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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.44 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.34619/repv-da85 

Estudos

Mulheres e ambiente: Uma relação decisiva na transição para a sustentabilidade.

Women and the environment: a crucial relation for the sustainability transition.

1 Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1600-189 Lisboa, Portugal, mlschmidt@ics.ulisboa.pt carla.gomes@ics.ulisboa.pt


Resumo

No último meio século, a relação entre as mulheres e o ambiente tem-se evidenciado como crucial. De cuidadora a agente de mudança, na linha da frente da sustentabilidade e da justiça climática, a voz feminina carece ainda de pleno reconhecimento no contexto da governança ambiental. Neste artigo, discutimos os estudos que têm analisado as questões de género no quadro dos problemas e políticas ambientais, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, com ênfase no caso português, para o qual apresentamos dados de alguns inquéritos recentes. Terminamos com a análise de alguns problemas-chave e pistas para novas linhas de investigação.

Palavras-chave: políticas ambientais; alterações climáticas; consumo; justiça; feminismo

Abstract

In the last half century, the relationship between women and the environment has proved to be crucial. From caregiver to agent of change, at the forefront of sustainability and climate justice, the female voice still needs full recognition in the context of environmental governance. In this article, we discuss studies that have analysed gender issues in the context of environmental problems and policies, both in developed and developing countries, with an emphasis on the Portuguese case, for which we present data from some recent surveys. We conclude with the analysis of some key issues and clues for further research.

Keywords: environmental policies; climate change; consumption; justice; feminism

1. Introdução: de cuidadoras a agentes de mudança

Seja qual for o contexto do ambiente de que falemos - água, resíduos, saúde, educação -, as mulheres desempenham sempre um papel decisivo, embora com diferenças importantes conforme as culturas, as sociedades e as geografias.

Contudo, ao mesmo tempo que as mulheres ocupam esta posição central nas dimensões humanas e sociais da relação com o ambiente, não possuem inversamente o respectivo reconhecimento. Existe um contraste entre essa sua ligação e função fulcral e o facto de, em geral, não serem socialmente reconhecidas no desempenho dessa função.

Rachel Carson, considerada uma das fundadoras do movimento ambientalista (Soromenho-Marques, 2008), bióloga, cientista e comunicadora ambiental, viu a sua luta contra a poluição química nos Estados Unidos frequentemente recebida nos quadrantes políticos e empresariais com argumenta ad feminam. Foi apelidada de “histérica”, “alarmista” e “sentimental”, uma mulher que interferia com assuntos para além da sua capacidade intelectual. No posfácio a uma edição de 1999 de Silent Spring, Linda Lear escreve: “a ofensa mais imperdoável era [Carson] ter extravasado o seu lugar como mulher” ao enfrentar um meio científico e profissional dominado pelos homens (Lear, 1999, p. 262).

Quase 60 anos mais tarde, a activista climática Greta Thunberg agita o planeta com o seu movimento ‘Fridays for Future’, é nomeada para o Nobel da Paz e considerada pela Time como uma das pessoas mais influentes a nível global. Seguida por milhões de pessoas em todo o mundo, é desvalorizada e criticada em muitos quadrantes políticos por ser uma ‘pirralha’ e uma ‘miúda irritante’ (Pereira, 2019); sobretudo entre os poderes mais conservadores, como fica patente na agressividade com que alguns se aferram sobre ela (Schmidt, 2020).

Também no designado Sul Global muitas das mulheres que mais se notabilizaram na defesa do ambiente sofreram represálias e tiveram de fazer duras escolhas na sua vida pessoal e familiar. Foi o caso da Nobel da Paz Wangari Maathai, bióloga formada nos EUA, uma das primeiras mulheres a concluírem um doutoramento no continente africano. Maathai criou um movimento ambiental com repercussões mundiais, o Green Belt Movement, e assumiu cargos políticos de destaque no seu país, o Quénia. Refira-se também a indiana Vandana Shiva, física e activista ambiental, que se tem notabilizado pela investigação científica e pela intervenção específica na área dos direitos de propriedade intelectual e da biodiversidade, combatendo com grande coragem - e com sucesso - a biopirataria levada a cabo por empresas norte-americanas (Shiva, 2003).

Os anos 70 do século XX viram crescer novos movimentos sociais em defesa do ambiente, contra a discriminação ética e racial e pelos direitos das mulheres. O ecofeminismo emergiu nesta altura como uma teoria social e movimento político transformativo, “que visava uma reestruturação radical das instituições políticas e sociais” (Lahar, 1991, p. 30). As teorias mais radicais do ecofeminismo analisam a ligação entre a exploração do ambiente/natureza e a das mulheres, considerando ambas baseadas nos mesmos modos de produção capitalista dominantes. Nesta perspectiva, a relação mais próxima das mulheres com a natureza aproxima-se de um essencialismo paradoxal: por um lado, “a relação das mulheres com a natureza é vista como espaço de vivência e manutenção da vida” e, por outro lado, é essa condição de proximidade que coisifica, subalterniza e oprime a mulher (Angelin, 2017, p. 53).

