desigualdades existentes entre as mulheres dos centros urbanos e as das aldeias do interior, problemática que é urgente debater, por haver muito a fazer no combate ao isolamento, ao conservadorismo, ao machismo, à violência doméstica, bem como à falta de reconhecimento e de oportunidades profissionais. As mulheres são as que mais têm resistido à desertificação e são as mais atingidas pela pobreza e exclusão social. O Relatório da ONU «Transformando Promessas em Acções: A Igualdade de Género na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável» confere às mulheres um papel importante na defesa do ambiente, na protecção da biodiversidade e na preservação dos recursos naturais. Na mesma linha de pensamento, Maria do Carmo Bica fala das suas experiências como mulher do interior e como Técnica Superior na Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e traça um quadro negro da situação das mulheres que sobrevivem da pequena agricultura familiar, em vias de desaparecimento, em resultado da Política Agrícola Comum. Os projectos implementados para a emancipação das mulheres em meios rurais têm sido votados ao fracasso por falta de apoios institucionais e pelo conservadorismo, controlo social e múltiplas discriminações que condicionam os seus percursos, escolhas e autodeterminação. Teresa Sales e Joana Ralão corroboram estas dificuldades num texto elaborado com base nas histórias de vida de mulheres do Interior Centro e do Nordeste Transmontano que resistem ao isolamento e ao controlo social, acreditando poder remover obstáculos e combater desigualdades através da educação.

Na terceira parte, Manuel Abrantes escreve sobre as trabalhadoras domésticas, salientando os quantitativos oficiais do sector, a heterogeneidade da sua composição e das relações laborais, a diversidade de cuidados directos e indirectos prestados e a variedade sociodemográfica, quer das trabalhadoras quer das pessoas que as contratam, elementos importantes para avaliar e resolver os problemas aí encontrados, como a remuneração, o horário de trabalho, a protecção social, a saúde, a segurança, a organização colectiva, a literacia de direitos e a valorização simbólica do serviço doméstico. Inês Brazão chama a atenção para a importância de fazer a história das trabalhadoras domésticas, na medida em que a mais grave das discriminações de que são alvo é a ausência de um discurso sobre o que é, o que representa e o espaço que ocupa o serviço doméstico no espectro do trabalho global. “O estudo da condição servil permite compreender uma estrutura social subterrânea que teve um peso fundamental na história recente do país e, sublinhe-se, na história das mulheres portuguesas invisibilizadas” (p. 82). A subalternidade servil foi silenciada, mas deixou rasto e influência nas formas de dependência social que reproduzem as desigualdades mesmo no regime de trabalho assalariado. A subvalorização cultural e a exploração do serviço doméstico são comprovadas pelas intervenções das trabalhadoras que participaram na última tertúlia do projecto, e que aqui são reproduzidas por Teresa Sales.

Por último, Maria Helena Alves reflecte sobre as múltiplas discriminações exercidas sobre as mulheres com deficiência, destacando as acções desenvolvidas nas últimas décadas em prol do movimento associativo para apoiar, aconselhar e defender os seus direitos, visto que estão mais expostas à pobreza, exploração, maus-tratos e abusos sexuais. Ana Patrícia Santos aborda as vulnerabilidades, as exclusões e a realidade pouco visível da violência doméstica sobre as mulheres invisuais. Paula Campos Pinto e Teresa Janela Pinto identificam as estruturas e processos de desvalorização e marginalização social e cultural das mulheres com deficiência e mostram como as desigualdades e exclusões afectam o seu quotidiano nas esferas da educação, do trabalho e emprego, da vida familiar e relações de intimidade. Contudo, estas mulheres revelam grande capacidade de resiliência e autodeterminação para o exercício da cidadania.

Eis um livro que levanta a ponta do véu sobre campos temáticos pouco iluminados.