O ecofeminismo cultural, prevalente nos Estados Unidos, atribui às mulheres uma relação especial com a natureza, quer pelas suas capacidades reprodutivas, quer por factores do foro psicológico e moral. A corrente do ecofeminismo social (construtivista) dominante na Europa recusa esta concepção universalista da relação mulher-natureza, sustentando que as identidades femininas são constituídas por contextos sociais e históricos diversos (e influenciadas por factores como a idade, a orientação sexual e a pertença étnica). Entre as duas, a corrente materialista (socialista) advoga que ambos os factores, biológicos e sociais, levaram a que as mulheres se aproximassem da natureza, por oposição a uma sociedade patriarcal que historicamente tem vindo a oprimir ambas (Warren, 2001).

As mulheres tiveram um papel de relevo nos movimentos pela justiça ambiental, até mesmo antes de estes movimentos serem constituídos como objectos de investigação pelas ciências sociais - de que são exemplo os movimentos contra a energia nuclear e a poluição química nos anos 70 do século XX (Unger, 2008) -, e foram assumindo progressivamente a liderança de movimentos ambientalistas por todo o mundo, no Norte e Sul Globais (Mies & Shiva, 1993; Prindeville & Bretting, 1998). No entanto, até aos anos 90 do século XX, considerava-se que elas tinham maiores preocupações com problemas ambientais com implicações mais imediatas para a saúde e a segurança a nível local, o que adviria do seu papel tradicional de cuidadoras, em particular da família e das crianças. Na verdade, alguns estudos têm revelado também uma maior preocupação das mulheres com problemas ambientais globais, comparativamente com os homens (Mohai, 1997).

A discrepância entre a realidade e o reconhecimento do papel das mulheres na defesa do ambiente regista, no entanto, grandes diferenças conforme as zonas do mundo e respectivas culturas, havendo sobretudo que diferenciar a situação nos países em desenvolvimento e nos países desenvolvidos, pese embora haver também aqui diferenças entre países - nomeadamente entre os do Norte europeu e os do Sul da Europa, como é o caso de Portugal - ou dentro de uma mesma sociedade, com as suas minorias étnicas, classes sociais e grupos socioculturais (Dankelman, 2002).

Neste artigo, começamos por fazer uma abordagem geral aos estudos que equacionam a problemática das mulheres e do ambiente, distinguindo o seu papel conforme o tipo de sociedades: nos países em desenvolvimento do Sul Global, surgem ligadas sobretudo à gestão quotidiana dos recursos básicos, e a norte, nos países desenvolvidos, ligadas sobretudo ao contexto da ‘casa’ como principal unidade de metabolização e consumos e de localização estratégica.

Centraremos depois a análise nos estudos sobre ambiente que têm equacionado a questão de género em Portugal, apresentando dados quantitativos que evidenciam diferenças relevantes. Iremos focar-nos especificamente em três campos: aspectos sanitários ligados à higiene da casa (questões da água e da saúde); aspectos ligados à economia circular (resíduos e consumos); e aspectos de cultura, educação ambiental e novos movimentos sociais. No final faremos uma reflexão sobre o tema e deixaremos pistas para futuras análises.

2. Mulher e ambiente nos países em desenvolvimento

Equacionar o papel das mulheres e a sua relação com a Natureza, bem como o estatuto mais ou menos reconhecido que daí advém, é um clássico ambivalente. Esta relação, que muitos ligam à questão da maternidade, é, aliás, muitas vezes vista como redutora do papel da mulher enquanto agente de cidadania. A função da mulher ligada não só aos trabalhos da agricultura e da casa, como à gestão da água e da lenha, e aos cuidados dos filhos, doentes e idosos, confere-lhe um papel crucial na própria sobrevivência da comunidade, mas, ao mesmo tempo, secundariza-a na vida activa e nas decisões importantes. Acresce ainda a condição frequente de ficarem as mulheres com o cargo da casa, das crianças, dos idosos e da terra enquanto os homens emigram (O’Laughlin, 1998).

É assim que o papel das mulheres nos países em desenvolvimento se encontra muito ligado aos recursos - seja à sua manutenção, seja à sua gestão e colecta. Apesar da sua responsabilidade acrescida pela subsistência da família, elas têm também maiores limitações no acesso aos recursos, nomeadamente à terra, bem como ao mercado de trabalho e a rendimentos alternativos. Mas as mulheres do Sul Global não se têm limitado a aceitar passivamente a sua situação; têm vindo a ganhar uma crescente relevância em movimentos cívicos, ambientalistas e na luta camponesa (Agarwal, 1989).

Um estudo que equaciona o protagonismo das mulheres camponesas na produção e gestão de recursos naturais comparando três países da América Latina - Brasil, Cuba e México - evidencia o “papel preponderante [das mulheres] na gestão dos recursos naturais”, seja na provisão de alimentos e na colecta de frutos, raízes, plantas medicinais e lenha para cozinhar, seja na alimentação de animais e, claro, na água. O estudo sublinha que tal implica um conhecimento relevante sobre os ecossistemas e ciclos naturais e que, além do mais, as mulheres camponesas ainda desempenham actividades de gestão comunitária (Lisboa & Lusa, 2010).

O microcrédito tem sido implementado em alguns países asiáticos (como o Bangladesh e a Índia) e africanos como forma de facilitar o acesso das mulheres ao crédito e afirmar o seu potencial, pois muitas delas não têm acesso à banca convencional. Os dados mostram que mais de 80% dos casos de recurso ao microcrédito são protagonizados por mulheres, sendo 65% dos beneficiários habitantes de zonas rurais (Convergences, 2019). No entanto, os estudos que têm analisado o impacto do microcrédito na melhoria das condições de vida das mulheres do Sul Global chegam a conclusões contraditórias, o que enfatiza a importância de outros constrangimentos, como as relações familiares e os contextos socioculturais (Churchill, 2015).

Também a ‘universidade de pé descalço’, uma iniciativa levada a cabo na Índia por Bunker Roy, tem privilegiado o ensino às mulheres, por se ter comprovado que, no regresso às suas terras, são elas que melhor potenciam as aprendizagens e coordenam a inovação e a adopção das novas práticas aprendidas - nomeadamente na utilização de energia solar e na gestão e tratamento da água (Social Work and Research Centre, 2020). Mesmo quando são alvo de perseguição e agressão, como foi o caso de outra Nobel da Paz - a jovem paquistanesa Malala Yousafzai -, a escolarização é um factor decisivo no reconhecimento da capacitação das mulheres para gerir a relação, entre outras coisas, com os recursos naturais.

Contudo, em geral, essas aptidões não são reconhecidas ou são relativizadas e, na maior parte destes países, a mulher continua a ser menorizada e remetida para um papel subalterno. Uma análise etnográfica conduzida no Brasil sobre uma região mineira (‘reserva extractivista’) conclui que mulheres e natureza são ambas objectificadas e silenciadas em paralelo, gerando ‘uma cultura de invisibilidade das mulheres’ (Carmo et al., 2016, p. 158) e apelando ao enquadramento dos seus direitos de uma forma transversal no âmbito dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). E mais uma vez a esperança e a reivindicação vai acima de tudo para o acesso à educação, na linha do que Amartya Sen vem requerendo como essencial à luta contra a pobreza e para o florescimento das sociedades pobres em desenvolvimento (Sen, 1999).

David King (2010), referindo-se a um estudo comparativo entre vários países africanos, constata que sociedades africanas que apostaram na educação das mulheres tiveram processos de desenvolvimento mais eficazes, consistentes e duradouros, por exemplo no que se refere ao combate à pobreza e às doenças endémicas.

Outros estudos dedicados aos movimentos ambientais de resistência e luta contra a degradação ambiental resultante do impacto da implantação de indústrias poluentes, de monoculturas intensivas ou da mineração, têm destacado o papel das mulheres tanto em regiões africanas, como em regiões asiáticas e latino-americanas. Trata-se de movimentos locais que as redes sociais e as ONG internacionais têm tornado mais visíveis e que se rebelam contra projectos que afectam gravemente o ambiente e a saúde pública a nível local. O exemplo mais comum tem sido o movimento Via Campesina, com uma forte presença de mulheres que lutam pelo bem comum e a saúde dos seus filhos, o que lhes confere uma legitimidade particular, dado serem elas culturalmente as responsáveis pela integridade física da família (Barcellos, 2013).

E se é certo que muitas vezes as tentam acantonar ao papel de ‘mães’ e assim relativizá-las de forma paternalista, também se verifica que há uma espécie de “razão universal” nestas lutas sócio-ambientais que legitima as mulheres e as reconhece cada vez mais como interlocutoras (Figueiredo & Perkins, 2013). Com efeito, nos movimentos pela justiça ambiental e alimentar, o papel da mulher assume também uma preponderância cada vez maior, o que é nítido nos movimentos de luta camponesa, como a já referida Via Campesina, em que a paridade das lideranças é um princípio basilar (Via Campesina, 2020).

Por fim, tanto os documentos da ONU, como os estudos sobre justiça ambiental e climática, têm incidido sobre a questão das desigualdades de género e da vulnerabilidade das mulheres perante o impacto crescente das alterações climáticas. Essa vulnerabilidade verifica-se tanto no acesso aos recursos, particularmente à água, como nos impactos da desertificação na confecção da comida: em muitas regiões de África, as mulheres estão sujeitas a intoxicações graves devido à utilização de carvão e resíduos por vezes tóxicos para poderem cozinhar (Terry 2009; Nhamo, 2014).

A ideia de que a mulher tem uma ligação mais próxima com a natureza e está particularmente vulnerável aos riscos ambientais tem sido, aliás, central no discurso e nas políticas globais das Nações Unidas pelo menos desde a Conferência do Rio 92, e mantém-se nas bases da política climática da Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas (UNFCCC). No entanto, esta abordagem é por vezes criticada por assentar numa visão simplificada da mulher como vítima das circunstâncias, sem agencialidade ou estratégias de reacção (Resurrección, 2013). Linhas de investigação recentes têm vindo a explorar as dinâmicas de poder e de acesso aos recursos também na perspectiva da mulher como agente activo nas políticas de gestão dos recursos e das mudanças ambientais, mesmo que num contexto informal e menos visível no foro político (Rao, Lawson, Raditloaneng, Solomon & Angula, 2017).

Um estudo comparativo entre 25 países de África e da Ásia analisa o modo como as relações de poder condicionam as decisões das mulheres sobre a gestão dos recursos naturais, num cenário de escassez de água que as alterações climáticas vêm agravar. Mas também observa, por exemplo, que em África, onde há cada vez mais lares geridos por mulheres, estas têm vindo a dinamizar novas formas de acção colectiva de forma a garantir um acesso sustentável aos recursos e minimizar a sua vulnerabilidade (Rao et al., 2017).

Muitas vezes, ao reflectir a menor participação das mulheres nas decisões e a sua menor capacitação técnica (por exemplo sobre as questões da energia), as políticas climáticas acabam por perpetuar as clivagens de género (Dankelman, 2002). No caso da gestão da água, Figueiredo e Perkins (2013) salientam que as mulheres estão mais vulneráveis aos problemas gerados pela escassez do recurso e pelas inundações, mas também podem contribuir mais eficazmente para as estratégias de adaptação com o seu conhecimento local ecológico, social e político.

É por isso que é tão importante prosseguir com os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Agenda 2030, cujos assuntos e metas incluem as questões do género, da educação, do combate à fome, à pobreza e às desigualdades, do acesso à água e às energias limpas e da adaptação às alterações climáticas.

3. Políticas ambientais no Ocidente: o impacto das mulheres

No caso dos países ocidentais, apesar dos paralelismos mencionados, a situação é muito diferente. Desde logo as revoluções sociais e culturais do século XX estabeleceram direitos - à educação, ao trabalho, ao voto - em quase todos os países.

Mas seria posteriormente, no pós-Segunda Guerra Mundial, que o acesso à electricidade e a generalização das máquinas de lavar (a da roupa, primeiro, a da loiça, depois), bem como todo o conjunto de electrodomésticos de apoio à vida da casa, viriam aliviar as mulheres da classe média do fardo de alguns trabalhos domésticos e da respectiva ligação a recursos básicos como a água, quer nos Estados Unidos, quer na Europa.

Acresce que, em geral, nos países ocidentais desenvolvidos, se registou uma coincidência entre o facto de as questões ambientais terem surgido publicamente activas nos finais dos anos 1960, e o movimento de libertação das mulheres, muito mais antigo, ganhar espaço e afirmação. Tal acabou por re-situar a sua articulação aos recursos e ao próprio quadro doméstico.

Relembre-se que a primeira lei-quadro para a política ambiental foi aprovada em 1969 nos EUA, sendo a Agência de Protecção Ambiental (EPA) criada em 1970. Ambas precederam a primeira Conferência Mundial do Ambiente, em 1972, em Estocolmo. Ao mesmo tempo, o Maio de 68 e o movimento hippie evidenciavam uma nova geração feminista que, além das muitas reivindicações que protagonizava, se afirmava também com uma sensibilidade particular ao ambiente - lembre-se o “flower power”.

Especificamente do ponto de vista ambiental, Estocolmo não faz, contudo, referências explícitas ao papel das mulheres. Seria apenas 20 anos depois que a Conferência Mundial de Ambiente do Rio 92 lhes traria relevância e visibilidade: as mulheres participaram activamente na preparação da conferência do Rio, destacando-se a reunião de Miami em 1991 - World Women’s Congress for a Healthy Planet - que resultou no documento Women’s Action Agenda 21. Durante a Rio 92, organizaram um Fórum paralelo - “Planeta Femea” (Shepherd, 2010) -, e a Agenda 21 então aprovada dedica-lhes uma parte importante.

Três anos mais tarde, a Declaração de Pequim (1995) reconhecia o papel crucial das mulheres no desenvolvimento de modelos sustentáveis de produção e consumo, mas sublinhava que estas estavam ainda muito ausentes dos processos de decisão e da concepção das políticas ambientais, quer no contexto das empresas, quer no do Estado.

Já muito mudou desde que a Declaração de Pequim foi assinada, há 25 anos, em particular nos países desenvolvidos. Actualmente a maioria dos estudantes da UE que frequentam o ensino superior são mulheres (Eurostat, 2020), embora ainda estejam sub-representadas nos parlamentos, nos partidos políticos e nos cargos de liderança das maiores empresas. Note-se também a visibilidade das figuras femininas nos partidos ‘verdes’ (com destaque para Petra Kelly no arranque do ‘Die Grunen’ em 1980) e também nos movimentos ambientalistas mais recentes, o que reforça o protagonismo que elas têm vindo a assumir na transição para a sustentabilidade. Nos países do Norte e Centro da Europa, como a Holanda, a Alemanha e a Finlândia, os partidos verdes têm uma preponderância de membros do sexo feminino, ao contrário do que acontece em todas as outras correntes partidárias.

Recentemente, várias foram as chamadas de atenção para o facto de os países que melhor geriram a primeira fase da crise pandémica da Covid-19 serem dirigidos por mulheres, sendo o exemplo de Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, um dos mais referidos. Nota-se, por exemplo, que as dirigentes femininas adoptam uma atitude de maior precaução face ao risco, para além de terem estilos de liderança mais empáticos e participativos (Garikipati & Kambhampati, 2020).

Contudo, mesmo nos países ocidentais, apesar dos grandes avanços das últimas décadas, a paridade nas esferas de decisão política está ainda longe de ser alcançada. Um estudo sobre a participação das mulheres nas políticas climáticas, a nível europeu, revela que embora estejam bem representadas nas esferas de decisão de alguns países, como os ministérios e as instituições regionais e locais (sobretudo nos países do Norte da Europa), a sua presença tende a ser mais reduzida em tutelas com elevada carga tecnológica, como a área da energia e dos transportes (European Institute for Gender Equality, 2012; 2016), que determinam em grande parte as políticas de mitigação (Figura 1).

Figura 1 Proporção de mulheres em sectores relevantes para as políticas climáticas. (European Institute for Gender Equality, 2012

Mais recentemente tem-se examinado o efeito de uma maior presença feminina nas políticas ambientais. Mavisakalyan e Tarverdi (2018) analisaram a constituição dos parlamentos de 91 países para concluir que uma maior presença feminina se traduz em melhores níveis de desempenho ambiental dos respectivos países. Outros estudos recentes têm vindo a analisar o impacto de uma maior presença feminina no desempenho ambiental das empresas, demonstrando uma relação directa entre equilíbrio de género e desempenho ambiental (Birindelli, Iannuzzi & Savioli, 2019; Glass, Cook & Ingersoll, 2016).

Além do envolvimento político e de algum protagonismo alcançado em termos de cargos políticos, o papel das mulheres no quadro familiar e doméstico também se reflecte numa sensibilidade acrescida para vários aspectos da condição ambiental, entre os quais a alimentação, a educação, os resíduos, a energia e a água. Particularmente em relação às crianças, desenvolve-se uma interacção em duplo sentido, sendo reconhecida a própria influência das crianças em idade escolar nas práticas domésticas, bem como o papel crucial das mulheres nas práticas de separação dos resíduos urbanos (Valente, 2013), na preocupação com as poupanças domésticas - nomeadamente de água e energia (Almeida, 2004) e nas decisões sobre consumos alimentares (Paddock, 2016; Schmidt, Truninger, Guerra & Prista, 2018), além das questões educativas relacionadas com os filhos menores, mesmo que prevaleça uma grande carência de estudos a este nível.

Alguma literatura sociológica tem, mesmo assim, debatido o verdadeiro fundamento sobre a maior inclinação das mulheres para as práticas ambientais e o consumo de produtos ‘amigos do ambiente’. Em contraponto à sua vocação de cuidadoras, há autores que consideram que essa inclinação tem um significado mais profundo e que a emergência da visão ambientalista está associada aos valores feministas, resultando numa visão mais ecocêntrica do mundo. Para Johanna Moisander (2000), a emancipação das mulheres está intrinsecamente ligada à transição para uma sociedade mais sustentável, do ponto de vista social e ambiental, um potencial que poderia ser mais bem explorado numa transformação social de longo prazo.

Mais além desta noção da mulher cuidadora, perspectiva patriarcal muito associada à esfera doméstica, Elliott (2017) distingue na análise do consumo ‘verde’ das mulheres três dimensões inter-relacionadas: (1) a material, que tem em conta a forma como o género intermedeia a distribuição da água, da energia e de outros recursos no seio de uma sociedade, bem como a governação das instituições que estabelecem os padrões dominantes de consumo; (2) a dimensão prática, associada à gestão da vida quotidiana na esfera doméstica e fora dela, que pode ser disruptiva das normas políticas patriarcais ou, ao invés, reforçá-las; (3) e a relacional, que coloca a ênfase na relação entre o consumidor e os produtos, sublinhando a sua importância nos processos sociais de definição de identidades, pertença a uma dada classe social e comportamentos socialmente desejáveis.

Gough e Whitehouse (2020) consideram que, em geral, as questões de género têm sido descuradas na investigação sobre o papel que as mulheres desempenham na educação e que a visão feminina sobre os problemas ambientais não está ainda adequadamente reflectida na Agenda 2030 das Nações Unidas. As autoras defendem que a emergência climática tem de ser enfrentada na perspectiva transformadora da igualdade de género, dando maior visibilidade e reconhecimento às mulheres na definição da agenda do desenvolvimento sustentável, também a nível local e nos países em desenvolvimento.

3.1. O caso português e suas particularidades

Na Europa e nos Estados Unidos, a Segunda Guerra Mundial foi o tipping-point no acesso das mulheres ao mercado de trabalho e na aquisição de novas competências. As facilidades trazidas pelo acesso às tecnologias aplicadas às práticas domésticas libertaram as mulheres de vários afazeres, concedendo-lhes tempo e possibilidade de dedicação a outras tarefas mais enriquecedoras, como são os casos da formação e dos cuidados de saúde (Almeida et al., 1991; Aboim, 2007; Wall & Amâncio, 2007). Mais tarde, os movimentos sociais dos anos 60 viriam (re)forçar, como atrás referimos, a libertação da mulher e a luta pela igualdade de género, evoluindo para um ponto de não retorno considerando a sua consolidação no contexto dos direitos humanos. As mulheres ocidentais encontraram uma nova independência e reconhecimento de que jamais quereriam (quererão) abdicar.

Já em Portugal, a situação da mulher teve um percurso bem diferente. O regime ditatorial que vigorou no país entre 1932 e 1974 mantinha, por um lado, uma forte preponderância da família tradicional em que a mulher era remetida para o lar, arredada de exercer certas profissões e até do sistema de ensino, quando as famílias, por questões económicas, tinham de escolher os filhos que poderiam estudar. Por outro lado, o regime defendia um modelo económico fechado, mantendo uma população fortemente empobrecida e rural, onde a dureza do quotidiano se reflectia muito sobre algumas actividades atribuídas às mulheres, entre as quais, por exemplo, o transporte e gestão da água (Wall, 2005; Wall & Almeida, 2016).

O Estado Novo prosseguia uma política de fontanários que iam proliferando pelas aldeias, servindo mal uma então maioritária população rural que assistia à construção das barragens hidroeléctricas sem com isso passar a beneficiar de luz ou de água canalizada. Ficou célebre um episódio vivido pelo então Subsecretário de Estado do Tesouro, Ricardo Faria Blanc, relatado por Freitas do Amaral no seu livro O Antigo Regime e a Revolução (1996), que é bem ilustrativo do espírito do ditador. Em 1957, ao tentar convencer Oliveira Salazar que estava na altura de proceder ao abastecimento de água às populações rurais, Faria Blanc obteve a seguinte resposta negativa: “O senhor não conhece o interior de Portugal. Sabe? As pessoas que ali vivem estão ainda muito arreigadas às suas tradições e modos de vida seculares. Se lhes levarmos a água a casa, as mulheres já não terão de ir todas as manhãs com o cântaro à fonte: como é que elas hão-de poder pôr a conversa em dia umas com as outras?” (citado em Amaral, 1995, p. 62).

Mesmo depois da queda do ditador, em 1968, o abastecimento domiciliário de água não constituiu uma prioridade até à instauração da democracia. O problema era, aliás, extensível aos bairros clandestinos que haviam sido construídos às portas de Lisboa, onde se acumulavam os migrantes do êxodo rural. Também aí não havia água canalizada, mesmo no caso de prédios, como acontecia na Brandoa ou no Prior Velho, dotadas apenas de um chafariz. Documentários da RTP à época mostravam as mulheres a carregar recipientes de água à cabeça escada acima (Schmidt, 2004).

Segundo um estudo sectorial sobre o saneamento básico em Portugal desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde em 1975, o país chegara aos anos 70 com apenas 40% da população servida por abastecimento domiciliário de água, e pouco mais de 17% com ligação à rede de esgotos (Schmidt, Saraiva & Pato, 2008).

O tremendo legado do Estado Novo neste domínio de actuação pública tornava-se evidente e justificou os esforços iniciais dos primeiros Governos Provisórios pós-25 de Abril de 1974, que elegeram a questão do abastecimento de água, de saneamento e também de electricidade como prioridades. No entanto, a instabilidade política decorrente do período revolucionário dificultou o desenho de uma reforma institucional nesta área. Verificou-se uma forte contestação autárquica, que requeria para si as atribuições municipais no domínio do abastecimento de água e do saneamento básico, apesar da manifesta incapacidade que os poderes locais tinham para lidar com a dimensão e complexidade do problema, o que levou a novos adiamentos na sua resolução (Schmidt, 2008).

Seria apenas nos anos 1980 que a expansão da sociedade de consumo teria impacto directo na vida das mulheres. Concretamente, a integração do país na CEE (em 1986) e a vinda dos respectivos fundos de ajuda económica, bem como a abertura do mercado português, agora liberto das restrições alfandegárias, viriam contribuir, entre outras coisas (e com mais ou menos euforia), para a generalização dos electrodomésticos, os quais tornariam a vida das mulheres mais autónoma, libertas que ficaram de muitas tarefas, num contexto social em que as actividades domésticas eram muito pouco partilhadas. Alguns dados estatísticos são impressivos, mas basta referir que entre 1987 e 1997, em apenas dez anos, a cobertura doméstica de máquinas de lavar roupa passou de 44% para 79% (PORDATA, 2020).

Em poucas décadas, em Portugal, a participação das mulheres no trabalho assalariado em termos numéricos, que não em termos de condições de trabalho e salário, passou do fundo para o topo da tabela. É hoje um dos Estados-Membros com o índice mais elevado de emprego feminino (Torres, 2014). Seguindo a tendência do resto da UE, em Portugal são as mulheres com maiores qualificações académicas que têm maior participação no mercado de trabalho. Portugal está também entre os países da UE com maior taxa de mulheres inscritas no ensino superior. Elas são hoje a maioria nas universidades (sobretudo nas áreas da educação, ciências sociais e humanidades), incluindo nas universidades sénior, bem como na formação ao longo da vida (Conselho Nacional da Educação, 2019).

A democratização da escolaridade e a entrada da mulher na vida activa acabaram por gerar grandes mudanças num tempo curto e compacto que não cabe neste artigo desenvolver. Mas é inevitável pensar que, tal como a sociedade portuguesa dos anos 1980, a mulher portuguesa conquistou um novo estatuto de forma rápida e até eufórica. O país mudou, e as mulheres mudaram, mas também mantiveram funções tradicionais, limitativas, acumulando nas suas vidas factores positivos e negativos. E nessa acumulação de funções é possível vislumbrar algumas características particulares que se prendem com o facto de as mulheres continuarem em geral a desempenhar funções mais activas dentro do contexto da casa, como principal unidade de metabolização e localização estratégica, seja nas decisões relacionadas com a higiene e consumos, seja no destino dos resíduos, seja na já mencionada educação dos filhos menores (Wall & Almeida, 2016).

São escassos, já o referimos, os estudos sobre a influência do género nas questões do ambiente, no contexto dos países desenvolvidos, e Portugal não é excepção. Mas o primeiro Inquérito à Sustentabilidade, conduzido em 2016 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, revela uma maior sensibilidade sócio-ambiental entre a população feminina, uma maior participação em práticas como a reciclagem e ainda uma maior preocupação com os hábitos alimentares: desde a contaminação por bactérias, substâncias poluentes ou resíduos de pesticidas nas frutas e legumes, até à presença de antibióticos ou hormonas nas carnes. A Figura 2 resulta da síntese destas preocupações (Schmidt et al., 2018).

Figura 2 Preocupação com os alimentos segundo o género, idade e habitat (média). (Schmidt et al., 2018

O inquérito, aplicado presencialmente a uma amostra representativa da população portuguesa, constituída por 1500 inquiridos com mais de 18 anos, revela que a sensibilidade ambiental face aos processos de produção é significativamente maior no caso das mulheres, sobretudo as que integram agregados com filhos menores na sua dependência. Também nas práticas de consumo mais sustentáveis, são as mulheres que aparecem com maior destaque, por exemplo, evitando “consumir alguns produtos” e valorizando mais os produtos alimentares da época, em particular as inquiridas entre os 25 e os 44 anos, com licenciatura ou mestrado.

No que respeita à familiaridade com o termo sustentabilidade, as médias entre homens e mulheres mostram diferenças significativas, com uma tendência para estas últimas atribuírem maior importância às dimensões sociais e ambientais, bem como ao investimento na educação, enquanto os homens valorizam mais as dimensões económicas.

Figura 3 Sensibilidade sócio-ambiental face aos processos de produção e características sociográficas. (Schmidt et al., 2018

De acordo ainda com os resultados expressos na Figura 3 e confirmando os resultados anteriores, em geral, embora os portugueses assumam tendencialmente uma postura mais pró-ecológica, algumas diferenças são notórias e estatisticamente significativas. Estas diferenças encontram-se nas idades (e, por acréscimo, nos níveis de escolaridade), mas também, para o caso que aqui nos interessa, as médias entre homens e mulheres mostram diferenças significativas, com uma tendência para estas últimas aderirem mais aos valores ecológicos. Igualmente as acções a favor do ambiente, e concretamente acções individuais e de âmbito doméstico ou caseiro (por exemplo, reciclagem, poupança de água e electricidade), tendem a ser realizadas mais por mulheres do que por homens, sobretudo nos escalões etários intermédios (25-54 anos).

Entre as principais conclusões do inquérito, sublinha-se que os resultados apontam para dois tipos de perfis mais atentos e empenhados nas questões ambientais: por um lado, os mais jovens e mais escolarizados, homens ou mulheres, como os que mais prezam o ambiente e a sustentabilidade e mais preparados estão para a mudança, enquanto consumidores e cidadãos activos. Por outro lado, as mulheres revelaram, em geral, mais sensibilidade aos problemas da sustentabilidade e maior dinamismo e predisposição para a mudança no sentido das práticas sustentáveis e saudáveis. São elas que também estão mais viradas para a entreajuda, mesmo que uma grande parte delas ainda muito centrada no mundo doméstico e familiar.

4. Reflexões finais

A maioria das mulheres nos países em desenvolvimento continua a desempenhar funções centrais na gestão quotidiana dos recursos, revelando portanto maior atenção às questões ambientais com que lidam no seu dia-a-dia no quadro familiar, facto cada vez mais reconhecido e que até pode funcionar em alguns países ou regiões como um factor de empoderamento crescente.

Por outro lado, se os diferentes modelos de desenvolvimento entre os países ocidentais e os países em desenvolvimento fizeram divergir o papel das mulheres na sua ligação aos recursos - num Ocidente onde a mulher se libertou dessa ligação tão extrema e onde as respectivas funções quotidianas passaram a afirmar-se cada vez mais fora da esfera doméstica -, o certo é que algo hoje as aproxima. Seja pelo seu papel como cuidadoras, seja por uma sensibilidade ecológica acrescida ou por uma visão feminista mais ecocêntrica, o que parece ser unânime é que as mulheres têm vindo a desempenhar um papel de crescente relevância para as políticas ambientais e climáticas, embora ainda pouco reconhecido e com um grande potencial por aproveitar na transição para a sustentabilidade.

Os movimentos sociais pelo ambiente e pela igualdade de género têm vindo a desenvolver-se interligados, traduzindo-se numa evolução positiva da situação das mulheres, destacadamente nos países desenvolvidos. Hoje, elas são a maioria nas universidades, têm cada vez maiores qualificações e, embora lentamente, vão conquistando uma maior representação política, também em cargos de elevada responsabilidade com impacto na área do ambiente e das alterações climáticas.

O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, tem atribuído especial importância à igualdade de género, tendo conseguido atingir a paridade nos cargos de alta direcção da organização e estabelecido o objectivo de alcançar a paridade a todos os níveis até 2028. Reconhece, no entanto, a pouca sensibilidade de alguns Estados-Membros face a este assunto. Se a paridade de género é um elemento-chave para reflectir esta visão das mulheres sobre as políticas de desenvolvimento sustentável, actualmente os movimentos ambientalistas procuram também tirar o máximo partido da visão e da abordagem próprias que as mulheres podem ter sobre os problemas ambientais globais.

Os inquéritos que têm sido realizados em Portugal mostram que a população feminina tem aderido mais aos valores ecológicos e está mais disponível para comportamentos ‘amigos do ambiente’, o que revela um importante potencial para uma participação mais activa das mulheres nas políticas ambientais, nomeadamente nas estratégias de combate à emergência climática.

Portugal está muito bem situado face ao resto da UE, quer em termos de escolarização das mulheres, quer em termos da sua participação no mercado de trabalho. No entanto, estas continuam a estar em minoria em áreas técnicas de relevância para o ambiente, como a energia, tanto a nível da formação académica como das esferas de decisão política e gestão empresarial. Em termos de representação política, desde os anos 1990 houve quatro mulheres que chegaram a Ministras do Ambiente, contra 10 homens. A Comissão Parlamentar de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território é constituída por 34 homens e 15 mulheres. Quanto ao Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), entre 32 membros apenas seis são mulheres.

Isto, apesar de termos tido exemplos importantes, dos quais se destaca a figura de Maria de Lourdes Pintasilgo, que, além de ter sido a única Primeira-Ministra que Portugal teve, projectou-se internacionalmente a vários níveis e em vários fóruns, tendo sido convidada no início da década de 1990 a presidir à Comissão Independente sobre a População e a Qualidade de Vida (ICPQL), sob a égide da ONU. Neste âmbito elaborou o Relatório “Cuidar o Futuro” (1998) - um documento que continua actual e que se revelou particularmente visionário quanto às consequências da crise ambiental e de não se acautelar um desenvolvimento sustentável, sem o dissociar dos “problemas de população”.

De resto, este é sem dúvida um período fértil para a investigação sobre as mulheres e o ambiente, mais além das linhas de investigação tradicionais sobre género. Os movimentos sociais pela justiça climática e pela transição sustentável contam com uma forte presença de mulheres das gerações mais jovens que lutam por uma justiça social de largo espectro, contra todas as discriminações.

Acresce que a localização estratégica das mulheres no quadro familiar e doméstico e na articulação com a vida escolar e vicinal e ainda a sua crescente presença nos empregos colocam-nas também na cadeia de formação educativa e comunicativa informal, o que é muito eficaz em termos de mudança. Esta posição estratégica das mulheres promove fortemente a mudança num contexto múltiplo de interacção comunicativa.

Em contracorrente, o populismo autoritário emergente, no Norte e no Sul, passa tipicamente pela rejeição desta abertura política, advogando um regresso aos ‘valores familiares tradicionais’. Há um forte alinhamento entre o conservadorismo político e a negação das alterações climáticas, bem como das instituições internacionais e da própria ciência em paralelo com a misoginia oficial. Na crise sanitária da Covid-19, essa corrente política - anti-ciência, anti-ambientalismo e anti-governança global - volta a revelar-se de forma muito clara, questionando directamente as conquistas políticas e sociais do último meio século.

A próxima década será determinante por dois motivos principais. O primeiro é o cumprimento do Acordo de Paris e a necessária minimização dos impactos já inevitáveis das alterações climáticas, tentando limitar o aumento da temperatura global a um máximo de 2 ºC. O segundo é o cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas para uma transição sustentável e justa. Para ambos os propósitos, é urgente reconhecer e libertar o potencial cultural e técnico das mulheres, a norte e a sul, e o seu papel efectivo nos processos transformativos.

No futuro a investigação não deixará de explorar ainda mais o impacto da presença feminina nas políticas ambientais, na linha de alguns dos estudos mencionados neste artigo. O seu protagonismo em todas as dimensões da vida social está hoje simbolizado em figuras juvenis um pouco por todo o mundo, cuja afirmatividade espalha muitos dos anseios e das capacidades que as mulheres sempre tiveram para trazer o contributo decisivo para uma nova maneira de a Humanidade habitar o Planeta.

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Recebido: 12 de Junho de 2020; Aceito: 04 de Novembro de 2020

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